Ainda Outro Apólogo
(Machado Que Me perdoe)
Raymundo Silveira
Era uma vez... Não! Basta de “era uma vez”! Essa história começará por “são várias vezes”, embora a gramática fique indignada. Por que toda história só tem de começar com este clichê idiota, ora essa! São várias vezes um jardineiro que adora maltratar as flores. Jardineiro maltratando flores?
Pois é isto mesmo! Este jardineiro tem uma inveja doentia das cores, da beleza, da exuberância, do perfume e do encanto das flores. E a única maneira que encontra a fim de destilar o seu veneno contra elas é as maltratando e difamando. Mas – vejam como esta conjunção adversativa nunca falta -, mas há, como sempre, exceções. Quando ele sente que algumas flores o temem ou, por qualquer outro motivo subalterno, o respeitam ou lhe são subservientes, ele as poupa, pelo menos temporariamente.
Infelizmente, há algumas florezinhas tão frágeis, cujos espinhos são insuficientes para as proteger, e então, a sua única defesa consiste em serem mesmo submissas ao jardineiro.
- Dona hortência, por que a senhora se humilha tanto ao patrão? Indagou certa vez uma dália mais destemida.
- Ah, dona dália, a senhora é que é uma ingrata. Ele nunca lhe machucou...
- Como a senhora está enganada, dona hortência, Aquele jardineiro é falso!
Qualquer sentimento de solidariedade dele para conosco é pura encenação. Lá no íntimo, ele se rejubila com o fracasso, com o sofrimento e até com fenecer de todas nós. Sem nenhuma exceção.
- Por que és tão submissa a este homem, ó orquídea?
- Ora, rosa, como poderia ser diferente? Não viste o que ele fez ontem àquele jasmim? Entretanto, como sempre, ele nos deixou em paz.
- Tens razão. Ele podou o jasmim sem necessidade alguma, apenas pelo prazer de destruir a sua beleza e pela inveja que lhe causava. Mas isto de nada adiantará, pois em breve o jasmim voltará a florescer. Ademais, ele só nos deixou em paz, por enquanto...
- Discordo.
- Desculpem-me por me intrometer, mas você discorda de quê, ó orquídea? Um cravo interviu no diálogo. De que o jasmim voltará a florescer ou da inveja do teu patrão? Não te enganes, orquídea. Este homem é falso! Ele nunca hesitará um só segundo em te trair quando sentir que tu fazes pouco caso da vaidade dele; jamais será solidário a qualquer flor. Ele só será “amigo” enquanto alguma de nós for ao encontro dos seus interesses imediatos.
Bastará a ele desconfiar de que o teu colorido está chamando um pouco mais atenção, e ele fará contigo igual ou pior do que fez com o jasmim.
- Cravo, você está falando demais. Cuidado! Disse uma petúnia que é uma espécie de capacho, espiã e dedo-duro a serviço do jardineiro.
- Não sinto medo dele, petúnia. Fica sabendo que ele logo, logo esquecerá o que tu pensas ser favores que prestas a ele, e ainda por cima te desprezará por causa disto. Aquele sujeito é mais do que ingrato. Aliás, ele ignora o significado da palavra gratidão. E mesmo que se esforçasse para parecer o contrário, de nada adiantaria. Ele é, sem tirar nem pôr, igualzinho aos outros homens burgueses. Todo burguês é ingrato! Esquece logo os favores recebidos. Mas alguns são piores do que ingratos – fazem questão de negar o benefício auferido porque se sentem humilhados aos olhos das outras pessoas e aos do seu próprio benfeitor. Não esperes outra atitude do teu chefe. O tipo e o grau de deslealdade de um homem burguês são diretamente proporcionais ao grau de prejuízo que ele poderia vir a ter se mantivesse a lealdade. Por exemplo, se dois “amigos” de um burguês, eventualmente, se confrontam, ele ficará sempre do lado (não leal, mas do lado) daquele que lhe poderá ser mais útil ou do que ele mais teme ou daquele que mais lhe puxa o saco. Nunca será leal a nenhum dos dois.
- Você está muito “sabido” ó Cravo! Cuidado com o que fala!
