DISCURSO DE POSSE DE GOULART GOMES NA AIP –
ACADEMIA INTERNACIONAL POETRIX, Cadeira 1

 
Era uma vez um menino esquelético que mal tinha o que vestir, nem sempre tinha o que comer e morava em uma casa que não tinha nada, mas tinha um teto, sob o qual seus pais procuraram fazer o melhor que podiam pela sua “criação”. Filho adotivo de Mário, um guarda civil comunista, paraplégico, aposentado por invalidez e de Maria, uma negra semi-alfabetizada de coração gigante, diziam os médicos que o menino raquítico não iria se criar, que não adiantaria tomar Emulsão Scott nem Biotônico Fontoura.  

O golpe militar havia acontecido um ano antes e o pai adotivo – talvez por ironia, talvez por admiração – não hesitou em colocar no menino (nascido no Dia do Trabalhador) o nome do presidente deposto: João Goulart e lhe dar seu sobrenome:  de Souza Gomes.  Um ato de coragem, naqueles anos de chumbo e pólvora, nos quais pessoas desapareciam por muito menos. Não fosse por isso, o menino seria um Ferreira da Silva (sobrenome de Alice, sua mãe biológica), assim como Lampião, o rei do cangaço.  Aquele menino não tinha noção de quase nada, nunca se perguntara a que veio ao mundo, nem mesmo para que o mundo servia. Vivia. Um dia após o outro, proibido de transitar nas perigosas ruas do Centro Histórico de Salvador, Bahia, onde morava, mas que tinha permissão para ir sozinho aos cines Liceu, Guarani, Tamoio, Excelsior, Bahia e à Biblioteca Monteiro Lobato, no Largo de Nazaré, sempre andando, pois dinheiro para a passagem do ônibus não havia.

Aquele menino, que se encantou com os poucos livros de seu pai (trancados em uma velha cristaleira, pois taças também não havia), os filmes do cinema e as séries de ficção científica da TV (Jornada nas Estrelas, Viagem ao Fundo do Mar, Terra de Gigantes, Perdidos no Espaço, etc), foi o gérmen deste homem que aqui fala. Ninguém acreditaria que pudesse ser. Mas aos poucos, mais livros e filmes foram chegando. Como diria meu querido amigo, o poeta Damário da Cruz, o menino conheceu o mundo primeiro por intermédio deles. Daí, talvez, a visão equivocada, ficcional, das coisas que ele carregaria ao longo da vida. Não era um menino para integrar academias, nem de ginástica nem de letras. O escritor Antônio Torres conviveu com aquele menino e seu pai, antes de ganhar o mundo e uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Feliz coincidência: dois acadêmicos passarem por uma mesma casa.

O menino virou adolescente e foi trabalhar como office-boy do Banco Nacional do Norte, aos quatorze anos de idade. E a partir de então já não faltava dinheiro para comprar livros e mais livros, muitos deles adquiridos no sebo Casa dos Livros, de Dário, no Viaduto da Sé. Seis anos depois se casou com uma colega de trabalho (que já mudou de dimensão e lhe legou dois maravilhosos filhos: Gersínio e Leonardo), mesmo ano em que publicou suas primeiras poesias em uma coletânea. Mania de leitor voraz, que achava que podia ser escritor. E foi se inventando poeta, e foi garatujando muitas coisas. A Educação, a Cultura, o Conhecimento são os mais fortes elementos de transformação socioeconômica.

Foi um processo gradativo de mudanças de seus nomes literários: primeiro, Souza Gomes; depois, João Goulart de Souza Gomes, até afirmar-se como Goulart Gomes (por sugestão do poeta Hugo Pontes).

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As minhas primeiras influências literárias foram os poetas Castro Alves e Augusto dos Anjos, como é possível perceber nos meus primeiros poemas publicados. O verso livre ainda não me era familiar. Das conversas com o poeta Manoel Messias Santiago, o Saci, (pai da cantora Mariela Santiago), nos intervalos do nosso trabalho na indústria, lendo seus poemas, fui me deixando seduzir pelo verso livre, percebendo as múltiplas possibilidades que ele me proporcionaria. Inspirado pela obra de Messias, comecei a escrever poemas naquela forma. Seu poema “Era uma vez em Beijing”, me levou a escrever “A Batalha Final” e “A Última Cruzada”, dois de meus poemas preferidos, e muitos outros naquele fértil período criativo.

Logo minhas influências mudaram. Passei a admirar autores que conseguiam inovar na expressão linguística, criando novas palavras, reinventando, dando novo significado às antigas, que construíam personagens psicologicamente intensos, marcantes, inesquecíveis:  Guimarães Rosa, Manoel de Barros, João Cabral de Melo Neto, Gabriel García Marquez e, no teatro, Bertolt Brecht e Nelson Rodrigues. Aquele que considero meu melhor livro de poesias - Linguajá, o território inimigo - é um resultado dessa transformação.

