No Divã

-Bom dia! Como está se sentindo hoje?

-Quer saber se seu trabalho está dando resultado Drª? Nem sei ainda por que tenho que fazer isso. Querem melhorar minha auto-estima, mas me julgam incapaz de resolver, sozinha, os meus problemas. Contraditório não é?

-Sabe que é mais difícil se pensar assim.

-Nada tem sido fácil de um jeito ou de outro. (E eu cheguei a esse ponto por coisas que não valem à pena. Nada do que aconteceu merecia tanta atenção assim. Mentiras não merecem atenção).

-O que acontece com você? Ainda não quer dizer?

-(ai meu Deus, ela lê pensamento) Coisas ora! Nunca te ocorreu nada parecido? Nunca sentiu um vazio no peito a ponto de não conseguir ficar sozinha sem chorar? (Eu não consigo parar de desistir de tudo). Todos os médicos a qual tenho ido me perguntam se estou com algum problema pessoal. Procuro um médico por estar com dor no estômago e ele me pergunta se estou com algum problema. Como assim? Não fui procurá-los para me darem conselhos.

-Os seus problemas de saúde podem ser decorrentes da sua situação emocional sim. Por isso está aqui. Já te falei sobre a hipófise. Deveria falar mais sobre seus problemas. Você está sempre ouvindo seus amigos mas nunca fala de você.

-(Então né, se eu não falo nem com meus amigos, o que a faz pensar que falaria com alguém que mal conheço? É tudo tão ilógico). Se meus problemas são emocionais porque não cessam esses exames sem fim? Meu corpo todo está cansado e ás vezes acho que meu sangue vai acabar. Este último será quase um estupro contra mim, e eu ainda tenho que pagar por isso.

-Tem tomado os remédios?

-Religiosamente. Inclusive aquele que costumo chamar de injeção de ânimo. Só pra não dizerem que não tentei. (Minha veia até já se apaixonou pela agulha, coitada).Por que vocês médicos acham que há um remédio para tudo? (não vão me dar um remédio que cause amnésia. Vão?).

-Ainda escreve?

-Só quando me pedem. Pelo compromisso que assumi. Alias, tento falar de mim com as letras. Mas elas não ajudam.

-Tente fazer mais isso. Porque não escreve sobre nossos encontros?

-Ah imagina, são muito chatos. Ninguém iria querer saber. (Será que ela acha mesmo isso interessante? Ai ai).

-Experimenta! Ah, só mais uma coisa. Você procurou um médico porque tinha dores no estômago, insônia, perdeu a fome, perdeu sangue, perdeu peso,enfim. Seus exames não constataram nada grave, a não ser as consequencias disso tudo – temos as consequencias mas não temos as causas. Mesmo assim você se julga capaz de resolver tudo sozinha.O que pretende fazer?

-(Nossa, eu perdi tudo isso? Enumerado assim gostei não) Pra quê quer saber isso Drª? (ô profissãozinha inconveniente)

-Curiosidade. Posso perder meu emprego se todas as pessoas forem auto-suficientes como você.

-(impressão minha ou teve uma ironia?) Ok. Eu queria mesmo era não me envolver afetivamente com nada. Na verdade, pretendo fazer as coisas só pelo prazer ou pelo dinheiro, nunca mais por envolvimento. Posso rir com meus amigos, ganhar dinheiro com minha profissão, mas não preciso amá-los. Um dia, se perder, não me fará falta. Não sei se é possível, mas não acredito mais em pensamentos positivos, em esperanças e não faço mais planos. Tenho me irritado demais com as frases prontas.

-O que te fez pensar assim?

-(Ela acha que vou falar rsrs) As injustiças. É injusto que “EU” tenha que deixar de gostar do inverno. É injusto que as músicas que antes me agradavam agora machucam meus ouvidos. É injusto que “EU” deva deixar de amar aquela flor. Ela sempre foi minha.

-Ok! Por prazer ou por dinheiro, nunca por envolvimento! É isso?

-Sim.

-Então vá e tente.

A paciente saiu da sala se sentindo mais uma vez vitoriosa por não ter chorado. Distanciou-se da clínica, sentou na calçada e desmanchou-se em lágrimas... Sem pai... Sem mãe... Sem amigos... Sem nada!

PS: as frases entre parenteses são os pensamentos da paciente. Reparem que não há pensamentos nas falas da Drª. Isso porque esse diálogo é uma versão só da paciente, e ela nem sequer imaginava o que a Drª estava pensando – embora fosse interessante essa versão também. Ela nem mesmo entendeu o que exatamente significava “vá e tente”.

Marília de Dirceu
Enviado por Marília de Dirceu em 16/10/2009
Reeditado em 16/10/2009
Código do texto: T1868958
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