MANIFESTO ANTROPOMÁGICO
* Breve reflexão baseada no Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade (1928) e Manifesto Antropofágico da Periferia, de Sérgio Vaz (2007), sobre a condição da arte como manifestação de uma magia que a todo momento reconstrói simbologias em nossas vidas
A poesia, cuja raiz da palavra remete ao instante criador, sendo, portanto, a expressão mais primária do elã artístico, é a entidade fundadora das asas que a vida requer para a imaginação.
Sem arte, a vida não é possível. Sem poesia, a arte não é possível.
Desde as suas primeiras manifestações, aquele a quem chamamos ser humano, se diferencia dos outros seres viventes pela prática da arte.
Não é o domínio tecnológico que nos torna melhor. Os dentes de um cão, as unhas de um gato, a paciência da águia e a sagacidade da cobra, provam que todas as armas inventadas pelas pessoas ao longo dos séculos, são apenas artefatos. Sem a pólvora ou a faca, perdemos quase todas as lutas.
O que nos leva para um patamar diferenciado é a capacidade de abstrair. Mas quem garante que o silêncio de uma onça ou a algazarra de uma arara não seja também um abstração?
Desconfio que é preciso que entremos mais no reino das digressões.
Pode ser que além da abstração, outro elemento preponderante nessa construção do humano seja a imaginação, campo fértil para o florescimento da arte. Todavia, a própria imaginação nos desafia a pensar que uma borboleta pode se emocionar ao contemplar um espécie humana, trajando roupas coloridas, andando, falando ao celular, com uma bolsa no ombro, num campo repleto de edifícios diversos, carros céleres e semáforos tricolores.
Qual seria então o vértice que asseguraria a certeza da separação entre aquela mulher ali, ó… e aquela andorinha, na gestação de uma poesia?
Antes de tudo, a linguagem. É ela que carrega consigo toda a compreensão daquilo que notamos como vida. Desde o nascimento, a linguagem é o meio de transmissão e a própria mensagem. E ela é tão determinante quanto o ar que se respira, para que os vivos se comuniquem e comuniquem que são vivos, que estão vivos.
Entretanto, não sabemos dizer quando, mas em algum momento esta mesma linguagem aquilo que chamamos de sublimação, onde o branco misturado ao preto não gera só o cinza, mas também o vermelho, o amarelo, o verde, o azul… E a soma das vogais “a” e “o” não se tornam apenas um mero “ao”, mas pode ser tornar, por exemplo, um “ão”, que juntadas naquilo que chamamos rima, colocam em evidência palavras que parecem antagônicas - mesmo que no fundo não sejam - como “razão” e “coração”.
Taí essa fusão mágica que ressignifica a vida, aquele exato instante em que, tal qual uma transubstanciação química - e juntando o mestre dos magos, Drummond - o sangue e o leite misturados resultam numa terceira cor, a que chamamos aurora.
É isso que entendemos e no fundo é isso que esperamos da arte: que ela nos defenda nos infortúnios da própria condição e vulnerabilidade de ser um ser vivente, que nos questione, que nos afirme. Que esta arte não seja passiva, mas que diante dos respiro que nos cerca, seja sempre o transporte para o impossível. Que seja, enfim, divina a ponto de ressuscitar almas mortas e sepultar corpos putrefatos, mesmo que supostamente vivos.
E, por último, que ela nunca se baste, nem em nós nem em si mesma. E não se suportando, se faça presença mesmo na ausência, retroalimentando sentidos contrários.
Não são as figuras de linguagem que determinam o que é Poesia. É a Poesia que a todo momento exige a criação de novas figuras de linguagem, num jogo de gato e rato, pois, tal como o Mistério, ela está sempre inacabada.
Essa a alquimia da Poesia. Essa a sua magia. Por mais que se explique, segue inexplicável.