- Como já te disse, petúnia, não sinto um pingo de medo do teu chefe. Quando contares a ele o que acabas de ouvir, no máximo me odiará e tentará jogar as outras flores contra mim. Mas, depois de tudo continuará me respeitando porque percebe a minha independência. Embora, eventualmente, procure me destruir, no fundo ele reconhece o meu valor.
***
Comedores de Flores
Maria Petronilho
Como em muito outros jardins, havia neste um jardineiro que era visceralmente inimigo de flores!
Pisava-as sem dó nem piedade, favorecendo antes as ervas daninhas, que prosperavam e medravam felizes, oprimindo e empurrando as flores que, por dever, deveria cultivar.
Tinha este jardineiro uma espécie de devoção a seu amo, um louco apreciador de coutadas onde pudesse caçar seres inocentes, que tratavam de suasvidinhas, de seus territórios, de sua procriação e alimento.
O jardineiro vacilava entre o ciúme e a ambição!
Cortava as flores das principais hastes, impedindo que crescessem; não as regava; jamais adubava o solo, antes fazia queimadas a torto e a direito, destruindo as mais rasteiras, as sem espinhos, os amores-perfeitos, dálias, jasmins olorosos cujo perfume o enfastiava.
Odiava sobretudo os cravos e, dentre estes, destruía ferozmente os de cor vermelha, pois lhe lembravam não sei que tristes tempos da sua infância perdida.
Em vão choravam as margaridas e oravam as açucenas!
Colhendo-as sem cuidado, apresentava-as em vistosas coroas a seu amo louco, que nem tão pouco cuidava de as colocar numa jarra, deixando-as murchar no auge da sua beleza.
Claro que sem flores não há frutos e sem frutos não há sementes!
Bem se ralava o jardineiro!
Tivesse boas fardas para seu uso, tivesse bons ginetes para os seus passeios... afinal o emprego parecia ser efémero, o que viesse a seguir que replantasse, que se desenvencilhasse, que fizesse o que lhe aprouvesse... por essa altura já ele estaria fora; teria dado o pulo para um jardim mesmo seu, que comprara num paraíso distante!
Lisboa, 16/11/2003
(Machado Que Me perdoe)
Raymundo Silveira
Era uma vez... Não! Basta de “era uma vez”! Essa história começará por “são várias vezes”, embora a gramática fique indignada. Por que toda história só tem de começar com este clichê idiota, ora essa! São várias vezes um jardineiro que adora maltratar as flores. Jardineiro maltratando flores?
Pois é isto mesmo! Este jardineiro tem uma inveja doentia das cores, da beleza, da exuberância, do perfume e do encanto das flores. E a única maneira que encontra a fim de destilar o seu veneno contra elas é as maltratando e difamando. Mas – vejam como esta conjunção adversativa nunca falta -, mas há, como sempre, exceções. Quando ele sente que algumas flores o temem ou, por qualquer outro motivo subalterno, o respeitam ou lhe são subservientes, ele as poupa, pelo menos temporariamente.
Infelizmente, há algumas florezinhas tão frágeis, cujos espinhos são insuficientes para as proteger, e então, a sua única defesa consiste em serem mesmo submissas ao jardineiro.
- Dona hortência, por que a senhora se humilha tanto ao patrão? Indagou certa vez uma dália mais destemida.
- Ah, dona dália, a senhora é que é uma ingrata. Ele nunca lhe machucou...
- Como a senhora está enganada, dona hortência, Aquele jardineiro é falso!
Qualquer sentimento de solidariedade dele para conosco é pura encenação. Lá no íntimo, ele se rejubila com o fracasso, com o sofrimento e até com fenecer de todas nós. Sem nenhuma exceção.
- Por que és tão submissa a este homem, ó orquídea?
- Ora, rosa, como poderia ser diferente? Não viste o que ele fez ontem àquele jasmim? Entretanto, como sempre, ele nos deixou em paz.
- Tens razão. Ele podou o jasmim sem necessidade alguma, apenas pelo prazer de destruir a sua beleza e pela inveja que lhe causava. Mas isto de nada adiantará, pois em breve o jasmim voltará a florescer. Ademais, ele só nos deixou em paz, por enquanto...
- Discordo.
