Sobre as 'sutilezas' de um sistema opressor e o machismo dos 'inocentes'

Encare como quiser, pode dizer que está aberta a temporada de distribuição de carapuças — com patrocínio da sociedade patriarcal e apoio dos movimentos “machista, eu? ” E “não tem nada a ver, sou feministo”. Sim, é sobre machismo este texto. Não sobre as sangrentas estatísticas, não sobre seus efeitos e casos chamados de extremos — que tantos buscam nos fazer acreditar serem culpa exclusiva dos indivíduos, que ora não estavam em pleno uso de suas faculdades mentais, ora apenas reagindo, porque “sabe como é homem, né? ” É sobre as flores — na barba ou nas palavras bonitas — distribuídas sem pudor pelas mãos dos que julgam serem inofensivas suas desrespeitosas posturas, porque estão vestidas de um tom sereno de voz. Sobre gestos aparentemente bem-educados e carregados das melhores intenções, mas que só são direcionados a quem vive a dor e a delícia de ser MULHER (cabe aqui o grito, tantas e tantas vezes sufocado, entalado em nossas gargantas, por força física e/ou psicológica).

É importante ressaltar que “não foi minha intenção” não muda as consequências. É acréscimo de informação, verdade, mas não serve de borracha, nem é ingresso para máquina do tempo que dê direito a combo de poderes mágicos para mudar o que já foi feito. É possível, no entanto, utilizar a energia investida na “justificativa” — que explica, mas não justifica de fato — para outros fins. Analisar-se e se colocar disposto a admitir o erro são um ótimo começo. Isso se houver realmente a preocupação e interesse em não continuar reproduzindo determinados comportamentos (ainda que pareça duvidosa tal possibilidade, fica o lembrete).

Não sou ingênua a ponto de esperar que este punhado de palavras vá fazer grande diferença, mas não vou me privar do desabafo. Não quando não se trata de uma situação particular. Não quando não sou eu a única atingida. Não quando tenho a oportunidade de falar graças às TANTAS que lutaram tão antes de mim. Não quando tenho a consciência de que para cada feminicídio acontecer, houve uma infinidade de “inocentes” atos sendo repetida cotidiana e exaustivamente. Mesmo, infelizmente, não trazendo aqui qualquer novidade, não guardarei para mim o que não é só meu.

Do seu gestor ao seu subordinado, do colega “desconstruidão” e estudado ao curioso sobre o assunto. Todo dia, santo ou não, na localidade mais próxima de você, existe um macho — antes fosse apenas um — fortalecendo esse sistema que não para de nos matar. Ele te dá aulas sobre as coisas mais óbvias, porque evidentemente nosso cérebro é muito inferior ao dele e jamais seríamos capazes de raciocinar sobre qual for o assunto sem a indispensável ajuda de um super-macho-ativar. Ele repete o que você acabou de dizer, em outras palavras, com entonação de novidade e continua repetindo, esperando pelos aplausos que aparentemente fazem parte de uma dieta diária. Ele não aceita que não seja a dele a última palavra. Ele “gentilmente” ignora, pisoteia, tripudia sobre sua fala, seja ela explicação opinião, solicitação, orientação, ordem… Pedido ou proibição então, nem se fala. Mas se você, generosa, paciente, didática, mostra para o tão bem-intencionado-eu-jamais-faria-isso-de-carvalho que ele está reproduzindo comportamento machista, “nooooooooooooossa”. “Eu não. Eu nasci de uma mulher, eu tenho irmã, namorada, vizinha, colega de classe. São todas mulheres. Sou um cara legal. Eu entendo o que você está dizendo, mas é que realmente…”. Mas. M A S.

M — A — S.

M

A

S.

Ele não é só ele. Ele é eles. Vários, muitos, tantos. Ele é todos, em muitos momentos, em pelo menos alguns durante suas vidas. Ele foi educado, criado nesse mundo, aprendendo desde cedo que deles viemos, que a eles tudo é permitido. Eu sei, você sabe. E o fato de sabermos isso não exclui o de que falta sim boa vontade para sair da zona de conforto, para se libertar da “síndrome de modinha para Gabriela”. Me perdoem a redundância. Eu queria mesmo que fosse este um assunto que não precisasse ser abordado. É cansativo seguir repetindo o óbvio.

Falando mais cedo com uma mana, ela me perguntou: “Elen, quem é que quer abrir mão de seus privilégios? ” Respiro fundo. Talvez se se tratasse apenas de mim, se eu não tivesse presenciado, lido, ouvido e vivido o cúmulo (por ironia, substantivo masculino) do sistema machista, eu não desse importância. Será? Bobagem, nossa inocência é roubada logo muito cedo. Nessa chance eu não acredito.

A gente segue, então, agradecendo porque mais um dia se passou e não fomos vítimas fatais, mas sabendo que não existe a opção de não sentir a dor das que continuam sendo, várias vezes por dia, todos os dias, em todos os lugares do mundo. A gente segue, então, entendendo que não existe a opção de baixar o escudo e que é necessário fazer a diferença, começando pelos metros quadrados que ocupamos. A gente segue, então, combatendo o que parece insignificante, porque mal que não se corta pela raiz, prolifera. E sempre que necessário a gente desabafa, porque sermos consideradas as chatas, paranoicas, “mimizentas”, feminazis, é a menor das nossas preocupações, se é que o são. A gente segue, então, acreditando. E acreditando na prática.

Dizem por aí que a esperança é a última que morre… Sendo um substantivo feminino, eu tristemente entendo o porquê de ser tão difícil sua sobrevivência. Só que, como já disseram, luto para nós é verbo.

Para você, rapaz, eu não peço nada. Até porque eu sei, todas sabemos, já foi citado, para você nossa vida não vale tanto quanto a sua. Nossa palavra muito menos.

Para você, MULHER, se me permitir, peço que não se cale, se possível for. A maior parte de nós não tem essa escolha. E às Sagradas Forças que regem meu Ori, eu sigo agradecendo por ter sobrevivido aos vários infortúnios e pedindo que me oriente, para que eu seja digna, em ações, dos privilégios dos quais eu, dentro de um recorte, gozo.

Encare como quiser. Eu sigo encarando como mulher.

Elen Rodrigues
Enviado por Elen Rodrigues em 07/03/2018
Reeditado em 07/03/2018
Código do texto: T6272763
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