Dom Quixote – Fale-nos sobre as sensações.
– Aposto que está pensando em comida, Sancho.
– Ganhaste a aposta, mestre.
– A memória é uma coisa interessante, Sancho. A lembrança de uma perda, por exemplo, pode causar uma sensação de desconforto(dor), assim como a lembrança de uma comida pode causar uma sensação de prazer.
– Fala-me sobre as sensações, meu senhor.
– Falar de sensações é falar sobre o prazer e a dor. As sensações são impressões, Sancho. São verdadeiros atos somáticos que surgem em consequência da recepção de estímulos pelos sentidos, seja no presente ou no passado(pela lembrança). Quando perpassado por uma emoção, a sensação torna-se uma ideia ou estado de consciência. Saiba, Sancho, que os estímulos externos(uma visão, um som) ou internos(lembrança, fantasia) podem criar paixões nefastas e por isso devem ser selecionadas com inteligência: cabe a inteligencia decidir com bom senso o que vê, ouve, come, toca, pensa, fantasia e lembra.
– Eu não decido nada, mestre. As coisas me chegam e eu lido com elas como posso. Por exemplo. Esta fome está me matando. Que tal pararmos para comer em algum lugar?!
– E deixar o dever de lado, Sancho?! Alem do mais, não temos onde parar no momento, então pare de pensar sobre isso. Quando a sensação nos chega, Sancho, seja como prazer ou dor, ela não deve ser intelectualizada. Não devemos travar diálogo entre a sensação e a mente, sob o risco de gerarmos paixões, compulsões, aversões ou inércia que nos afastem do dever. O que não quer dizer que não devemos usar a inteligência.
O calor do sol pode ser um fato que nos causa a sensação de desconforto pelos sentidos. Esta sensação de desconforto e dor, quando intelectualizada pela opinião, vira sofrimento. O sofrimento facilmente vira desculpa para não cumprir o dever. Desistir de chegarmos até o vilarejo que precisa de nós, por exemplo.
A cama macia pode ser um fato que nos causa a sensação de conforto pelos sentidos. Esta sensação de prazer, quando intelectualizada pela opinião, vira desejo. O desejo facilmente vira desculpa para não cumpri o dever como o de investigar os assuntos divinos, por exemplo.
– Essa sensação desagradável de fome esta me deixando de mau humor, isso sim, mestre.
– As sensações de dor ou prazer devem ser estudadas junto com os fenômenos afetivos(emoções, paixões). Os fenômenos afetivos, como seu mau humor, Sancho, são estados de ânimo muitas vezes provenientes das sensações. Dai surgem o sofrimento, o medo, a ansiedade, o desejo, a aversão, os gostos, as preferências, o agradável e o desagradável.
– O que me ajuda a saber disso, mestre?
– Em alguma medida você pode calibrar suas sensações e mais ainda, suas opiniões sobre elas, Sancho. A sensação é um mensageiro portador do conhecimento sobre a dor ou o prazer. Essa sensação pode variar de pessoa para pessoa. O amargo na língua pode dar a sensação de dor ou prazer dependendo da pessoa. Isto mostra que este mensageiro(sensação) não é tão impessoal quanto se pensa, mas calibrado pela própria personalidade, com seu gostos e preferências. As impressões desse mensageiro são afetadas por sua história de vida, com suas crenças, traumas, karma, hábitos e memória. Embora a percepção da sensação possa variar de pessoa, Sancho, seja como for, a mensagem vai chegar ao Rei que é a inteligência. É o Rei que vai decidir se vai incorporar a mensagem ou descartá-la. Se vai ignorar as impressões ou vai potencializá-las com a mente.
Sabe, Sancho. É possível tornar o mensageiro(sensações) mais refinado por meio da apuração do gosto, levando a personalidade a sentir prazer apenas no que se deve. De qualquer forma, a evolução do mensageiro perpassa pela conquista da inteligencia que é o Rei. Se você melhorar o Rei, a consequência é o mensageiro se ajustar sobre o risco de ter sua cabeça cortada e substituído por outra. Por isso o foco tem que ser em cima da inteligência, que situa-se no centro de controle da consciência.
– Poxa, mestre. Do jeito que você fala parece que temos que odiar as sensações e viver uma vida de asceta.
– Nada disso, sancho. As sensações(dor/prazer) e os fenômenos afetivos( emoções, paixões) cumprem o seu papel quando subordinados a Alma Imortal pela inteligência. As emoções e paixões, então, convertem-se em sentimentos sublimes. Os prazeres e dores do corpo nos chegam pelo destino e sem afetações, temperando a jornada espiritual. Os prazeres da alma, então, se tornam mais frequentes e pautam a verdadeira felicidade do ser humano.