Coringa: ser ou não ser, eis a questão
No longa “CORINGA”(Warner Bros.), Para Arthur Fleck, personagem de Joaquin Phoenix, se tornar o Coringa foi uma derrota ou evolução?
Essa foi uma pergunta colocada por uma jornalista para o ator em uma das entrevistas que concedeu sobre o filme “Coringa”. O ator respondeu que quem assistiu ao filme terá que decidir essa questão por si mesmo.
De fato, “Coringa”, de Todd Phillips, é uma experiência poderosamente íntima e que atinge o âmago da existência humana: o questionamento sobre o sentido da vida, “Coringa” não é a história de um assassino, e tampouco, sobre alguém que sofre de uma doença mental. A natureza humana, entendida aqui como as contradições imanentes à existência humana é muito mais fluida e de infinitos entremeios. Não permite compartimentalizações. No baralho austríaco do século XV o coringa ou “o louco” segura um espelho para nós! E talvez essa seja a função essencial da arte em geral, ser espelho, a afastar também censuras morais e ideológicas.
“Coringa” centra-se na vida humana que personifica o “fracasso” no mundo dos “bem resolvidos”. Não há lugar nesse mundo para Arthur Fleck. Na sua antípoda, está Murray Franklin, personagem interpretada por Robert De Niro, o indivíduo que representa o “sucesso”. Apresentador de um programa de auditório, Murray é o homem que se acha bom.
Arthur Fleck carrega sua sarjeta pessoal na voz, no andar, nos olhos, no seu corpo. A risada involuntária é um reprimido pranto, dolorido e incontido, já anunciado por uma personagem do enredo de Hamlet que disse “onde a alegria canta e a dor mais deplora, num instante a dor canta e a alegria chora”.
A trilha sonora que acompanha Arthur Fleck é a canção “Smile”, composta por Charles Chaplin para o seu filme “Tempos Modernos” e interpretada por Jimmy Durante o filme “Coringa”. A letra da canção se inicia com as frases “Sorria, embora seu coração esteja doendo. Sorria, mesmo que ele esteja partido”. Paradoxalmente, a tragédia de Arthur não se esconde, ela é ostensivamente visível, confrontando-se com uma sociedade que se alimenta das máscaras, da cena, e do aplauso.
Uma sociedade de “Murray’s” que ocultam sob o terno e a gravata, a tragédia pessoal de quem se acredita “bom” e, sobretudo daqueles que acreditam na “perfeição”, na “normalidade” e no “sucesso”. Em determinado momento do filme Arthur pergunta: “É impressão minha ou o mundo está ficando cada vez mais louco?” e parece ter a percepção, ainda que intuitiva, da insustentabilidade de categorias que opõem “normais” e “loucos”.
Arthur Fleck questiona-se se ele realmente existe, aproximando-se da frase de abertura do monólogo de Hamlet “ser ou não ser, eis a questão”. Ser ou não ser é exatamente isso: existir ou não existir e em última instância, viver ou morrer. E poderia ser Arthur ao dizer as palavras de Hamlet “Será mais nobre em nosso espírito sofrer pedras e flechas com que a Fortuna, enfurecida nos alveja, ou insurgir-nos contra um mar de provocações e em luta pôr lhes fim? Morrer… dormir”. A transformação de Arthur no Coringa é a afirmação da existência com a sua dor e sofrimento inerente. É escolher resistir e não sucumbir. Quase como um oximoro, o Coringa é a lucidez louca de Hamlet.
Arthur Fleck escreve em seu diário que espera que sua morte faça mais centavos que a sua vida, porém a incerteza da morte supera os tormentos da vida. Nesse sentido, emana da personagem um profundo niilismo existencial, fruto da abissal consciência sobre o mundo ser um moinho que reduz nossas ilusões a pó, parafraseando o grande Cartola. “Coringa” não é uma estória sobre “heróis” e “vilões”. Nessas estórias, as motivações de ambos são muito claras, não é guiado por nenhuma motivação política ou ideológica. A incerteza do que o motiva é talvez a pista que nos remeta novamente a Hamlet e sua misteriosa questão não resolvida: “É a vida que faz o amor, ou o amor que faz a vida?”.
Contudo, um movimento revolucionário, e o seu consequente niilismo reativo e etos anárquico de vale tudo, ideologiza as ações do Coringa, projetando-o como o símbolo de suas causas políticas. Ao final, Arthur Fleck, já transformado no Coringa, e inteiramente instrumentalizado a serviço dos propósitos ideológicos da intelligentsia revolucionária, parece ter a consciência disso. “Coringa” é aplaudido pela multidão e seus olhos parecem saber que o aplauso não é para ele. E tal como um ator, no palco que não é seu e dentro de uma peça escrita por outro, “Coringa” parece entender que todos aplaudem uma projeção, parece ter a consciência de que todo aplauso é falso, o “sucesso” e o “fracasso”, a “normalidade” e a “loucura” são impostores. E na iminência do pranto, pinta em sua face, com o sangue que cospe de suas vísceras, um sorriso. E encena o papel que lhe foi imposto.