DISCURSO DE FORMATURA

Professora Homenageada

ADMINISTRAÇÃO UFMG 2015-2019

“Eu me lembro bem, lá por volta dos meus 6 ou 7 anos, eu sempre comandava a brincadeira. Tinha que ser do meu jeito, senão não servia. Criada com os meus primos mais novos, ai deles se não fosse do meu jeito. Já era administradora, mas com um posicionamento um pouco mais autoritário coercitivo do que era realmente necessário. Uma verdadeira Mônica surrando quem mexesse em meu Sansão…

Lembrando da minha infância, eu não poderia nunca deixar de lembrar da minha avó. Uma viúva pernambucana, marrenta, de difícil relacionamento. Dela herdei a forma destemida de ser (modéstia às favas) e a busca pela minha independência. Senhora vaidosa e orgulhosa, não aceitava ajuda de nenhum homem para nada. Nesses dias, resgatando cenas da minha infância pude “ouvir” a voz da minha querida avó criticando os meus 9,5 pontos na escola. “Eu sou analfabeta”, dizia ela, “mas neta minha precisa ser a MELHOR, pois tem oportunidades que eu nunca tive. NA PRÓXIMA, TIRE UM 10”. A minha avó buscou realizar em mim tudo aquilo que ela mesma não pode realizar ou conseguir em sua própria vida. O sorriso dela era raro, mas sempre o conseguia quando eu conquistava algo, fazia algo de forma melhor ou se estivesse em evidência de alguma forma. De mim era exigido muito e eu também recebia muito, dentro das suas limitadas possibilidades.

Foi dela que herdei o gosto prematuro pela Administração ao vê-la em constantes negociações dos ovos caipiras de suas galinhas botadeiras, rações, espigas de milho ou filhotes de cães de raça, ou ao vê-la pechinchar sem fim no armarinho do bairro em que morávamos. Foi ensinando o “Be-a-Bá” pra ela no caderninho do Mobral que entendi qual era a minha missão na terra. Saudades eternas da minha mãe-avó Dona Adélia, que se foi sem ver o mar e sem ler e escrever, mas que deixou uma sabedoria matriarcal que passará de geração em geração…

Continuando um pouco da minha história, tempos depois, um pouco mais crescida, no ensino fundamental e médio, já era chefe da turma. Eleita por unanimidade pelos colegas, sempre era a porta-voz da sala, em abaixo assinados para retirar professores chatos, em negociar emendas de feriados ou em datas de provas que se acumulavam.

Nesse mesmo período o orçamento lá em casa apertou. Com 13 anos já era uma mocinha vaidosa que queria comprar roupa nova, maquiagem, discos de rock and roll. Meus pais, contorcionistas e malabaristas com seus salários mínimos, não podiam atender os meus pedidos, no máximo garantir o pão ou uns dois dias de comida com carne por semana. Quando meu pai cortou a água quente do chuveiro pra economizar na conta, vi que eu precisava fazer alguma coisa pro iogurte em nossa geladeira não ser tão raro. Comecei a vender produtos por catálogos para os vizinhos, fazer escambo com meus discos, chupa chupa pra vender no portão e negociar os artesanatos que a minha mãe fazia pela madrugada.

Aos 14 fui trabalhar no comércio, um emprego formal foi aplaudido lá em casa. Papai assinou a minha carteira de trabalho junto com o empregador. Eu era um tico de gente comandando um escritório de uma empresa comercial com cerca de 50 funcionários. A pressão do trabalho pesado e a limpeza da loja com cera verde aos sábados até às 16h, garantia que o chuveiro lá de casa tivesse água morninha de novo, mas junto com a água eu derramava muitas lágrimas… também bem morninhas. Minha mãe chorava junto, escondida no cantinho dela ao perceber que aquilo era um pouco mais complexo do que a minha idade dava conta, mas a minha renda era bem-vinda para completar as despesas lá de casa. Mesmo chorando, segui confiante acreditando que as coisas mudariam. A Mônica briguenta lá do início da minha história foi abafada, e tudo o que eu queria era poder comprar frutas e verduras, e, se desse, um tênis novo, pois os meus já mostravam as pontas dos dedos.

