Um país racista e homofóbico
O Brasil e os EUA partilham de certas similaridades e contrastes quanto ao passado Colonial, são nações com grande extensão territorial e populacional, situados nas Américas, ex-colônias europeias. Ambos os países têm uma população significativa de afrodescendentes, embora os critérios de raça destoem entre um e outro, e são países que conservam, infelizmente, a intolerância, o racismo e o preconceito.
No Brasil, segundo dados do IBGE de 2022, cerca de 20, 6 milhões de brasileiros se declaram pretos, cerca de 10,2% da população; atrás de 45,3% de pardos e de 43,5 % de brancos. Apesar de o Brasil ser um país heterogêneo , episódios de racismo são recorrentes no Brasil, e mesmo assim, alguns brasileiros enchem a boca para falar que o Brasil não é um país racista, e que racismo mesmo ocorre nos EUA. Diante de tal falácia, é necessário aprofundar o diálogo e expor nossa cegueira, baseada no mito de uma democracia racial que foi mote de estudos de outrora e que congraça com o senso comum, baseado na pretensa tolerância do brasileiro frente às minorias.
A violência policial nas favelas contra a população negra é recorrente nos noticiários, e as lojas e hotéis também contribuem para a perpetuação do racismo, Glória Maria, uma das mais célebres jornalistas negras da história do Brasil foi barrada por ser negra em um hotel de Copacabana em 1980; em 2013, um negro adotado por um casal branco foi expulso de uma loja BMW na Barra da Tijuca. Os seguranças de supermercados também figuram constantemente nos noticiários, muitas vezes perpetuam falsas acusações, suspeitas, xingamentos e agressões. Em 2020, segundo matéria da BBC, João Alberto Silveira Freitas, um homem negro de 40 anos foi espancado até a morte por seguranças do Carrefour; em 2019, Pedro Henrique Gonzaga, de 19 anos, foi asfixiado até a morte na frente de sua mãe por seguranças de um supermercado Extra, na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro. Também em 2019, um jovem de 17 anos foi agredido no supermercado Ricoy, na zona sul paulista. O jovem foi amarrado, torturado e açoitado por dois seguranças. Em 2020, Matheus Pires, um entregador do Ifood foi xingado, ofendido e humilhado por um cliente, que despejou uma torrente de insultos racistas, o racismo foi registrado em vídeo.
O futebol também está repleto de casos emblemáticos de racismo, como no caso da torcedora gremista, Patrícia Moreiro, flagrada na TV ofendendo o goleiro Aranha, chamando-o de “macaco”, na partida do Santos contra o Grêmio, em 24 de agosto de 2014. Em 2021, Celsinho, jogador do Londrina sofreu ataques racistas do Brusque em uma partida. Isso sem considerar a imensa lista de jogadores famosos brasileiros que sofrem ataques frequentes no exterior ou por estrangeiros.
A superação do racismo só será possível com a conscientização sobre o tema, o racismo divide a sociedade e é um problema que não deve ser ignorado. O racismo se combate com o conhecimento, a única arma poderosa suficiente para extirpar conceitos pré-concebidos e errôneos.
A mídia tem contribuído com o racismo quando forja seus estereótipos raciais e perpetua o racismo, a comédia politicamente incorreta de comediantes stand-up vale-se de ofensas para ultrapassar os limites tacitamente acordados em uma sociedade plural, na visão distorcida de tais comediantes, todas as minorias são estereotipadas, desse modo, o nordestino figura como uma figura retrograda, arcaica, ignorante nas comédias; os negros são retratados como preguiçosos, descompromissados, vitimistas, revoltados, escravos do vício e que falam um idioleto à parte repleto de gírias que muito se distanciam do português vernáculo; os povos indígenas são retratados em nossa mídia como selvagens, bárbaros, retrógrados.
