Uma reflexão sobre o tradicionalismo na educação através do currículo
Pensar em currículo de imediato nos faz lembrar do documento que fala por nós diante de um emprego que queiramos conquistar. Faz lembrar o boletim da escola, com todas aquelas notas e nomes de disciplinas versando sobre como nos saímos em cada uma delas durante o ano letivo escolar.
A priori, podemos até estar no caminho certo, no entanto, não é simplesmente deste tipo de currículo que iremos tratar agora. O currículo do qual falaremos está sim relacionado de forma indireta aos boletins escolares, mas diz respeito a muito mais que apenas notas impressas em papel, ele versa sobre que competências determinada sociedade deseja que seus cidadãos possuam.
Neste sentido, podemos pensar nas quatro instituições da sociedade que implicam direta e ativamente na vida de todo e qualquer indivíduo: o Estado, a Igreja, a família e a escola. Diante disso, para discutir as bases do currículo, seus objetivos e implicações, ressaltemos a escola enquanto a instituição onde a presença do currículo é mais marcante e destacada dentro do sistema social.
Mas o que exatamente seria o currículo? Uma boa definição talvez fosse a de que o currículo é o conjunto de competências relacionadas ao ensino-aprendizagem, que determinam os objetivos a serem atingidos dentro de um sistema social determinado, ou até mesmo plano estruturado de disciplinas, conteúdos e avaliações que sejam condizentes com os objetivos do processo de ensino-aprendizagem a que uma instituição de ensino se propõe.
No entanto, tais definições não abarcam totalmente a noção socializadora a que um currículo comprometido com os parâmetros sociais e com as questões do ensino-aprendizagem se propõe, ou pelo menos deveria se propor. Assim sendo, podemos concluir que o currículo não pode e não deve ser apenas uma planificação, pois ele corresponde a uma esfera muito maior que um simples plano de aula, portanto, deve enfatizar práticas dialógicas entre os principais envolvidos no processo de ensino-aprendizagem (a escola, os professores, os alunos e suas famílias), por entender que sem essa prática de diálogo entre as partes envolvidas fica muito difícil estabelecer um processo de ensino-aprendizagem o mais democrático, subjetivo e que respeite e reconheça o outro em suas diferenças.
Além de tudo, um currículo é determinado, também, pelo contexto social, político e econômico posto, fazendo-o adquirir sentidos e finalidades múltiplas. Diante disso, ainda hoje vemos nas escolas a tradicionalidade presente desde o modo de dar aulas até o currículo, que nesse caso é a maior instância dentro do processo de ensino-aprendizagem.
O currículo tradicional está presente nas escolas brasileiras há muitos e muitos anos, desde o “descobrimento” do Brasil, quando foram trazidos para cá os jesuítas, a fim de catequizar os índios. Desde então o “primor e o rigor” da escola tradicional foram sendo cultivados em terras brasileiras durante décadas de colonização e muito depois dela. Nos tempos mais modernos, digamos século XX, quem não foi alvo da escola e do modo tradicional de ensino? Quem não conhece o ensino “decoreba”, maquinicista e acrítico a que fomos submetidos durante tanto tempo? Que aluno algum dia pode expressar suas opiniões durante uma aula, seja ela de que disciplina fosse? Com certeza são inúmeras as respostas!
A teoria tradicional afirma que o currículo deveria conceber uma escola que funcionasse de acordo com uma empresa comercial, ou seja, voltada para a eficiência de seus operários (alunos), para a produtividade, a organização e o desenvolvimento dessa empresa, que nesse caso é a escola. No mundo capitalista que vivemos não há que se negar que também a escola é um empreendimento comercial, contudo, a sua função deve ir muito além da captação de recursos; e junto com essa noção vai também a de que o currículo escolar deve formar mais que pessoas prontas para o mercado de trabalho apenas, deve formar cidadãos capazes de interferir na sociedade de forma ativa, democrática, crítica e modificadora.
A questão do ensino-aprendizagem vai muito mais além de formar um indivíduo eficiente e com a maior quantidade de qualificações possíveis para o mercado de trabalho. Não, não é apenas isso! Ser um cidadão participante e crítico requer muito mais competências, como por exemplo, aprender a trabalhar em grupo, reconhecer os direitos e deveres, ter noções de civilidade e respeito ao próximo. A demanda social atual requer muito mais do que um sujeito preparado para enfrentar as dificuldades de um mercado de trabalho cada vez mais seletor. Infelizmente, tais competências se isentam do currículo tradicional, que em pleno século XXI ainda impera e resiste em muitas escolas do país.
A disseminação das primeiras teorias tradicionais sobre o currículo se deu num contexto amplo e diversificado, tendo, como por exemplo, a burocratização e cientifização da educação, a popularização das escolas, a tentativa de resgatar a identidade nacional que se perdia devido o crescimento da imigração; o que significava um discurso tendencioso em torno da escola; e a industrialização e urbanização do país; o que denotava uma emergência em formar mão-de-obra especializada. Portanto, a institucionalização da educação das massas foi uma das prerrogativas para o estabelecimento do currículo tradicional. A urgência que surgia em dispor de mão-de-obra fez com que o ensino se popularizasse, o que não se configura num salto negativo, mas a maneira como esse ensino se popularizou e os caminhos ideológicos de dominação que ele tomou é que foram, grosso modo, retrógrados e estratificantes, de forma a estabelecer de maneira cada vez mais concisa dentro do sistema social a cultura da desigualdade e tantas outras “pragas sociais”.
O currículo que prima pelas formas de apropriação que um sujeito faz de suas vivências e conhecimentos oportunizados pelo espaço escolar está muito longe da concepção tradicional do ensino a que ainda somos muitas vezes submetidos. Daí trata-se de fazer uma reconstrução individual, diferencial de cada aluno, pois o modo tradicional de ensino fere a subjetividade de cada um, ao passo que tenta não só estratificar esse indivíduo dentro do sistema social, mas de fazer dele um “brinquedo do capital”. É fácil lembrar de um teatro de fantoches quando se pensa em currículo tradicional, porque é isso que cada sujeito interrompido e corrompido em sua subjetividade acaba se tornando: um boneco, um ventríloquo; e não é disso que a sociedade, no contexto no qual nos encontramos hoje, precisa.
O currículo tradicional se afasta da condição existencial de cada pessoa no processo de construção do conhecimento, ao invés de organizar o ensino partindo das leituras da realidade vivida pelos indivíduos com o objetivo de constituir conceitos, formas de linguagem e relações políticas, econômicas e sociais que estejam inseridas no cotidiano destes indivíduos. Nesta transfiguração da maneira com que o sujeito concebe a realidade é que diversos conteúdos vão sendo trabalhados, buscando instrumentalizar o estudante para a transformação social. É na busca pela transformação, na construção dessa transformação que se forma um individuo capaz de lidar com as demandas da sociedade. Não queremos nossos irmãos armados por aí como se fossem apenas soldados prontos para a guerra da sobrevivência, queremos irmãos livres e conscientes de quem são e até onde podem chegar. Talvez assim a utopia saia das nossas cabeças e se personifique!