Me chamo Negra

Aí de mim, disse a negra que, como repetindo algo que a catequese trouxe, fez o sinal da cruz e se pôs, como que pra não esquecer outra referência, só que dos seus, a bater três vezes na madeira. Aí de mim dormir com aquele enxundio ser que, nada mais tem que não seja banha por todos os poros. Sou Negra, mas minha cor não me tira a dignidade. Eles podem vir com armas e tudo mais para impor suas arrogâncias. Mas, nós, os negros, os índios e todos os outros que eles julgam inferiores, eles que pensam que não vamos resistir. Ah se vamos!

Não haverá, por mais tempo que dure, ou, como se diz na língua do catequizador, tempo que a nosso Senhor, não tarde, chegará o dia em que não existirá senhores e escravizados, brancos e negros, mas somente Humano. Até lá, como disse, sou Negra e tento minha dignidade, lutarei contra qualquer que seja. Sei que haverá reações das mais cruéis. Mas, Joana D'arc, nossa heroína, assim como, Dandara, Tereza de Benguela, enfim, tantas são nossas inspiradoras, que não temo a reação.

Se o que me e aguarda for o suplício, será eu, dentre tantas outras, apenas mais uma nas mãos dos carrascos. Há eles, como há tempos idos, de tudo nada nunca faltou. A eles não faltam as armas, o transporte, o teto, o alimento, afinal, a conquista de novas terras e povos escravizáveis, movimenta a roda da ganância. Não há limites. O capital, desde a época do "descobrimento", sempre teve seu caminho livre. Os indesejáveis, os recalcitrantes, os que incomodam, sempre foram alvo da perseguição, da tocaia, do suplício. Eu, como disse, sou Negra, e esse, tenham certeza, é mais um elemento justificável para eles.

Então o que temer, nós que a tudo nos tem sido negado, desde o ventre, ainda que inatingíveis pelas mãos diretas do usurpador, somos, desde o ventre, impedidos do alimento e abrigo protetores. Tudo nos falta! Então, nada nos resta, como seres que resistem, seres que, em contrário a história deles, não nascemos escravos. Nos escravizam. É disso que consiste a base de toda nossa resistência. Precisamos reescrever a história e o conceito.

Dar novo sentido a uma história que se constrói, sob olhares e discursos impregnados de interesses de classe. Somente, e sem o tão anunciado cataclisma social que um novo olhar possa significar, somente instituída essa salutar necessidade, é poderemos vislumbrar uma sociedade mais justa e harmônica, sem as amarras do preconceito.

Não defendo, com essas palavras, nenhuma desforra ou guerra. Apenas, e só apenas, luto para que nossa história seja contada por Nós. Não queremos a história contada por aquele que nos escravizou. Não queremos sua consideração a respeito do quanto, e se, sofremos. Não. Repudiamos qualquer linha que se atreva a dar sentido ao que carregamos desde que de África nossos ancestrais e mestres foram sequestrados e vendidos como peça de trabalho.

Não vivo um dia, mesmo nessas condições, eu, que não faz muito tempo, tive por companheiro, um homem que, assim como eu, não vivia um dia sequer sem lutar para que nossa história, e a história de nossos ancestrais, fosse recontada. Que fosse contata sem as cores dos escravocratas e seus arroubos mentirosos.

Abatido, meu companheiro, e com ele outros três, não conseguiram se safar da emboscada. Ficaram ali, sem um pano a lhe cobrir os corpos, à exibição púbica. Foi o dia mais triste de minha vida. Porém, e em memória dos quatro e de tantos que antes deles também tombaram, eu e mais outras tantas companheiras, nos pusemos a lançar as bases de nossa luta. E aqui estamos.

Sou negra. Essa é minha identidade. Sem me reconhecer como sou (eles, a todo tempo, tentam apagar isso da gente), Negra e inspirada por Dandara, Tereza de Benguela, Antonieta de Barros, Carolina Maria de Jesus, e tantas outras, não me assusta a reação. Sou Sônia, mas podem me chamar de Dandara, Tereza, Joana, Negra!