Discurso - Lançamento do livro Memorial de um Sertão.
Meus senhores e minhas senhoras, boa noite.
De início, gostaria de tranquilizar a todos sobre a duração da minha fala, pois assim me advertiu José de Alencar: “Todo discurso deve ser como o vestido das mulheres; não tão curto, que nos escandalizem, nem tão comprido, que nos entristeçam”.
Há cinco anos, comecei a me interessar pela história deste velho sertão rural. Não tinha noção de que estava me embrenhando por caminhos irretornáveis. Se soubesse, talvez tivesse desistido. Agora é tarde. Nada mais posso fazer. Meu destino fora totalmente arrebatado pelas veredas da literatura sertaneja. Nenhuma influência mais possuo sobre ele.
Pelo menos, fui acalentado por Machado de Assis, o príncipe da nossa literatura, segundo Arthur Azevedo: “Não se luta contra o destino; o melhor é deixar que nos pegue pelos cabelos e nos arraste até onde queira alçar-nos ou despenhar-nos”. Já Rui Barbosa me injetou motivação para continuar escrevendo: “Não falsifica a História somente quem inverte a verdade, senão também quem a omite”. Guimarães Rosa aconselhou-me a “jamais parar de escrever, a agir de modo semelhante a um rio, que nunca quer chegar, mas ficar largo, profundo”.
E assim tem sido. Quanto mais pesquiso e escrevo, mais me sinto na obrigação de perseverar e prosseguir. Certa vez, perguntaram-me onde encontro tanta inspiração para o meu repertório de histórias sobre São Gonçalo. Sinceramente, não soube responder. Todavia, encontrei respostas em Machado de Assis: “Palavra puxa palavra, uma ideia traz outra, e assim se faz um livro, um governo, ou uma revolução. Alguns dizem que assim é que a natureza compôs as suas espécies”.
Clarice Lispector, com retalhos filosóficos, também me incentivou: “Enquanto você tiver perguntas e não encontrar respostas, continue a escrever”. Mário Quintana me inspirou com algumas de suas pérolas: “São os passos que fazem o caminho”; “quem elege a busca não pode recusar a travessia”; “há noites que eu não posso dormir de remorso por tudo o que eu deixei de cometer”. Embora para ele seja tudo muito fácil, pois certa vez me confessou que não tinha paredes, mas apenas horizontes!
Meus amigos, para ser sincero, não sinto maiores dificuldades para expressar o que sinto pela minha terra, pois não escrevo com as mãos, mas sim com o entusiasmo do coração. De acordo com José de Alencar, “o coração é sempre verdadeiro, não diz senão o que sentiu”. Para a minha latente facciosidade pelo lugar, encontro explicações, mais uma vez, em Quintana: “O homem – eternamente escravo de suas paixões pessoais – é absolutamente incapaz de imparcialidade”.
Todavia, devo confidenciar amargamente que, às vezes, percebo uma atroz frustração no meu interior por não me sentir como um poeta. Da mesma forma que há craques de futebol que não sabem driblar, considero-me um escritor que não saber fazer poesia. Ainda bem que João Cabral de Melo Neto conforta o meu inquietar, a minha angústia: “mesmo sem querer, fala em verso, quem fala a partir da emoção”.
Convém ressaltar que não enveredei pelos caminhos da literatura de forma desorientada. Muito pelo contrário. Lá atrás, consultei alguns consagrados escritores antes de iniciar a minha deleitosa empreitada. Ariano Suassuna me disse que “o autor que se julga um grande escritor, além de antipático é burro, imbecil. Um escritor só pode ser julgado depois da sua morte. Muito tempo depois”. Mário de Andrade me alertou que “ninguém escreve para si mesmo, a não ser um monstro de orgulho. A gente escreve pra ser amado, pra atrair, encantar...”
Certa noite, encontrei-me com Clarice Lispector, que me recomendou a escrever sem esperança de que os meus escritos alterem qualquer coisa. Não altera em nada, disse-me ela... “Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro...” Já Luis Fernando Veríssimo desabafou: “Escrever não é fácil. Quando a gente acha que tem todas as respostas, vem a vida e muda todas as perguntas”.
Para os críticos da minha singela obra, novamente, solicitei ajuda a alguns renomados poetas com vistas abrandarem o seu ímpeto. Ariano Suassuna disse-lhes que “toda arte é local antes de ser regional, mas, se prestar, será contemporânea e universal.” No mesmo sentido do colega, Vinicius de Moraes afirmou que “ninguém faz tudo bonito sempre. Até Deus, único ser perfeito do universo. Ele fez o cavalo e também o rinoceronte”. Machado de Assis completou dizendo que “defeitos não fazem mal, quando há vontade e poder de os corrigir”.
Memorial de um sertão é a obra que lhes apresento. Um sertão cuja natureza é bela e paradoxal. Dentre tantos encantos, produz o vento, que segundo José Américo de Almeida “regula a vida noturna da população, uma vez que todos aguardam este refrigério natural, que embala o sono dos sertanejos”. Este mesmo vento, que sopra nos quatro cantos do planeta, protagoniza e embala os contos e romances mais fascinantes dos grandes ficcionistas. Fernando Pessoa dizia que “só de sentir o vento passar já valeu a pena viver”. Mário Quintana costumava falar que “o vento é o pastor das nuvens”. Certa vez, Cecília Meireles falou: “adestrei-me com o vento e minha festa é a tempestade”.
