Só me resta lutar.

Na infância bem infância eu percebia injustiças nas relações. Por que só as mulheres cuidavam das pessoas na minha família? E somente elas davam conta de todas as coisas? E por que os homens só se divertiam? E por que não tinham que ter compromisso pra nada? E quando raramente lavavam uma louca queriam ser prestiados por algo que eles deveriam fazer? E por que eles tratavam as mulheres de uma forma hostil e quando uma delas reclamava era considerada louca? Muito, muito cedo a louca era eu. Muito antes que eu soubesse o que isso significava. Muito antes que eu soubesse o significado do meu corpo para a sociedade eu já era alvo de olhares monstruosos.

E por que somente mulheres negras vinham fazer faxina na casa dos brancos? E por que elas não tinham respeito nem das mulheres brancas? E por que elas não podiam nem ter os filhos consigo para trabalhar? E por que o que ganhavam não dava pra pagar quem ficasse com seus filhos? E por que eu soube que uma delas tentou se matar? Por que disseram que era louca? E por que ouvi dizer que uma delas, com 15 anos, foi abortar e morreu, deixando 2 crianças menores? Ah, sim. Ela tinha ido trabalhar na casa de uma família com 12 anos e seus filhos eram do dono da casa. Lembrei.

Na adolescência ouvi meninos que cresceram comigo achar um absurdo uma amiga ganhar deles no vídeo game. Ou os assuntos deles só com discursos recheados de frases que aumentavam o distanciamento entre o que era ser um homem ou uma mulher nessa sociedade. Filmes, novelas, conversas de garotos, músicas, nossos artistas do coração, com discurso misógino, racista, homofobico. E eu comecei a agir assim: eu fiquei atenta e comecei a falar e depois falar mais. E depois a me afastar por que eu percebi, por fim que isso estava em TODO MUNDO.

Eu me perguntei por muito tempo como eu ia suportar viver nesse mundo hostil. Não havia nenhum lugar onde esse modo cruel de se relacionar fosse diferente. E então eu descobri que estamos vivendo há séculos sob o patriarcado, o racismo e a homofobia. Depois vi os preconceitos contra indígenas, orientais, de classe.

Quando comecei a abrir o meu leque musical, aos 14 anos de idade, eu percebi que o amor entre as pessoas poderia se dar independentemente de gênero. Que amar era um ato de liberdade e que a amizade é a estrutura do amor. Então eu vi pessoas que eu respeitava engessando o amor de um jeito apenas: o heterossexual. Mas eu não acreditava nisso. Eu acreditava no sentimento das pessoas. E eu briguei. Eu briguei e me vi sozinha. E hoje? Por que eu sou amorosa? Por que eu parei de romper todo momento com as pessoas?

Eu sinto o mesmo horroroso desconforto a cada segundo que vivo. Se alguém achou que ia passar, não. Infelizmente eu precisei fazer alguma coisa para suportar isso. Por que eu não aceito. Não vai haver um único dia, nem uma frase , nem um lapso que eu vá aceitar quando se trata de injustiça. Eu conheço de cor esse dissabor.

Cada heterossexual neste mundo vive privilégios. Cada homem tem privilégios. Cada branco tem privilégios. E é o mínimo que a gente deve fazer parar imediatamente de aceitar os privilegios. Escutar profundamente cada um dos que são oprimidos e respeitar o que cada um traz. Validar. Demonstrar caráter. Lutar por justiça social, por legislação que proteja. Pela superação de um sistema que trata pessoas como número. É urgente parar de reproduzir preconceitos.

E o que eu fiz?

Eu resolvi ser professora.

Não que isso faça de mim uma super heroína, pensando em como são retratadas as super heroínas, valorizando a " feminilidade" digamos assim, supersexualizando as heroínas, então, é que não dá pra se chamar professora de heroína. E não temos que ser heroínas mesmo. Temos é que ter o direito à sermos humanas. Dividir responsabilidades, descansar, sermos cuidadas também.

Professora passa a vida tomando consciência, acordando, despertando para a realidade. E como professora, me vi sendo mais uma vez alvo de uma sociedade caída, que não respeita esse a profissão, que, não por acaso, é majoritariamente de mulheres.

Eu só encontrei um jeito de viver. Lutando. Não conheço outro jeito de viver meu luto que não seja lutando. Em todas as esferas.

Juliana Mendes Bueno Artemis Lua Crescente
Enviado por Juliana Mendes Bueno Artemis Lua Crescente em 01/05/2021
Código do texto: T7245324
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2021. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.