Eu fervilhava por dentro. Eu precisava fazer algo pra mudar essa realidade, e a única coisa que eu tinha certeza que mudaria a minha vida era continuar os estudos. Mas fazer faculdade na década de 90 era bem difícil. Meus pais não conseguiriam me apoiar se eu fosse estudar fora, então a alternativa naquele momento era só uma: estudar na Universidade Estadual, única instituição pública por essas bandas, batalhar em um vestibular que ainda cobrava química, física, biologia e desenvolvimento de cálculos matemáticos de forma quase dissertativa, para garantir uma vaga no curso de Administração. Ah! Esqueci de dizer para vocês que eu havia escolhido ser Administradora, adivinhem porquê? Dentre outras coisas, em uma das minhas primeiras experiências profissionais eu era comandada por dois administradores. Não, eles não eram exemplos de líderes. Muito antes pelo contrário… mas fiz daqueles limões uma gostosa limonada, e queria comandar pessoas de forma diferente e eles eram a minha anti-referência. Anti-referência nem sei se existe no Aurélio, mas foi através das minhas que estabeleci algumas metas na vida. Nesse caso, ser uma Administradora humana, participativa, que pudesse liderar pelo exemplo e não pela imposição e coerção.

Fiz um acordo demissional com os meus chefes na época e peguei uma certa quantia em meu acerto. Parte do valor recebido passei para o meu pai organizar as coisas lá em casa, outra parte comprei o meu primeiro computador de segunda mão (um Intel 486) e pedi aos meus pais 6 meses sem trabalhar fora, pois eu precisava passar no Vestibular. Meus pais, muito simples, não entenderam direito o porquê daquele caminho, não havia referência de outras pessoas com formação superior em minha família, mas, como sempre, apoiaram a minha escolha. Por esses 6 meses quase não vi a luz do sol e o brilho da lua. Meu quarto virou um santuário, onde eu virava noites em claro me preparando para aquela prova, movida a suco de laranja natural preparado pelo meu paizinho no “gargalo” do copo e sustentada pelas orações que a minha mãe fazia na igreja. Eu não tinha alternativa e não tinha muito tempo. Ou era isso ou era voltar para um emprego no comércio, sem tantas perspectivas, e me submetendo a chefes capitalistas e inescrupulosos. Eu não podia aceitar chorar de novo no chuveiro.

O resultado do Vestibular não era publicado na internet, pois naquela época ainda mal existia a internet discada. A Estadual anunciava em seu edital que os candidatos deveriam comparecer ao Prédio tal, na data tal e verificar o resultado que estaria afixado nas paredes. Também publicariam em um Jornal local de grande circulação. Peguei dois ônibus até a Universidade, e, aos 18 anos recém completados, fiquei em 10. lugar naquela lista, e, até aquele momento, foi o dia mais feliz da minha vida! Enfim se abriria uma nova realidade para mim e para a minha família.

Entrando para a Universidade Estadual fui eleita novamente chefe de turma nos 5 anos de curso. Estagiei sem remuneração, “carreguei o piano” de muitos professores para poder aprender mais. Atuei na Empresa Júnior, e eu era conhecida como uma aluna polêmica, que sempre tinha a resposta na ponta da língua, e o livro, motivo de discordância, debaixo do braço. Como todo aluno, odiava alguns professores e possuía um amor quase religioso por outros (de novo, as minhas anti-referências me ajudaram a traçar o meu percurso como docente). Atuei em movimentos estudantis em prol de conquistas para nós, jovens estudantes. Todos os dias, para frequentar as aulas, eu ia a pé. Quem sabe onde é o Bairro Sumaré, dá pra ter uma ideia da caminhada de pelo menos 1h20 até a Estadual. Como a minha atuação profissional era voluntária naquele período, eu fazia uns “bicos” diversos usando o Intel 486 para ajudar em casa e conseguia o suficiente para a condução da noite, retornando em um ônibus absurdamente lotado. O almoço e os lanches eu levava de casa, e havia conseguido um micro-ondas na Universidade para esquentar as marmitas. Vocês acham que eu sofria? Que aquilo tudo era complicado demais pra mim? Não! E não é hipocrisia. Eu me sentia a pessoa mais privilegiada do mundo por poder estudar aquilo que eu sempre quis desde pequena.

As blusas de banda de Rock e os coturnos do primeiro período deram lugar a um terninho preto e um sapato bicolor no décimo. Não quer dizer que deixei de usar as blusas de banda, até hoje as preservo, mas agora discernia melhor como deveria me portar e vestir enquanto profissional Administradora.

