O SER OU NÃO SER DOS TEMPOS MODERNOS

O Aumento de diagnósticos de transtornos psiquiátricos e uso massivo de medicamentos ameaçam autonomia e direito à singularidade, existe muita expectativa, muita pressão sobre cada pessoa, mesmo que não comunicada verbalmente, Todas fomos nascidos e criados para sermos perfeitos, o problema é nos entendermos como seres imperfeitos, ou melhor, sem a obrigação de sermos perfeitos.

Precisamos nos observar mais profundamente no espelho sem a mascara associativa a questão da apresentação física e da beleza, até para buscarmos o “senso de si”, olhar para o próprio rosto e não ver uma pessoa estranha. Buscar a uma estrutura de informações que ajudem a dar sentido à experiência de reconhecer-se, o grande problema é olharmos no próprio reflexo a necessidade de gerir a peça teatral da vida muitas vezes escrita pelos outros. Decidir continuar “interpretando-se” o papel de bons filhos, bons alunos, bons profissionais... Sentir-se manipulados pelos pais, pelos amigos, pelos professores, pela cidade, pela sociedade faz apenas a pessoa alimentar certa ilusão sobre os padrões normais de vida e sobrevivência.

Eventualmente, quando os panos desta peça teatral caem, a pessoa passa se comportar mal, com tom de voz muitas vezes desconcertante, fala palavrões quando as situações são desfavoráveis, bate as portas quando se sente acuada ou repreendida, com riscos a começar outra fase, a de se automutilar e até pensar na morte (suicídio) como solução. Transforma-se em uma pessoa muito raivosa e descontrolada. Não consegue enxergar significado na própria existência e não sabe comunicar isso às pessoas.

Em muitos casos a primeira consulta a um profissional de saúde mental, identifica-se que a raiva e irritabilidade são sintomas de mania e o desespero e os pensamentos suicidas eram sintomas de depressão, ambas, fases de transtorno bipolar, este diagnóstico muda a vida e a estrutura familiar toda. Explicar os efeitos da padronização, patologização e medicalização da vida é algo difícil de realizar, pois os padrões podem divergir conforme os acontecimentos do cotidiano.

Este texto não está expondo que médicos psiquiatras ou medicamentos são maus, mas para dizer que a sociedade está construída em cima de histórias poderosas que moldam o sentido da existência do individuo e algumas dessas histórias ferem e deixam sequelas para o resto da vida, acredito que alguns colapsos têm mais a ver com o contexto da própria vida em si, do que pelas decisões tomadas ao longo da vida, mesmo que o contexto da vida sugiram decisões a serem tomadas. Então precisamos encontrar a pergunta certa que não é ‘o que há de errado comigo’ e sim, o que aconteceu comigo? Pois erros são necessários para uma formação da consciência humana e das escolhas que precisamos ter na vida, diferentes dos acontecimentos que estão fora do nosso controle, jamais conseguirão controlar tudo ao nosso redor.

E a origem de muitos problemas está no ato de tentar encaixar pessoas e comportamentos em um padrão, isto sim está na origem da patologização, segundo o jornalista Robert Whitaker, autor de “Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso de doença mental” (Editora Fiocruz), Ele aponta que o aumento do diagnóstico de transtornos e do uso de drogas psiquiátricas não levou a uma redução do “fardo” das doenças mentais, mas sim ao seu crescimento dramático. “No passado, crianças consideradas ‘difíceis’ eram parte da vida. Crescer é difícil, afinal. Agora temos um novo padrão, em que todos têm que estar felizes o tempo todo”.

O Brasil é o segundo país que mais consome metilfenidato, o princípio ativo da ritalina (medicamento usado para tratar o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade ou TDAH), segundo o Instituto Brasileiro de Defesa dos Usuários de Medicamentos. “Estabeleceram uma relação entre doença e o não aprender, a doença do não aprender, um olhar que busca a homogeneidade e rejeita a diferença”, avaliou a secretária executiva do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, Helena Monteiro, para quem a escola é a principal demandante da padronização na infância.

Whitaker em seu livro, em 1980, a American Psychiatric Association (APA) adotou um “modelo de doença” para categorizar transtornos mentais, e esse modelo foi exportado para o Brasil e para grande parte do mundo. “O público passou a ser ensinado que depressão, ansiedade, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade e esquizofrenia eram doenças do cérebro, causadas por desequilíbrios químicos, e que uma nova geração de drogas psiquiátricas havia sido desenvolvida para corrigi-los”.