No entanto, nem tudo é perfeito. O próprio Quintana, voltando a discorrer sobre este maravilhoso fenômeno natural, constatou: “a maior dor do vento é não ser colorido”. E assim também é com este sertão de meu Deus: imponente, dadivoso, inspirador e imperfeito. Berço de geniais poetas, a dor maior do sertão nordestino é não ser a pátria de Euclides da Cunha, que lhe rendeu as mais vultosas homenagens com “o relato da guerra de canudos”, uma obra épica, conforme Ariano Suassuna.
Sou um sertanejo nato. Se assim não fosse, acho que seria digno, modéstia à parte, de merecer do Nordeste o título de cidadão nordestino, face à forte identificação com a região. Assim como Ariano Suassuna, Romero Cardoso e tantos outros imortais da nossa literatura, admiro e defendo com fervor as nossas raízes, artes, culturas e tradições. Regozijo-me por possuir uma caatinga só para nós, visto não haver registro deste bioma em outra parte do planeta. Leões, tigres, águias, zebras e elefantes não me produzem maiores encantamentos. Deleito-me mesmo é com o olhar da onça parda, com as travessuras dos preás, com a astúcia de tejus e lagartixas, com o canto regional de azulões, rolinhas, sabiás, acauãs, asas brancas, assuns-pretos...
Até admiro a boa música, a arte e a literatura estrangeiras. Mas nestas terras semiáridas a poesia brota da alma, produzindo devaneios, fábulas, imaginações, além de retratar a face trágica do sertão, reinventando a literatura brasileira. Deste modo, sinto-me absolutamente saciado com a genialidade de Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Patativa do Assaré, Sivuca, Castro Alves, Joaquim Nabuco, José Lins do Rego, Raquel de Queiroz, Augusto dos Anjos, Gonçalves Dias, Graciliano Ramos...
Para não dizer que não falei das flores, revelo aos senhores e senhoras que não troco os jardins deste sertão por nenhum outro. Os nossos são mais floridos, graças à beleza e imponência dos angicos, mofumbos, pereiros, aroeiras, mandacarus, juremas, juazeiros, palmas, marmeleiros... Para muitos, o xiquexique representa a bandeira do Nordeste, enquanto Euclides da Cunha decretou o umbuzeiro a árvore sagrada do sertão.
Os amigos e conterrâneos que louvam nossa singela contribuição para a preservação da memória deste sertão podem ficar tranquilos, pois continuaremos a escrever. Muito embora tenhamos nos deparados com as dificuldades para a difusão e propagação da nossa literatura regional, nós não fraquejaremos, nem desistiremos. Iremos até o fim.
Prosseguiremos os escritos sobre o açude, a barragem, a gruta de Lourdes, as sangrias, o rio Piranhas, as nossas ilhas, as secas, a fé do nosso povo, o DNOCS, o IAJAT, as visitas dos presidentes republicanos...
Escreveremos mais sobre a Rua Dezesseis, o posto de agronomia, as tamarineiras, o silo aéreo, a garagem dos tratores, a casa de farinha, a zootecnia, a medidora, a HPS, a casa-de-força, a estação de meteorologia, sítios e núcleos...
Escreveremos com confiança crescente e força na literatura sertaneja. Defenderemos os valores e tradições de nossa gente, qualquer que seja o custo, independentemente dos percalços.
Escreveremos sobre o Clube 4S, o antigo grupo escolar, o Estevam Marinho, o Guimarães Duque, o Ceres Clube, o Paulão, o pomar 6, o futebol, a praça central, os carnavais, as nossas orquestras e bandas marciais, os festejos juninos e os desfiles cívicos...
Escreveremos com nostalgia sobre a cooperativa de seu Menezes, Nelito e Eládio; o Catete de seu Cazuza, Romeu, Emidinho e Jaia; a casa de hóspedes e o parque das acácias de dona Emília, Joaninha e Soledade; o hospital maternidade de dona Rosa, Gilda, seu Genésio, Bernardino, George Brandão e Dr. Zé Gadelha; a usina de Pedro Antunes e Antonio Batista; as pensões de dona Batista e Marieta; a telegrafia de Zé Laurindo e seu Valdemar; as difusoras de Maia e Cecílio; as rurais de Ferreirão, Otacílio e Zé Avelino; as missas de Padre Cipriano e Padre Siqueira; as aulas de Maria das Neves, Vanilda Pordeus e Bida; as fotografias de Gabriel e Antonio Luiz; os gols de Zilton, Chico Antunes e Bastião do Coco; sobre os guardas do DNOCS...
Escreveremos mais e mais sobre a fábrica de gelo de José da Silva, o cinema de Antonio Luiz e Cecílio, a barbearia de Manoel Rodrigues, a maçonaria de João da Penha, o jeep de Zé Perbuir, as construções de Antonio Galdino, Chico Chagas e Luiz Soares, os ensinamentos de Mestre Olímpio, a dedicação de Libério e Maria José de Adauto, a longevidade de Emília Pordeus, as consultas de Dr. Chico Carneiro e Dr. Sinval, as ordens de Dr. Paulo Guerra, Dr. Clodoaldo, Dr. Herberto, Dr. Julio Mariz, Dr. Osvaldo Cruz, Dr. Joaquim Carneiro, Dr. Zenon...
Enfim, sobre a saga da nossa gente. Não desistiremos jamais...
Muito obrigado.