Participar de concursos literários, então, era para mim uma forma de “testar a qualidade” dos meus poemas. Participei de centenas, e acumulei dezenas de pequenos prêmios, até chegar ao maior de todos eles: obter o primeiro lugar no 12º Concurso Nacional Josué Guimarães, promovido pela Universidade de Passo Fundo, Rio Grande do Sul, em 2011, com os contos “Socorro”; “A Invasão Bárbara em Paris” e “Moira, a Lenda”, cuja premiação me levaria a um intercâmbio com a Universidade de Santiago de Compostela, na Espanha.

Em 1999, aos 34 anos de idade, já então com vários poemas publicados pelo mundo, trabalhando na indústria de petróleo, resolvi lançar um livro de hai-kais. Pedi opinião sobre o esboço do livro ao escritor Aníbal Beça (o avô do poetrix), que logo detonou: “pode chamar seus tercetos do que quiser, mas não de hai-kais”.  Dessa provocação surgiria o neologismo “poetrix” e o seu manifesto, publicado no primeiro livro desta nova linguagem literária: TRIX poemetos tropi-kais, lançado na Bienal Internacional do Livro da Bahia, naquele mesmo ano.
No ano seguinte, dezenas de autores que se autodeclararam escritores de poetrix – os (as) poetrixtas, como viriam a ser designados – se reuniram em um grupo virtual, no Yahoogrupos, onde foram sendo delineadas e amadurecidas as definições do poetrix, que anos depois viriam a resultar no texto Bula Poetrix, que norteia os autores no exercício desta arte poética. Ali surgiriam as formas múltiplas: duplix, triplix, multiplix, grafitrix, clonix, etc. Logo nasceria o Movimento Internacional Poetrix, entidade virtual que, ao longo de 20 anos, através da ação dos seus coordenadores, se dedicou a propagar o poetrix aos quatro cantos do Brasil e do mundo.

Hoje, em apenas um portal da internet – o Recanto das Letras – existem mais de 160.000 poetrix publicados. A Academia Internacional Poetrix é o atual momento dessa história, que contou com a adesão imediata de todos os autores convidados a integrá-la, agora acadêmicos.

Mas tudo isso começa bem antes, há quase quatro séculos, para ser exato. É inegável que o poetrix é um herdeiro do hai-kai - e “irmão” do Sijô coreano e do Ghazal árabe - por isso escolhi como patrono da minha cadeira aquele que é um grande mestre dessas duas formas poéticas pois, na minha opinião, ele já escrevia poetrix muito antes de assim chamarmos estes tercetos. Refiro-me a Matsuó Bashô, poeta japonês  nascido em 1644, em Iga, e falecido em 12 de outubro de 1694, em Osaka,  pelo qual tenho a maior reverência. As referências biobibliográficas aqui apresentadas foram extraídas de dois livros: Matsuó Bashô, de Paulo Leminski e Oku – Viajando com Bashô, de Carlos Verçosa, que acrescenta textos de Octavio Paz e Eikichi Hayashiya.

Bashô – que quer dizer “bananeira” – foi um rônin, samurai sem senhor feudal a quem servir, monge budista, se tornou funcionário público em Tóquio e abandonou tudo para ser professor de hai-kai, peregrinando por mais de vinte anos pelo Japão, sendo financiado por mais de 3.000 discípulos, amigos e admiradores. Começou a estudar poesia com Kitamura Kigin (1624-1703), dando continuidade aos estudos de  clássicos japoneses e chineses em Kioto, onde teve um romance com Juteini, sobre quem quase nada se sabe. Troca seu nome de batismo – Kinsaku – para Tosei e estuda o zen-budismo com o mestre Buccho (1643-1715). Em 1680 um de seus admiradores – Sampu – lhe presenteia com uma casa, à frente da qual será plantada uma bananeira, que lhe dará um novo codinome: Bashô. Das muitas viagens que fez, a pé, pelo Japão, resultaram seus poéticos diários, sendo o mais conhecido Oku no Hosomichi, resultado de dois anos de peregrinação. Durante sua viagem de Nara a Osaka, cai doente e falece com apenas cinquenta anos de idade. Seu corpo está enterrado em Otsu, às margens do lago Biwa. Como destaca Leminski “Bashô botou em prática, no haikai, a fé que alimentou sua alma, durante cinquenta vagabundos anos, com signos substanciais”.

A sua habilidade de transformar imagens em palavras e o criativo uso de metáforas e outras figuras de linguagem aproximam muito a sua poesia do poetrix, como se vê nesses hai-kais, em versão de  Olga Savary: “Vai-se a primavera / queixas de pássaros, lágrimas / nos olhos dos peixes.” Assim também é a sua forma narrativa, ao descrever acontecimentos: “Mãos que hoje plantam arroz, / ontem, hábeis, desenhos / imprimiam com uma pedra”.

A sua poesia não vinha apenas da Natureza, mas também do contato direto com outras pessoas. Após um diálogo com duas prostitutas, que dormiram em um quarto contíguo ao seu e de seu amigo Sora, na pousada em que estava, escreveu: “sob o mesmo teto / dormiram as mariposas / a lua e o trevo”.

