Apaixonei-me em um outro

Quanto de mim vi em você?

Que espelho era o teu que refletia os mais puros e nefastos ideais?

Aqueles que me inebriaram de forma tão atormentadora

Fostes o narciso perdido pelo tempo e na memória?

Pois no decurso dos anos, despedaça-se uma imagem, a do apogeu da existência

E na incompletude desse processo, diante da ausência de uma perfeição ou mesmo de nitidez

Impulsiona-nos uma voracidade primitiva

Que nos põe a pintar em um outro rosto os traços nossos que ainda se mantém vivos (mas onde?)

Quando beijei a ti, toquei nos lábios que eu próprio construí

Até teu hálito tinha um toque meu, a minha marca

Recordas o quanto de fora se afirmava nossa semelhança? Díade ignorada

Por que achas que os humores se disfarçam?

Pois são transmutados, conjugados, decantados, a fim de corresponder à corte perfeita dos amantes

Como somos tolos, não acha?

Montamos uma arapuca, uma armadilha construída com nossos próprios sentidos

Tenho que admitir, que se me sujei de sangue, minha mão foi quem bateu o martelo

E com cores de minha tonalidade, em profunda sintonia especular, fui desenhando teus contornos, te dando vida: a minha vida idealizada

Dito desse modo, deveríamos ter alcançado à perfeição?

Ora, isso seria de uma monotonia tamanha

Pois que graça teria a paixão, se não fosse a tragédia, o pôr as vísceras à mostra?

Te assusto, eu sei, quando sussurro tamanha verdade, pois és a pessoa mais ignorante na capacidade de amar

Ou teu ideal é, assim, tão ordinário?

A dor de te pintar e conjugar a dança, o jogo de gozo e vida, foi inevitável

Pois tudo no mundo é produto de contrários

O espelho reconstruído em ti mostra meu projeto maior

Mas me lembra que não passa disto, uma aspiração, um querer vir a ser

Desejo alucinatório

Ou seja, tu, sempre foi mais que eu

E num pequeno instante, na brecha que se abre à percepção

Pude notar que amar-te foi admitir minha própria insuficiência

E, além disso, como toda dança é um alternar de movimento e pausa

Fomos rápidos demais em instantes diferentes: não houve paralelismo

Quando estavas no frenesi do excesso, abracei a cautela

Ao adiantar meu passo, no entanto, tu resolveu sentar e respirar

Pois já tinhas feito tantos rodopios e performances

Veja, embora tu fostes reflexo, os movimentos eram teus

Carregavas, pois, a imagem eleita, o que só fazia aumentar ainda mais o desencontro

Como haver lucidez?

Nesse diálogo de um, pois te fiz interlocutor ausente

Busquei produzir uma verdade do Eu-ti, mas e seu Eu em mim?

Bom, os ideais são nossos por direito e excelência

Apresentam-se só a ti

E apenas um discurso teu tecerá uma verdade sobre eles.

Abraão Rodrigues
Enviado por Abraão Rodrigues em 29/11/2020
Reeditado em 29/11/2020
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