Whitaker mostra recentes pesquisas da própria literatura mundialmente reconhecida em Psiquiatria que contradizem esses paradigmas. Além de não diminuir a carga epidemiológica das doenças, o uso contínuo de medicamentos de efeito no sistema nervoso provoca piora de cada uma das doenças em questão. Pacientes com diagnósticos brandos que tinham um bom prognóstico (chances de evoluir para uma melhora e desaparecimento dos sintomas) e que tomaram remédios se saíram pior do que os com diagnóstico severo, mas que não usaram as drogas no longo prazo. “Trata-se de surto iatrogênico [termo que quer dizer dano causado pelo tratamento]”, observa.

Whitaker procura mostrar como, embora os medicamentos psiquiátricos possam aliviar os sintomas no curto prazo (melhor que o placebo), em longo prazo aumentam o risco de uma pessoa se tornar cronicamente doente e prejudicada funcionalmente. “A literatura mais recente argumenta a favor de se repensar profundamente o uso de drogas psiquiátricas, com a defesa de que elas precisam ser indicadas com muita cautela, e que devem ser criados modelos alternativos de tratamento”.

O número de pessoas declaradas incapacitadas de trabalhar devido a transtornos mentais aumentou muito nos últimos 30 anos, e esse aumento têm sido observado em muitos outros países que adotaram o mesmo paradigma de assistência. Milhões de pessoas com menos de 65 anos recebem auxílio do sistema de Seguridade Social por serem considerados incapacitados por questões mentais, basicamente um em cada 15 adultos e jovens entre 18 e 26 anos encontra-se “funcionalmente prejudicado” por esses transtornos.

Existe sim, uma epidemia de diagnósticos de transtornos mentais, há crianças de dois anos sendo tratadas por bipolaridade, por exemplo. Os diagnósticos em crianças cresceram com a prescrição de estimulantes e antidepressivos, com objetivo de conter sintomas como os de TDAH. O papel das indústrias e do marketing de remédio é um dos aspectos cruciais da questão. As companhias farmacêuticas se encaixam no mercado. A sociedade paga a conta coletivamente. Uma das razões para essa discussão do tema é que a sociedade não tem mais como sustentar cada vez mais pessoas se incapacitando por depressão e outras doenças mentais para quem a solução passa por diferentes caminhos muito distantes das pílulas mágicas.

O que ajuda realmente as pessoas a melhorarem são diferentes variáveis, como a confiança para retornar à sociedade, e construir pontes para se manter em contato com a sociedade e a família, para algumas pessoas um bom diálogo aberto, para outros um bom choque de realidade.

Whitaker entrevistou pessoas cujas vidas foram mudadas indubitavelmente para pior depois que tiveram medicamentos receitados para elas. Em um dos vários casos dramáticos relatados no livro, a mãe de uma criança totalmente saudável de 11 anos procurou ajuda médica: a filha, que esporadicamente fazia xixi na cama, gostaria de participar de uma viagem da escola com seus amigos, e ela estava preocupada. O profissional receitou para a criança um antidepressivo tricíclico “para o xixi na cama”. Dali para diante, efeitos e sintomas devastadores surgiram e a vida da menina tornou-se uma constante peregrinação por médicos e hospitais psiquiátricos. Quando o autor encontrou a família, anos mais tarde, a jovem não tinha sequer no horizonte a perspectiva de retornar a ser uma pessoa alegre, independente e funcional, e só sua mãe falava por ela.

Lógico que confiamos que o diagnóstico de transtornos mentais pode trazer alívio para a falta de conexão com a vida, porém a verdadeira falta de conexão com a vida está no ato de não viver. Em alguns momentos é necessário acreditar que estas questões são causadas por um desequilíbrio químico que pode ser corrigido pelos medicamentos e pela terapia. Mas que, mesmo sendo um “paciente obediente”, a vida pode desmoronar progressivamente, certamente, nos melhores momentos a ser vividos, a pessoa estará sedada a maior parte do tempo.

Ao lutar para “seguir as regras”, perde-se tudo mais, a saúde, a capacidade de manter relacionamentos e de reter informação, a sexualidade, entre muito mais, o perde-se qualquer senso de propósito ou direção. Pode ter um início aqui de um potencial suicida.