Um livro fundamental para a formação de todo poetrixta é Seis Propostas para o Próximo Milênio, de Ítalo Calvino. Nesta obra ele prenuncia seis características para a literatura, especialmente a poesia, do século XXI: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência, ou seja, tudo o que um bom poetrix deve ter. Nele, há um trecho em que Calvino parece estar se referindo diretamente à poesia de Bashô: “Digamos que diversos elementos concorrem para formar a parte visual da imaginação literária: a observação direta do mundo real, a transfiguração fantasmática e onírica, o mundo figurativo transmitido pela cultura em seus vários níveis, e um processo de abstração, condensação e interiorização da experiência sensível, de importância decisiva tanto na visualização quanto na verbalização do pensamento”, assertiva que também é totalmente adequada ao poetrix.

Se Bashô percorreu os caminhos nipônicos, um longo caminho literário me trouxe até a Cadeira número 1 da Academia Internacional Poetrix que, por sinal, foi a mim atribuída pelos meus confrades, aos quais muito agradeço. Todas as demais 21 cadeiras foram ocupadas por ordem alfabética.

Comecei a escrever na adolescência. Em 1984 escrevi um cordel intitulado A Divina Comédia, paródia nordestina da obra de Dante Alighieri (por sinal, toda escrita em tercetos) com o intuito de participar de um concurso coordenado pelo mestre Rodolfo Coelho Cavalcanti. Infelizmente nem pude me inscrever, porque o cordel excedia o número limite de estrofes especificado no regulamento. Em 1985 publicaria minhas primeiras poesias na antologia Universos, organizada pelo poeta Francisco Teles, da Editora Abaeté, o que me propiciaria o contato com poetas de vários países. Decorrente disto, já em 1988 estaria participando com poemas em coletâneas organizadas nos Estados Unidos, por Teresinka Pereira, e na Coreia do Sul. Em 1987 publiquei meu primeiro livro de poesias – Anda Luz – e recebi meu primeiro prêmio em concurso literário, iniciando uma série que já chega a 71 premiações.

Nestes 35 anos de literatura, foram 15 livros individuais publicados, poesias traduzidas e publicadas em seis países, participação em 54 coletâneas e organização de outras 26. Para tanto foi fundamental a existência do Grupo Cultural Pórtico, criado em 1995 por 18 autores radicados na Bahia, do qual fui presidente por muitos anos, e que propiciou a publicação de mais de 50 livros de novos autores e inúmeros eventos. Nos últimos anos, com minha recente graduação em História, mestrado em Museologia (a concluir) e dedicação especial à numismática, também passei a produzir ensaios sobre estas áreas, publicados principalmente nas revistas da Sociedade Numismática Brasileira (SP) e da Unión Americana de Numismática, das quais sou integrante.

Para finalizar, não poderia deixar de agradecer a algumas pessoas que foram fundamentais neste percurso. Agradeço ao já citado escritor Antonio Torres, a quem importunei com meus péssimos escritos dos primeiros anos de juventude, mas que soube ter a paciência de lê-los e a generosidade de incentivar-me a que continuasse a escrever. Ao já falecido escritor mineiro Zanoto, que por muitos anos publicou meus poemas em sua coluna literária. À querida escritora Gerana Damulakis, da Academia de Letras da Bahia, pelo seu contínuo apoio ao meu trabalho. Ao escritor Hugo Pontes, que me despertou para a escolha do meu nome literário. Ao meu querido amigo e parceiro de longa data Cal Ribeiro, que transformou muitas de minhas poesias em belas canções. Aos meus colegas de diretoria do Pórtico: Júlio Andrade, Rose Rosas, Lino Chamusca e Luiz Flávio, amigos para sempre. Agradeço também a Márcia Tude, então proprietária da editora Livro.com, a primeira a investir empresarialmente em meus escritos. A Ana Cristina, companheira de todos os momentos.

E em especial a todos os amigos que desde o primeiro momento acreditaram na proposta do poetrix, que batalharam pela sua afirmação, muitos dos quais também hoje ocupam, merecidamente, cadeiras nesta Academia. Em 2011 organizei e publiquei a obra 501 poetrix para ler antes do amanhecer, em reconhecimento a mais de 80 poetrixtas que até então vinham produzindo e divulgando o poetrix.

E como “o mínimo é o máximo”, um dos lemas do poetrix, não devo me estender mais. Vivemos outra vez um tempo tirânico na história de nosso país. Mas, reafirmo aos meus companheiros de Academia que continuarei  a me dedicar à propagação do poetrix, não apenas por ser o “pai” desse jovem de 21 anos, mas em reconhecimento ao talento de todos os autores que se dedicam a esta arte minimalista, tornando-a cada vez mais popular.

 
 
 
Goulart Gomes
Enviado por Goulart Gomes em 02/08/2020
Reeditado em 02/08/2020
Código do texto: T7023716
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