- Desculpem-me por me intrometer, mas você discorda de quê, ó orquídea? Um cravo interviu no diálogo. De que o jasmim voltará a florescer ou da inveja do teu patrão? Não te enganes, orquídea. Este homem é falso! Ele nunca hesitará um só segundo em te trair quando sentir que tu fazes pouco caso da vaidade dele; jamais será solidário a qualquer flor. Ele só será “amigo” enquanto alguma de nós for ao encontro dos seus interesses imediatos.
Bastará a ele desconfiar de que o teu colorido está chamando um pouco mais atenção, e ele fará contigo igual ou pior do que fez com o jasmim.
- Cravo, você está falando demais. Cuidado! Disse uma petúnia que é uma espécie de capacho, espiã e dedo-duro a serviço do jardineiro.
- Não sinto medo dele, petúnia. Fica sabendo que ele logo, logo esquecerá o que tu pensas ser favores que prestas a ele, e ainda por cima te desprezará por causa disto. Aquele sujeito é mais do que ingrato. Aliás, ele ignora o significado da palavra gratidão. E mesmo que se esforçasse para parecer o contrário, de nada adiantaria. Ele é, sem tirar nem pôr, igualzinho aos outros homens burgueses. Todo burguês é ingrato! Esquece logo os favores recebidos. Mas alguns são piores do que ingratos – fazem questão de negar o benefício auferido porque se sentem humilhados aos olhos das outras pessoas e aos do seu próprio benfeitor. Não esperes outra atitude do teu chefe. O tipo e o grau de deslealdade de um homem burguês são diretamente proporcionais ao grau de prejuízo que ele poderia vir a ter se mantivesse a lealdade. Por exemplo, se dois “amigos” de um burguês, eventualmente, se confrontam, ele ficará sempre do lado (não leal, mas do lado) daquele que lhe poderá ser mais útil ou do que ele mais teme ou daquele que mais lhe puxa o saco. Nunca será leal a nenhum dos dois.
- Você está muito “sabido” ó Cravo! Cuidado com o que fala!
- Como já te disse, petúnia, não sinto um pingo de medo do teu chefe. Quando contares a ele o que acabas de ouvir, no máximo me odiará e tentará jogar as outras flores contra mim. Mas, depois de tudo continuará me respeitando porque percebe a minha independência. Embora, eventualmente, procure me destruir, no fundo ele reconhece o meu valor.
***
Comedores de Flores
Maria Petronilho
Como em muito outros jardins, havia neste um jardineiro que era visceralmente inimigo de flores!
Pisava-as sem dó nem piedade, favorecendo antes as ervas daninhas, que prosperavam e medravam felizes, oprimindo e empurrando as flores que, por dever, deveria cultivar.
Tinha este jardineiro uma espécie de devoção a seu amo, um louco apreciador de coutadas onde pudesse caçar seres inocentes, que tratavam de suasvidinhas, de seus territórios, de sua procriação e alimento.
O jardineiro vacilava entre o ciúme e a ambição!
Cortava as flores das principais hastes, impedindo que crescessem; não as regava; jamais adubava o solo, antes fazia queimadas a torto e a direito, destruindo as mais rasteiras, as sem espinhos, os amores-perfeitos, dálias, jasmins olorosos cujo perfume o enfastiava.
Odiava sobretudo os cravos e, dentre estes, destruía ferozmente os de cor vermelha, pois lhe lembravam não sei que tristes tempos da sua infância perdida.
Em vão choravam as margaridas e oravam as açucenas!
Colhendo-as sem cuidado, apresentava-as em vistosas coroas a seu amo louco, que nem tão pouco cuidava de as colocar numa jarra, deixando-as murchar no auge da sua beleza.
Claro que sem flores não há frutos e sem frutos não há sementes!
Bem se ralava o jardineiro!
Tivesse boas fardas para seu uso, tivesse bons ginetes para os seus passeios... afinal o emprego parecia ser efémero, o que viesse a seguir que replantasse, que se desenvencilhasse, que fizesse o que lhe aprouvesse... por essa altura já ele estaria fora; teria dado o pulo para um jardim mesmo seu, que comprara num paraíso distante!
Lisboa, 16/11/2003