Inúmeras e de mau gosto eram as piadas racistas no clássico Os Trapalhões, idealizado pelo sobralense Renato Aragão, suas piadas também feriam os homossexuais, objetificavam as mulheres e qualquer deslize de masculinidade do escada Dedé era logo motivo de ridicularizações por parte do personagem Didi, em entrevistas recentes, o comediante tentou justificar que os tempos eram outros, esses estereótipos raciais eram recorrentes também na obra de outro cearense, Chico Anísio, cuja versatilidade imprimia inúmeros personagens caricatos, mas que não poupava nenhuma minoria, os homossexuais representados pelo personagem Seu Peru ( Orlando Drummond) é a somatória de uma série de estereótipos dos homossexuais, vistos como motivo de piada, nos trejeitos, na voz, no vestir, no falar, tanto que o homossexual das comédias brasileiras é um prato cheio e uma piada ambulante, se a câmera foca num homossexual nas comédias brasileiras há uma vaia generalizada, mostrando a reprovação da população ao comportamento homossexual, todos se veem no direito de chiste com o homossexual, que na maioria das representações midiáticas brasileira é um sujeito despersonalizado e descaracterizado, na contramão do convencional modelo de macho alfa, agora hétero top, e para acentuar tal distinção, costuma-se contrastar os homossexuais com homens héteros, fortes, viris, infiéis, símbolos da força, ao passo que o homossexual é frequentemente retratado como fraco, débil. Suppapa Uaçu ( Jaime Filho), personagem da Escolinha do Professor Raimundo era retratado como um indígena ignorante, que mal compreendia a sociedade contemporânea e as piadas aconteciam pelo distanciamento cultural que separa o culto professor Raimundo (Chico Anísio) do retratado aculturado indígena.
Os brasileiros têm uma predileção pelas comédias negras como as produzidas pelos irmãos Wayans, ou pela comédia Todo o Mundo Odeia o Chris, que são comédias que não fizeram muito sucesso nos EUA em virtude de perpetuarem o racismo, embora tratem de modo crítico do racismo, tais comédias reforçam esteteótipos raciais e não contribuem para um avanço dialógico neste âmbito.
As novelas também contribuíram para a difusão de estereótipos raciais e para uma compreensão por vezes equivocada sobre a escravidão e o racismo, a novela Xica da Silva (1996) produzida pela extinta Rede Manchete, e que tem uma protagonista negra, a Xica (Thaís Araújo), baseada em romances sobre a histórica Chica da Silva, personagem negra escrava (posteriormente forra ), e casada à época com o rico contratador de diamantes João Fernandes é um dos mais precisos retratos da escravidão e com um belíssimo enredo, apesar de algumas imprecisões históricas e do distanciamento da Chica da Silva histórica, mas que promove importantes críticas à sociedade da época, o mesmo não aconte, por exemplo, na novela Sinhá Moça (2006), produzida pela Rede Globo, a personagem principal é uma abolicionista, filha de um conservador, proprietário de escravos, os negros são relegados a um segundo plano nesta trama, assim como na história tradicional, sendo meros coadjuvantes para proporcionar o bem-estar e assegurar a felicidade da protagonista branca.
Não é possível compreender a atual conjuntura da sociedade brasileira sem olhar para o terrível sistema escravista perpetuado por mais de 300 anos no Brasil, isso é cruel, um trauma mais duradouro que o Holocausto, e não menos terrível. A escravidão, paulatinamente deu lugar ao preconceito racial, antes, o negro e indígena que sustentaram o trabalho da Colônia e do Império por mais de 300 anos foram acusados na República de serem preguiçosos, um recalque das elites brancas e não afeitas ao trabalho, e que antes sustentavam títulos de profissões sem de fato exercê-las e tiveram de se adaptar aos tempos modernos, perpetuou-se o falso estereótipo de que negros e indígenas eram preguiçosos, eles que sustentaram a economia do Brasil, e que muitas vezes se viam desempregados pela falta de oportunidades iguais.
Muitos proprietários de escravos enriqueceram com o trabalho escravo, que era-lhes vantajoso, seus descendentes herdaram riquezas em sua maior parte, terras, posses, bens e puderam se sobressair frente aos descendentes de escravos, que, conforme visto, não tiveram nenhum benefício político no fim do Império e na nascente República, perpetuaram a pobreza, das senzalas passaram para casebres, não encontraram o amparo político.
A segregação das favelas, os morros cariocas e qualquer subúrbio desprezado pelo poder político em cada cidade do Brasil carrega uma grande quantidade de negros e pardos, por isso é que idealizou-se as cotas, elas não foram feitas a fim de beneficiar negros e pardos por serem pertencentes a essas categorias raciais, mas foram idealizadas para promover uma maior justiça social. Em todos os rincões do Brasil, raras e quase inexistentes são as estátuas erguidas homenageando figuras históricas negras ou indígenas. Mas, os bandeirantes, que escravizaram e mataram inúmeros indígenas ganharam estátuas, são homenageados com nomes de avenidas e ruas, e mesmo assim, do Oiapoque ao Chuí o brasileiro abre a boca pra dizer que o Brasil não é um país racista.