VELÓRIOS & CAUSOS.
Nas pequenas cidades do interior de Minas, ainda na década de 90, muitas não tinham estações de rádios em suas localidades; por isso, os anúncios do comércio eram divulgados pelos alto-falantes, ligados a uma bateria de carro e instalados em carroças puxadas por um burro, assim podiam correr as ruas da cidade “berrando” as ofertas do dia no comércio e ou serviços diversos. Entretanto, os mortos tinham outro privilegio, eles eram anunciados pelos alto-falantes da torre da Igreja Matriz. Vez ou outra, os burburinhos da cidade eram interrompidos pelos acordes iniciais do adágio de Albinone; a atenção da cidade se voltava então para a torre da matriz e em meio a esse fundo musical funesto, apesar de belo, os passamentos, como diziam à época, sobre a morte de um morador, eram anunciados; assim o nome do morto, velório, dia e hora do sepultamento, eram comunicados aos moradores.
No dia do enterro, após o velório, geralmente feito na casa do morto, o cortejo fúnebre seguia em direção ao “sumitério”, o dito popular da região, uma semelhança que fazem com o verbo “sumir”, pois, diziam que a pessoa sumiu da vida. O caminho único para o cemitério atravessava o centro da cidade, passando por suas ruas principais; o caixão, na maioria das vezes, ajeitado na caçamba de uma camionete em marcha lenta, era seguido a pé pelo cortejo até o “sumitério”. Em sua passagem pelas ruas centrais da cidade, em sinal de respeito e a medida de seu avanço, as lojas cerravam suas portas, os transeuntes voltavam-se imóveis e cabeça baixa para o cortejo, sinal de respeito e de adeus ao conterrâneo morto.
E foi em um desses anúncios, vozeado pela torre da matriz, que tomei conhecimento da morte de um conhecido, o que resultou em minha ida ao primeiro velório naquelas paragens. Foi, sem dúvida, uma das passagens que mais me chamou a atenção, desde minha mudança para aquele interior. Por aquelas bandas é costume dizer, quando da morte de um conhecido: “vamo beber o fulano”; uma homenagem simples, porém, sombria para alguns, no entanto, verdadeira. Nessa minha primeira vez percebi, lá pelas tantas e já quase na madrugada, a chegada dos amigos do morto, cada um trazia em um embornal um litro da “mardita, cajibrina, pinga, mé, caxaramba, jurupinga, ximbica”, entre outros nomes populares dados à cachaça e falado por eles. Os tira-gostos, geralmente oferecidos pela viúva, quando não pelos vizinhos ou parentes do morto, eram abundantes: torresmos de barriga, peixes fritos, costelinhas, frangos caipira, mandiocas e milhos cozidos, entre outros quitutes, afinal de contas, tinha de abastecer a turma por uma noite inteira.
Era naquelas madrugadas que as porandubas aconteciam, pois, a pinga se fazia valer e os causos, acerca do defunto ou não, vinham à tona e nada mais havia para se conter, “inté” o raiar do dia. Foram hilárias as frases declamadas pela turma, antes do primeiro gole: “ave maria cheia de graça, se prepare fígado, que lá vai cachaça”; “minha mãe teve 3 fios, só eu que dei pra gente, vendi tudo que nóis tinha e bebo tudo em aguardente”; “jacaré mato no tapa, cascavel mato no dente, porque o sangue que me corre, é veneno de aguardente”.
Os causos iniciavam-se e corriam de boca em boca entre choramingos, soluços e risadas, meio que contidas, afinal era um velório, havia também os mexericos de acontecimentos que ainda não haviam chegado aos ouvidos da maioria. Naquela minha ocasião alguém cochichou sobre uma ação da polícia ocorrida contra um dos carroceiros anunciantes da cidade. Um deles, o mais requisitado, à época, havia escrito na traseira de sua carroça, a exemplo das frases de para-choque de caminhão: “nois quê é furunfá”; uma das beatas da Igreja Matriz achou ser um atentado aos bons costumes cristãos da cidade, uma ousadia do carroceiro e reclamou com o Padre, que levou a reclamação para o Delegado. Daí em diante a frase na carroça mudou: “num pode... mais nóis quê”.
Outro causo narrado naquela noite, muito engraçado, dizia sobre um jovem matuto e seu pedido de namoro a uma moçoila, mas o pedido, tal qual a tradição da região, tinha de ser feito ao pai da moça, um dos grandes fazendeiros da região: “Mané, fio de Candim a da Dª Tonha do matagar do fronha, saindo da bodega do seu Nico, depois de duas talagadas na branquinha, disse que era para dar coraje; arrumou sua viola dependurada no ombro, ajeitou seu paieiro de traz da oreia, escondeu o baraio no bolso da brusa, abanou os traje, mode baixar a poeira e tomou a direção da casa do Sô Bento; chegando lá, bateu palmas no alpendre da casa e foi atendido pelo Sô Bento”. “Tarrde, disse Mané! Bão? Respondeu Bento, vamos entrando, já acomodados no sofá da sala Sô Bento gritou para sua muiê: Marijosé passa um cafezim pro moço e se voltando para o Mané perguntou: a que devo a distinta visita? Bão Sô Bento! O motivo deu tá aqui é pra, com todo meu respeito pro inhô, pedir a fia do inhô em namoro. Sô Bento voltou o rosto para a direção da cozinha e gritou novamente: Ôô Marijosé pode deixá o cafezim de lado, o marmota já tá de saída”.
E de causos em causos e algumas piadas “nonsense”, como a contada por um dos participantes, sobre uma família do interior de Minas na estação ferroviária em SP. Quando a locomotiva despontou nos trilhos, perto da estação, o marido grita “pra muié”: “Mariaa, arreda o pé, junta os trem, que o negócio vem lá”. E assim a noite deslanchava “rapidim”, naquela farra lúgubre, “onde os trem se perdia, nada se coisava e todos fingi de égua”. “Mas é bão e também de bão termo avisá”: qualquer semelhança com fatos da vida real... Não é mera coincidência.