Metarreflexo
Tive esta descoberta outro dia
não muito óbvia, mas também não tão sutil
que não pudesse ser notada
O fato assim exposto não trouxera
o desalento em que já vivo imerso
o que senti foi um tipo de resignação
Espelhos nunca surpreenderam-me tanto
Senhor de mim, em poucas ocasiões
não adiantaram-se a modificação do corpo,
o endurecimento do espírito,
porém,
desta feita
veio além da resignação o assombro
Assombrei-me antes mesmo de resignar-me
Que mistério será esse
Que te desquieta a alma?
Dos meus espelhos abdiquei
O peso do reflexo não aguentei
Meu narcisismo é de espírito e não de forma
Meu desalento não tem cura, já vem do carma
Atiça minha curiosidade o assombro alheio
Atira-me em tédio a resignação
Te sigo em tua missão se me aceitar
Mas não estranhes se sumir quando me cansar
Sou alma mutável e o mundo é por demais vasto
Pra manter-me muito tempo no mesmo lugar
Minha inquietação nasceu na origem
Foi este meu encontro último, no entanto,
aquele que me revelou a vertigem
Meu olhar ausente de valor, cínico,
porém inquisidor
pousara na superfície do espelho
para então eu descobrir o horror
Pudera antes apenas resignar-me
assim o teria feito
de modo que não lhe chamaria a alma mutável
neste estranho e longo pleito
Agora parece-me não haver saída
o caminho em que nos dispus é incerto
antinatural e inimigo da vida
Do desafio não haverei de fugir
Cavouquemos as entranhas da terra em busca das respostas
Roguemos aos deuses que já muito desapontaram
Que tragam com a ciência das origens
A resposta que desvende o destino
Nunca soube para onde ir
Até mesmo minha sombra me desistiu de seguir
Se a inquietação te traz sentido
Me resta seguir contigo
Se o desenrolar da aventura for digno
Com qualquer final me resigno
Pois lhe digo então o que vi no espelho
e me diz você o que vê no que vejo
Ao que me detive no reflexo vi por
minha frente o tempo passar
Levava de mim as partículas,
vida, e deixava um pouco de azar
Assisti àquilo ao que o olho humano não poderia
agora molesta-me o etéreo,
tão perto e longínquo, perturba-me a vida
O meu outro eu, por dentro do vidro,
protegido de prata, dimensão e cuprício
se ri as gargalhadas
Bota-me a língua, e faz-me sinal
Toda vez que o vejo, minha carne amolece,
sua cor ganha vida, meus cantos de olhos sinal
Como pode o passado
Proteger-se atrás de vidro cristalino?
Aqueles resquícios que ficam, como a pintura de Dorian
Não são quem és, nem quem foste
São releituras de tempos mais inocentes
São sagrado e profano, em traços incoerentes
Perdoa-lhe as traquinagens, costumava ser singelo
Se não te compreende, não o culpes
Imaginava que as coisas se sucederiam assim?
Se tua velha inocência visse as escolhas que fizeste
Aceitaria tornar-se o rosto que hoje te contempla?
Nem passado, nem futuro, o presente ali era de Tróia
quadro invertido, amaldiçoado, sugando-me a vida, se fazendo jóia
Nasci adulto, não tive infância, do que me conheço
sou só escória
Querendo saber de minha origem, já percorri toda história
O que experimento é existir, jamais vivi o conceber,
não tivera parente, nem pai, nem mãe
fui postado aqui sem conhecer
Desta realidade não sinto angústia, sou meio humano,
meio troça divina, não contemplara morte ou escapatória
O que agora se apresenta no brilho vítreo é coisa nova
Força maior sobre meu não-fim me apavora o tempo assim
carregando-me lento e latente, levando-me tudo que tinha suficiente
O que te assombra é, então, fantasma atemporal
Refletir-se em coisas que nunca teve
Ansiar coisas que nunca terá
Nem mesmo o Oráculo de Delfos te poderia informar
O que iria teu dilema semi-humano suavizar
Te acompanho como sombra
Porque a minha há muito deixou-me
Pouco compreendo dos espinhos que a vida te cravou na carne
Porque os meus próprios embebi em letargia
Já que o Destino me proibiu de retirá-los
Aceita o reflexo que se te apresenta
Não como troça, nem como profecia
Mas como um desafio de te fazeres maior e melhor
Abraço, então, a morte lentíssima que me cabe
meu entre mundos, a dor incerta que só mim sabe
Desta humanidade mais alta quero então a companhia honrar
poeta sombra, caída do Olimpo, para palavras amalgamar
Digo um louvor e desenterro-lhe os espinhos, se possível for
Tenho também traves nos olhos, na boca um fel, muito amargor
E não nos rogo paz, pois sei estarmos adiantados a esta ingenuidade
Desejo sim que não nos falte não um verso irmão, ou sagacidade
Que nossa arma é letra e também torniquete
De onde procede sangue, mas também cataplasma
Cospe as palavras em teu reflexo
E deixe que regurgite novos significados
A vida é morte lenta para todos os mortais
(E para alguns sempre mais lenta que pra outros)
Os espinhos são parte de mim,
Há muita sabedoria que nasce da dor
Aprendi com eles um tanto mais
Que com a mais bela rosa em flor
A paz que fique para os pobres de espírito
Nós, poetas, escolhemos o eterno ardor
Nós, poetas, não descansamos jamais
(E se fosse escolha talvez tivesse já me entregado ao torpor!)