Notícia Alvissareira

Ontem recebi a notícia de que fui eleita membro efetivo da Academia Montes-clarense de Letras e eu gostaria de compartilhar a análise feita pela confreira Karla Selene sobre minha obra, o que encorajou o voto dos membros da instituição.

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A LITERATURA DE CYNTIA PINHEIRO

ANÁLISE LITERÁRIA COM VISTAS À OCUPAÇÃO DE CADEIRA NA AMCL

Cyntia Pinheiro é escritora, libretista, roteirista, compositora, ilustradora, professora de canto, maquiadora e produtora cultural. Publicou sete livros, dentre eles o romance Pi-Wii (Editora Flyve, 2022), que tomo como base para proceder a esta análise.

Nesse romance denso, Pi-Wii é a protagonista. Uma adolescente cambojana que aos doze anos assume a criação de quatro irmãos mais jovens. Órfãos de mãe e sob o jugo de um pai cruel, as crianças convivem com maus-tratos, fome, miséria, violência física, abusos psicológico, emocional e sexual por parte daquele que deveria amá-las e protegê-las.

É uma obra polifônica — cada capítulo é narrado sob o ponto de vista de uma das personagens, que expõe sua infância. O testemunho de uma é ratificado pelas informações da outra que assume o foco narrativo no capítulo seguinte. A maturidade das ideias e a riqueza do vocabulário conduzem o leitor à convicção de que as exposições se dão já no tempo das personagens adultas, a recordarem o trágico passado — trata-se, portanto, de uma narrativa em retrospectiva.

É uma técnica complexa. Exige criatividade, imaginação e maestria na condução do que se narra. E Cyntia alcança nível de excelência nessa sua regência. Sob seu comando, os cinco elementos da narrativa (narrador, personagem, tempo, espaço e enredo) se encaixam com coerência e coesão.

A leitura é envolvente. O leitor acompanha o desenrolar da trama com atenção, curiosidade e em estado de suspense constante. A cada virada de página, quem ler quer saber mais.

A escritora demonstra adequada capacidade de descrição. Cenas eróticas são descritas de forma que a volúpia e a delicadeza permanecem em equilíbrio. Os detalhes em suas descrições apenas favorecem a criação de imagens que possibilitam visualizações de personagens e cenários, sem enfadar o leitor.

Construções inusitadas surpreendem, como no fragmento: “Ficamos ali nos olhando por algum tempo, sem dizer nada, ela se apiedando do meu sacrifício, eu me martirizando pela fome dela. Aquietamo-nos e, em pouco tempo, o sono nos conseguiu.”

E mais: “Na verdade, eu não tinha nada para dizer. As palavras não erupcionavam de minha garganta, eu era seca delas e gostava de ser assim.”

Linguagem poética se faz presente em prosopopeias como “O mato, sim, é sábio, faz silêncio em reverência ao vento que sopra, deixa o vento cantar e perfumar o mundo...”

Outra personificação que contribui para a poeticidade: “As nuvens não estavam no céu, talvez não quisessem depor contra nós no tribunal que um dia julgaria nossa fuga aloucada.”

Pi-Wii apresenta como espaço geográfico inicial o Camboja. Poderia, no entanto, mostrar como cenário qualquer região subdesenvolvida, onde há miséria e péssimas condições de vida: outras partes do continente asiático, a África, as Américas, o Brasil, de forma que podemos afirmar: o Camboja é aqui.

Pi-Wii denuncia maus-tratos perpetrados a crianças por adultos abusivos, violentos — prática abominável que não se limita a ambientes socialmente miseráveis.

Assim, ao abordar temas universais com lucidez e maestria, Cyntia desenvolve uma literatura universal. E atemporal.

Às oito ocupações profissionais mencionadas no parágrafo inicial – colhidas na segunda orelha do romance Pi-Wii — acrescenta-se a função de poeta: Cyntia publica versos nas redes sociais. E a qualidade dos poemas comprova: além de se garantir na prosa, ela se garante também em versos.

Nas duas formas, a autora sabe como capturar o leitor. Numa linguagem culta que desliza com facilidade, sem penduricalhos de esnobismo erudito. Essa sua opção por uma linguagem macia, acessível, cotidiana se revela no poema metalinguístico que escolho para ilustrar seu estilo:

Embelezamento

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Não são as palavras difíceis que embelezam o poema,

Nem as empoladas, as esdrúxulas, ou as prepotentes.

Não são as palavras arrogantes que falam ao coração,

Muito menos as esquecidas nas catacumbas dos dicionários.

As palavras que embelezam o mundo — pelo poema — são as singelas,

As que falam verdades com sutileza,

Que fazem malabarismos improváveis!

As que embelezam o poema — que se lança no mundo — são justamente aquelas que

Encantam pela arquitetura habilidosa do poeta,

Regidas por seu sentimento mais terno e profundo

E por sua capacidade de esticá-las, amarrá-las e dar a elas sentido novo.

As palavras que dizemos no cotidiano são poéticas,

São capazes de fazer brotar algo diferente no mundo e nas pessoas,

E não são apenas um flerte flácido com a retórica.

Pelo exposto, considero Cyntia Pinheiro merecedora de uma cadeira na Academia Montes-clarense de Letras. Sua presença — física e literária — contribuirá sobremaneira para o enriquecimento dessa instituição cultural.

KARLA CELENE

Cadeira número 20 da AMCL

Montes Claros, 13 de junho de 2024.