Não sei se fiz a escolha certa, mas optei por não participar do meu baile de formatura. Era o dispêndio financeiro suficiente para ir à praia e conhecer o mar que a minha avó morreu sem ver. Ajoelhei na areia de Porto Seguro pela primeira vez aos 22 anos e foi a minha forma de agradecer ao Universo pela maior conquista da minha vida até aquele momento: Meu diploma de um curso superior.

Confesso: logo que eu me formei eu senti muito medo. É comum sentir medo diante do desconhecido, por melhor que ele seja. Naquele momento eu era uma Administradora formada, não tinha mais a desculpa de ser uma estudante. O que aconteceu depois está registrado, com muito orgulho, em meu Lattes. Hoje posso dizer que sou feliz e realizada como profissional da Administração, ocupo um cargo público em minha área em uma das maiores Universidades Federais do Brasil e não vou parar por aqui, estou só começando. Sou também realizada como professora e como a mãe da princesa mais linda do mundo. Ajudei os meus pais oferecendo uma vida mais confortável para eles. Ajudei a minha irmã mais nova a se formar em Arquitetura e a ter oportunidades que eu não tive. Preservo grandes sonhos ainda não realizados e batalho para não deixar morrer aquela menina que comandava as brincadeiras… hoje ainda comando outras brincadeiras, entre aspas, mas agora na sala de aula, não é meus queridos?

Sei que a minha história deve ser semelhante a muitas das histórias de vocês. Como diz o poeta: “Mar calmo não faz bons marinheiros”. E são momentos como esse que revigoram as forças e faz todo o esforço valer a pena! Formatura é um momento único, onde as sensações vividas são únicas e inexplicáveis, pois é um momento de deixar as lágrimas e os sorrisos falarem e transparecerem a alegria das batalhas vencidas, das dificuldades superadas e contemplar o brilho resplandecente da conquista alcançada. E continuar… porque agora é um novo começo.

Alguns dias não serão nada fáceis, meus amores. As vezes somente a nossa fé poderá nos mover. Vai faltar ânimo, força e vontade, e sobrar asperezas na vida. Mas saibam que a dor educa, o erro ensina, o choro edifica… sempre foi assim. O importante é jamais cruzar os braços, nunca se dar por vencido. As vezes o caminho parecerá lento, não importa, somente não pare!

E que mensagem final, nesse momento tão importante, eu posso deixar para cada um de vocês?

Você precisa encontrar o que você ama. Você precisa entender o que veio fazer aqui nesse plano. Você precisa encontrar a sua missão enquanto administrador e principalmente enquanto ser humano.

Seu trabalho vai preencher uma parte muito grande da sua vida, e a única maneira de ficar realmente satisfeito é fazer o que você acredita ser um ótimo trabalho. E a única maneira de fazer um excelente trabalho é amar o que você faz.

Se você ainda não encontrou o que é, continue procurando. Não sossegue. Assim como todos os assuntos do coração, você saberá quando encontrar. E, como em qualquer grande relacionamento, só fica melhor e melhor à medida que os anos passam. Então continue procurando até você achar! Nunca sossegue, até ter certeza que encontrou

Você precisa acreditar em alguma coisa. Seja em sua garra, em seu destino, na vida, em um karma, ou o que quer que seja. Não é possível seguir sem acreditar. O seu tempo é limitado, então não o gaste vivendo a vida de um outro alguém. Não fique preso pelos dogmas ou padrões estabelecidos, não viva os resultados da vida de outras pessoas. Não deixe que o barulho da opinião dos outros cale a sua própria voz interior. E nunca esqueça que você será, sempre, o fruto de suas próprias escolhas…

E o mais importante de tudo: tenha coragem de seguir o seu próprio coração e a sua intuição. Eles de alguma maneira já sabem o que você realmente quer se tornar. Todo o resto é secundário.

Nessa noite o meu coração transborda da mais sincera gratidão!

Homenageando a minha pessoa, vocês estão homenageando todos aqueles que se esforçaram para vocês chegarem até aqui.

Saibam que hoje vocês fizeram com que a minha escolha de vida e a minha missão na terra tivesse muito mais significado.

Novamente: Obrigada formandos!“

[Nivea Almeida, em 02 de Agosto de 2019]