Dom Quixote – Sobre a Beleza.

– Por que estais sorrindo, mestre?! O que vês de tão belo neste céu, enquanto estamos desgraçados pelas dores da última peleia?!
– É necessário subir “de novo”, Sancho.
– Subir até onde, mestre?
– Subir em direção ao qual tende toda alma, Sancho. Subir em direção ao “Bem”. Só quando subires até lá é que poderás entender o que eu vejo: ah, como é Belo!!
– Falas como se estivesse apaixonado, meu senhor.
– Sim, Sancho, fui preenchido por um estupor benéfico e amo agora com um ardente desejo apaixonado tudo que é verdadeiramente belo, e dos outros amores estou a rir-se, e das coisas antes denominadas belas estou a menosprezar, pois são belezas importadas e mescladas, não originais, mas que vem da parte Dele. Se contemplas essa essência, de que outro belo ainda necessita, Sancho?
– Mestre, por que não consigo ver?
– Porque foste enfeitiçado, sancho. Ao se misturar com a matéria, foste dominado por ela. Com esforço e espírito de busca, deves mergulhar nas corredeiras da virtude. Então será purificado do barro venenoso que encobre sua alma e se libertar-se-á deste mago terrível. Assim, o fiz, Sancho. Como aqueles que sobem aos santuários dos templos, depus minhas vestimentas no caminho, e ali subindo despido, purifiquei-me ainda mais, abandonando nessa subida tudo que era estranho a Deus. Consegui então, pela virtude, me separar do corpo para me assemelhar a Grande Alma. Desde então passei a ver.
– Mas o que você vê, mestre?
– Vejo a essência por trás de tudo, Sancho. Vejo a ideia perfeita, o belo. E é sempre o mesmo belo, Sancho, uma entidade que empresta seu esplendor e encarna seja na mais singela flor seja num olhar inocente de um homem que cumpre o seu dever. Permita-me lhe perguntar, Sancho. Quando você olha o meu cavalo Rocinante, o que você vê?!
– Pobre coitado. Vejo um cavalo magro, mal nascido, que quase não se sustenta em pé.
– Estas a olhar a beleza das coisas, em sua forma externa. Estou a falar acerca das belezas mais elevadas, que os órgãos dos sentidos não podem tocar, mas apenas a alma. Só é capaz de contemplá-la os que se elevam, abandonando a tirania dos sentidos e das sensações do corpo. Diga-me, Sancho. Quando vês minha amada Dulcineia, o que vê?
– Vejo Aldonça, a lavadeira de mãos calejadas e castigada pela vida.
– Entendo, caro Sancho. De fato estás cego. Estais a olhar apenas para baixo para a beleza dos corpos. Portanto, deve acautelar-se, Sancho, pois conhecendo que a beleza dos corpos são apenas sombras, “vestígios do divino” refletidos, deves voltar-se para cima, para aquela beleza original que lhes empresta sua imagem. Caso contrário, Sancho, como no mito de Narciso, corre o risco de afogar-se na imagem ao invés de contemplar a ideia original.
– E o que Dom Quixote vê, meu senhor?!
– Por cima de Rocinante, paira a ideia perfeita do cavalo. Um puro sangue, fiel, robusto e implacável. Por cima de Aldonça, vejo sua Alma original, Dulcinéia, o ideal de uma Dama, nobre por suas virtudes e por isso incrivelmente bela, pois, por acaso existe vestimenta mais bela que aquela que cobre a virtude?!
– Oh, mestre. Por ver beleza onde não vemos, és taxado por louco.
– O verdadeiro belo, caro Sancho, é uma intimação do alto e não pode ser visto por olhos mortais. Jamais “olho” algum haveria visto o sol sem ter-se tornado semelhante ao sol, nem poderia uma alma ver a beleza sem ter-se feito bela. Só para quem se purificou até certo ponto é possível falar sobre a beleza das ocupações, do conhecimento, dos atos justos, da grandeza de alma. Já reparastes, Sancho, na beleza da coragem refletida num rosto firme e grave? Ou na beleza da pureza e moderação dos costumes de um povo? Não estou louco, Sancho. Apenas vejo.
– Quem te inspirou desta vez, mestre?! Sêneca?!
– Plotino, meu caro sancho. Enéada, livro I – O Belo.

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Sancho Pança. - Nada é tão ruim que não possa ser piorado.


Registra-se que apenas tentei dar uma forma mais amigável aos textos de inestimáveis filósofos clássicos.

Poucas dessas ideias são originalmente minhas. Mas como diz os verdadeiros filósofos:

" o maior mérito não está em formular belas ideias, mas em reconhecê-las e ser capaz de vivê-las em alguma medida"