Na internação é onde que se conhece de fato a força do sistema de saúde mental sobre os direitos humanos. Quem conhece sabe que, não há muita coisa pior do que estar em uma ala psiquiátrica de segurança, sem nada que pareça familiar, sem suas coisas, sem poder dar opinião sobre sua própria vida. Sua existência é sobrepujada pelo seu diagnóstico. Experimentam-se violações profundas. Percebe-se que todos os anos em que se tenta “ser obediente” privam-se da integridade corporal, da liberdade de expressão, de ar puro. Não se tratava de cuidado, mas de controle.

Whitaker traz-nos uma reflexão sobre quem somos. Coloca em xeque todos os diagnósticos e procura alternativas holísticas para entender de onde vem o sofrimento. Até o entendimento de que as experiências emocionais com que se lida ao longo dos anos possuem algum significado, seja razão política ou ainda enraizadas em questões sociais, culturais, de gênero. É mais do que necessário “ressignificar” a vida. A Psiquiatria diz quem somos, acabamos por acreditar que todo diagnóstico é uma verdade imutável, em um processo confuso, mas empoderador”.

As abordagens que estimulam o diálogo e a autonomia das pessoas são a “tecnologia” de ponta no tratamento do sofrimento psíquico. O finlandês Jaakko Seikkula ajudou a desenvolver a abordagem Diálogo Aberto (Open Dialogue). Trata-se de um método elaborado a partir de terapias centradas nas necessidades de cada pessoa e seu meio social, com a integração da terapia familiar sistêmica e da psicoterapia psicodinâmica. A abordagem é utilizada na Finlândia inclusive para casos considerados graves e nos momentos de surtos. Segundo Jaakko, aceitar o outro sem condições é o caminho de ouro para abrir diálogos nas relações sociais que se encontram em crises severas.

No sistema de cuidados predominante, os profissionais são orientados a seguir sua via de tratamento dentro de categorias de diagnósticos específicos, mas respeitar as vozes dos pacientes não é objetivo básico, a prática hegemônica muitas vezes desrespeita os recursos psicológicos dos usuários e, portanto, enfatiza a prática fortemente centrada no chamado expert. O tratamento por fim é direcionado aos sintomas e não as pessoas.

Nas crises graves, outro tipo de abordagem é imprescindível. Os princípios centrais da abordagem do Diálogo Aberto são:

• Ajuda imediata (dentro de 24 horas); uma perspectiva de rede social (sempre convidando os parentes, familiares e outros membros chaves da sua rede social para as reuniões);

• Flexibilidade e mobilidade (adapta o tratamento oferecido para a especificidade e as necessidades de cada caso);

• Responsabilidade da equipe (quem quer que esteja na equipe é responsável por reunir a rede);

• Continuidade psicológica (a equipe se torna responsável pelo tratamento pelo tempo que seja necessário);

• Tolerância à incerteza (criando segurança e confiança em situações onde ninguém tem a resposta definitiva);

• Dialogicidade (focando principalmente no diálogo, deixando em segundo plano querer mudar o outro).

As pessoas são abordadas como seres humanos em sua plenitude, e não apenas com seus sintomas.

Conforme observado em estudos, nos casos de psicose em primeiro episódio, 85% podem retornar ao pleno emprego. Nos casos de depressão profunda, a recuperação ocorre mais rápida e mais frequentemente, em comparação com o tratamento habitual. Em ambos, o papel da medicação pode ser reduzido, evitando assim seu efeito nocivo, porém, como dito antes, é necessário empenho de todos os envolvidos, caso contrário, o esforço poderá ser em demasia para poucos ombros.

Segundo Whitaker, é muito relevante para que a reversão do modelo de cuidado tenha êxito global, levando em consideração as conquistas na Reforma Psiquiátrica. É preciso buscar informações na literatura científica acerca de resultados em longo prazo. Em outras palavras, é preciso ter uma discussão científica honesta. Se houver essa discussão, uma mudança certamente se seguirá. Nossa sociedade se disporia a abraçar e promover formas alternativas de tratamento menos medicamentosos. Os remédios seriam receitados de maneira muito mais restrita e cautelosa. Em suma, nossa ilusão social sobre uma revolução da psicofarmacologia poderia enfim se dissipar e a ciência de bases sólidas poderia iluminar o caminho para um futuro muito melhor.

Vil Becker
Enviado por Vil Becker em 28/01/2020
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