Direito, literatura e arte: uma relação necessária
O direito revela-se uma das principais manifestações históricas da cultura ocidental. Como complexo normativo de configuração democrática deve estar atrelado a um permanente e amplo movimento de interlocução com os diversos elementos da vida humana. Só assim poderão os membros da sociedade sentirem-se, de fato, autores e destinatários de suas prescrições. Dessa forma, tanto por incidir normativamente sobre a realidade, quanto por fazer-se reflexo desta mesma realidade que pretende regular, o direito é um dado sobre o qual se volta, explícita ou implicitamente grande parte do acervo cultural da humanidade. Sua presença como objeto de construções literárias marca desde clássicos da literatura mundial até os contemporâneos, e as relações entre direito e literatura, já de sedimentada análise nos meios acadêmicos internacionais ganha, também entre nós, cada vez maior espaço e atenção.
Ler o direito por meio da arte é vê-lo crivado pelo tempo kayrológico, liberto do jugo artificial de Cronos. É torná-lo promessa de um amanhã que se abre e não se deixa aprisionar por dogmatismos ditados pelo horizonte do ontem. Dogmatismos que decorrem não apenas de normas, mas de pressupostos e pré-compreensões momentaneamente compartilhados, paradigmas que a vaidade humana insiste em crer definitivos.
A arte é o local do deslocamento profundo. O manejar de utopias realizáveis, pois seu espaço é sempre aquém ou além deste que cotidiana e rotineiramente nos contém. Não se trata, porém, de simples fantasia, mas realidade de um agora que ouse assumir-se presente. Não mais refém de condicionamentos pretéritos, nem de um ingênuo futurismo que com a história pretende romper. Seu espaço é o agora, como ágora do tempo que se irrompe, abre e voa, ao sabor de palavras que constroem destinos. Ágora que nos convida a ali estar, ser, permanecer, por um tempo que transcenda e recrie os limites a que estamos convencionalmente atrelados. Sua possibilidade mais rica, sua efetividade mais fecunda, seu risco mais iminente: deixar-se perder ao se problematizar.
A arte realizará então a promessa essencial da filosofia, tornando infinita nossa capacidade de problematizar. Um diálogo que não se faz apenas com interlocutores privilegiados, nem se submete ao jugo das vontades majoritárias. Não se aliena em um individualismo narcísico nem clama por implementar ideologias. É ludicamente séria, jocosamente grave, cosmicamente atrelada às necessidades sociais mais viceralmente humanas. É essencialmente vida, liberdade em sua promessa escandalosamente possível, da qual as dimensões do útil e do factível frequentemente tentam nos desconvencer.
A leitura do direito pela arte pode ser autenticamente desconstrutura. É que, nulificando dogmatismos e irracionalismos petrificados sob a força de tradições irrefletidas, torna possível resgatar um dos comprometimentos fundamentais do direito moderno, e uma das promessas centrais da modernidade para consigo mesma. Que o direito seja um catalisador da transformação, elemento dinâmico o suficiente para incorporar em si a dialética da continuidade e ruptura. Não podemos nunca nos esquecer: o compromisso assumido de que o Direito se faça obra de um povo exige que o hoje não se apresente como uma simples derivação do ontem, mas como escolha, cuja manutenção dependerá da legitimação de seus próprios postulados.
Segundo Martin Heidegger, o risco inerente à toda técnica é tornar-se veladora do humano. Ora, uma sociedade obcecada com o desenvolvimento e seduzida pelo consumo pode terminar por se esquecer da dimensão humana que nutre, ou deve nutrir todo o direito. Assim, a literatura pode servir como importante lugar de reflexão e crítica, permitindo repensar problemas, tradições e pré-compreensões que se internalizam – tantas vezes de forma irrefletida – às práticas jurídicas cotidianas.
Por meio da arte, especialmente da literatura, o direito se deixa ressignificar, colocando suas prescrições normativas à prova não apenas da razão, mas também do sentimento, inserindo-se em uma dinâmica de transformação muito mais rica e profunda, pois muito mais próxima da realidade humana. A arte expõe e testifica as prescrições normativas de uma maneira muito distinta e efetiva. Não as submete apenas ao teste de racionalidade por argumentos de cunho lógico ou universalista, mas examina-as pelo plano da particularidade, da sensibilidade e do jogo de emoções que desvela limites, dimensões e consequências nem sequer imagináveis por elucubrações racionais.