Pindorama - A cidade
PINDORAMA – A cidade
Memórias afetivas.
Por Martha Lisboa Belem
Pindorama. Terra quente e seca, lugar onde o inverno é tão claro quanto um dia no deserto, onde o Sol fica causticante e produz um calor estranhamente suave, onde qualquer brisa ou sombra traz um frescor quase impossível. Terra de solo seco e pedregoso, tão metamórfico quanto o tempo. Ao largo e ao longo da cidade é possível visualizar a chamada serra vermelha, da qual lembrava sempre, majestosa com suas feridas feitas pelas intempéries da Natureza. Terra onde o vento resistente dobra as árvores e arbustos por mais resilientes que sejam ao seu desejo tornando-as vergadas ao seu comando e direção. Terra onde as folhas de quase todas as plantas são rugosas, duras, cascosas e ásperas como da sambaíba que usei muito como lixa para ariar copos e panelas de alumínio, em contrapartida a suas flores em diferentes cores, formatos e perfumes, singelas, frágeis e misteriosas. Existem flores em forma de câmpulas que guardam orvalho e mel que podem matar a sede e fome de aves e insetos como os beija-flores. Algumas brotam do chão duro e seco como que por intersecção divina, trazendo cor, e atraindo todo tipo de “oropas” e vespas, algumas doces e amigas e outras escorpianas e bravas, como a que me beijou no cemitério abandonado da minha família, vi bem poucas por não ser época, mas lembro-me muito bem delas. A mais significativa para mim é a do pequi, branca, encorpada e de longos pistilos brancos, lembro mais pelas histórias de caça ao mateiro que meu pai contava e a delícia de seu fruto. De tantas flores resultam frutas de sabores tão diferentes quanto suas formas: jatobá, marmelada de bola, cagaita, mangaba, murici, pequi, saputá, só para citar algumas. Pindorama tem a magia do cerrado do planalto central brasileiro, apresenta uma paisagem mágica e indelével, única e de uma resistência ao tempo e as ações da Natureza e antrópicas impressionantes. As árvores e arbustos são um capítulo à parte. Existem arvores de grande e pequeno porte, que dão madeira de lei como jacarandá, angelim, araticum, jatobá e ainda os ipês, roxo, amarelo, rosa, branco. O céu a noite é um espetáculo à parte. Pode-se contemplar o Universo de uma forma única, e é possível ver cada estrela e planeta como em nenhum lugar que já estive, um céu noturno tão limpo que é possível ver a Via Láctea dançando ao fundo das estrelas mais aparentes até tirar seu folego. Pindorama é terra de muitas palmeiras: buritis, macaúbas, babaçu, tucum, e todo tipo de coco pequeno que o gado trás e rumina no curral fazendo a festa da criançada que vai apanha-las e quebrar em algum pedaço de quartzo para comer as amêndoas. Terra onde brotam olhos d’agua e nascentes onde a agua é límpida e doce como mel de jataí, é quente na madrugada e início da manhã e fria no calor da tarde. Terra de matas ciliares, e grotas que são verdadeiros oásis úmidos possibilitando a aglomeração de palmeiras de buritis, um fruto mágico que oferece mil formas de preparar coisas deliciosas como doces, bolos ou mesmo comer raspado e seco com leite quente tirado direto da teta da vaca no curral. Terra onde cada possível pedacinho de chão pode ser aproveitado de alguma forma e de onde é possível tirar o sustento em parceria com a Natureza. Existem ainda grandes extensões de reservas vivas, intocáveis e únicas de seu bioma. Terra do arroz plantado em sequeiro cuja plantação densa produzem uma das imagens mais lindas que já vi: o arroz em flor ou já quase seco dançam ao sabor do vendo num sincronismo delirante, posso fechar os olhos e perceber a música que o som das palhas produzem. Terra das melhores abóboras do mundo, melancia, maxixe, jiló, e tantas outras coisas miúdas que fazem da mistura do almoço e janta um verdadeiro banquete. Pindorama é terra de gente amena, castigada pelo Sol impiedoso, terra onde as mulheres cedo casam e muitos filhos vem a ter. Tenho “trocentos” primos e primas, nem dá para contar direito fora os primos de segundo, terceiro, quarto e quinto se consideram como de primeiro grau. Se chamam de primos e primas, o carinho é comparável ao de irmãos e seus filhos são sobrinhos uns dos outros. Tios e tias tem um cuidado de pais e mães com seus sobrinhos. Para minha tia Iracema todas, filhas e sobrinhas são “prencesas”, todas as mulheres o são. Seu olhar é tão doce e terno e seus beijos são tão suaves que quebram qualquer alma mais dura. Uma doce e sofredora mulher detenta de uma sabedoria ímpar. Minha tia Lioh é forte, ligeira, risonha e sentimental, apesar de aparecer dura e sarcástica. É surpreendente a forma como lida com as adversidades e como cuida de sua fazenda com toda sorte de bichos com tenacidade e resolução. As duas representam dois tipos de mulheres distintas, uma doce e aparentemente frágil, e a outra uma pequena força da Natureza capaz de cuidar e administrar gado e terra como ninguém. O povo de Pindorama mostra uma simpatia e alegria como nunca vi. As mulheres ainda olham o mundo das janelas talhadas em madeira rústica e sentam na porta em tamburetes forrados com couro de vaca e bancos compridos de madeira para olhar a vida. Ao te encontrarem as pessoas são atenciosas e simpáticas. Foi aí que me dei conta que eu já havia me esquecido como era ser feliz. A maioria das pessoas são raras e não são somente atenciosas e simpáticas, você pode sentir o cuidado, a hospitalidade e afetividade, elas não se escusam de um abraço, as pessoas não tem medo de abraçar e sorrir, mesmo que dentes lhe faltem. Para mim foram inúmeros sorrisos e abraços, beijos estalados sem cerimônia e convites para tomar café, comer biscoito, tomar água ou sentar para conversar e recordar idos tempos. As minhas voltas pelas ruas que eu conhecia como a palma da minha mão, e que me pareceram tão diferentes, encontrei velhos conhecidos que se lembravam de mim, da minha danadice, e não se cansavam de me contar as travessuras que eu fazia e das quais não tenho lembrança, eu juro. Sei que fui uma novidade, jamais havia voltado nesses trinta e cinco anos no estrangeiro, mas não senti de forma algum nenhum tipo de distância ou má vontade em ninguém. Descobri que havia esquecido de muitas coisas, dentre elas abraçar sem reservas, mesmo um desconhecido, sentir a Natureza como parte de mim, e apreciar pequenas coisas e gestos corriqueiros como joias de valor inestimável, como o cuidado e gentilezas do primo Délio, uma alma gentil e singela que aqueceu meu coração em muitos momentos. Meus dias em Pindorama depois de tantos anos, foram, leves, saudosos, reveladores e acima de tudo um retorno as lembranças quanto a quem realmente sou. A gratidão não cabe em mim. O sentimento de pertencimento a aquela terra ainda é difuso, mas lá eu tenho certeza de ter terra vermelha sob meus pés, vento fresco, Sol ardente, água fria de riachos que lavam sua alma e revigoram seu espirito, a doce gentileza das pessoas e todos os abraços e sorrisos que quiserem me dar de coração.
BsB, Junho de 2018.