AUGUSTO FREDERICO SCHMIDT VISTO DE PERTO

(Discurso pronunciado na Academia Luso-Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro, em 21 de agosto de 2007.

Exmo. Sr. Presidente da Academia Luso-Brasileira de Letras, Escritor e Professor Francisco dos Santos Amaral Neto,

Demais membros da mesa, Senhores acadêmicos,

Acadêmica Marita Vinelli, a quem devo o convite para aqui pronunciar esta palestra, e a quem agradeço as palavras generosas da apresentação.

Senhoras e senhores.

É com emoção que inicio estas considerações sobre o poeta Augusto Frederico Schmidt, de quem fui amigo e colaborador durante oito anos, os últimos de sua vida atribulada e profícua. Convivi com ele, principalmente no escritório de seu apartamento, no 8° andar da Rua Paula Freitas, 20, quase que diariamente, revendo os artigos que publicava n’O Globo, preparando seus livros para publicação e trabalhando enfim em tudo o que se referisse à sua produção intelectual naqueles anos agitados, de 1958 ao início de 1965.

Confesso-vos que há anos preparei uma palestra com o mesmo título de “Schmidt visto de perto”, à espera do momento em que pudesse discorrer sobre o poeta. Apresentou-se agora esta oportunidade, mas com o tempo aquele trabalho perdeu-se pelas entranhas do computador, e pelas gavetas atulhadas de papéis.

Foi bom que isso ocorresse, propiciando-me o prazer de rememorar fatos e situações de que participei, e relembrar os que conheceram de perto essa personalidade marcante, desde os seus primeiros tempos de vida.

Schmidt visto de perto. Com este titulo O Globo publicou, na manhã em que se velava o corpo do poeta, uma página em que, a pedido de Roberto Marinho, relembrava alguns fatos que eu presenciara da vida daquele seu amigo. Retomo o título, temeroso de que ele leve a crer que falarei apenas do Augusto Frederico Schmidt que eu conheci, com quem privei alguns anos, diariamente, como seu secretário literário. Mas isso seria colocar-me no centro de sua vida de poeta, memorialista, homem de negócios, político, diplomata, dos muitos Schmidts que pontificaram por quarenta anos ou mais na vida do país. Seria uma vaidade que dispenso, preferindo chamar à cena alguns dos que também privaram de sua amizade, ou o viram em algum momento..

Os que o conheceram, desde a adolescência, puderam ver nele uma personalidade marcante e contraditória. Ora alegre, brincalhão, com gargalhadas que se tornaram famosas, ora taciturno, solitário, ensimesmado, desesperançado, triste, noivo da morte como a si mesmo denominou em um soneto da mocidade.

Nasceu no Rio de Janeiro, esta cidade que tanto amou. Talvez pelo seu sobrenome estrangeiro precisasse afirmar a sua condição de brasileiro e de carioca, como o fez nos anos da mocidade, com seu primeiro livro, quase uma plaquete, o Canto do Brasileiro Augusto Frederico Schmidt, e nos últimos anos de vida no belo artigo “Eu sou do Rio”, publicado em O Globo.

Os que o viram criança, menino quase solitário numa casa onde se destacavam as vozes femininas, muito religiosas, avó, tias, a mãe e duas irmãs, os que assim o viram talvez não pudessem prever sua futura inclinação para a poesia. Seu espírito lírico foi-se formando premido pelos acontecimentos de sua vida, viagem à Europa ainda bem criança, estudante interno num colégio da Suíça, órfão de pai longe da pátria, a volta ao Brasil em plena guerra mundial de 1914-18, as incertezas da viagem, a mãe tuberculosa também pouco depois chamada para junto do Criador. Herdou da mãe o gosto pelos livros, uma delicadeza de espírito, a expressão do olhar, e do pai uma instabilidade emocional, uma certa boemia, a vontade de partir sem saber para onde.

Quando menino, peregrinou por colégios do Rio, Liceu Francês, Colégio São José, Colégio São Bento. Os colegas viram-no desambientado, desamparado, tentando em vão seguir os programas que não lhe diziam nada, que não despertavam seu interesse. Exceção feita às aulas de Português, em que encontrou alguma graça, e foi numa dessas aulas, no Liceu Francês, que se decidiu pela poesia, após ouvir um professor ler, como ninguém mais o fez, com a mestria que jamais encontrou em nenhum Vilaret, em nenhuma Margarida Lopes de Almeida, em nenhuma Berta Singerman, um poema do seu livro de leitura.

Ainda adolescente, julgou sua família que deveria fazer-lhe bem estudar fora do Rio, e foi em Juiz de Fora, no famoso colégio metodista Instituto O’Granbery que prosseguiu os estudos. Não praticava, ou o fazia canhestramente, os exercícios e jogos que o colégio incentivava entre os alunos. Seu apelido de então, “o Gordo”, iria marcar sua condição física por toda a vida. Na maturidade, tendo feito amigos e inimigos por efeito de sua atuação na política, era chamado por estes últimos de “Gordinho sinistro”. Mas n’O Granbery sempre foi “o Gordo”. Ali o que mais o atraía eram as reuniões do Grêmio Coelho Neto, onde começou a exercitar-se nos debates, na oratória e na convivência com outros espíritos irmãos.

Voltando ao Rio, depois de tentar sem êxito ser aprovado nos exames do Colégio Pedro II, restou-lhe empregar-se no comércio. Enquanto outros jovens se preparavam para ingressar numa faculdade, sua universidade iria ser a vida de empregado no comércio, o que o envergonhava e procurava esconder, mas que significou muito em sua vida futura. Durante os quase três anos que trabalhou numa casa importadora e distribuidora de tecidos e artigos de armarinho, na Rua da Quitanda, chegava sempre com um livro na mão, e sempre que podia, ao fazer uma entrega, entrava na Livraria Garnier, ali perto, na Rua do Ouvidor. Ou, dirigindo-se ao fundo da loja, avistava por uma fresta a Livraria Briguiet, situada na Rua Sachet, atual Travessa do Ouvidor. Um dos chefes da firma, ao vê-lo envolvido com livros, sentenciava: “Qual, o cajo não dá mesmo para esta vida.”

Um futuro escritor que o viu de perto foi Marques Rebelo, então o adolescente Eddy Dias da Cruz, que corrigiu os primeiros versos do Augusto Frederico, pois também se iniciava na poesia, antes de ser romancista. Mais tarde, escritores o viram e ouviram, como o romancista Cornélio Penna, de quem foi amigo constante desde a juventude, o poeta Murilo Araújo, a figura mais importante nas reuniões noturnas no antigo Cafe Gaúcho, que sem as cadeiras e sem os encontros noturnos de intelectuais ainda resiste na Rua Rodrigo Silva, esquina da São José, e tantos outros, jornalistas, artistas, que o adolescente aspirante a poeta ia ouvir e que o ouviam também no entusiasmo do amanhecer de sua mocidade.

Depois, indo trabalhar em São Paulo, antes dos vinte anos, conheceram-no agitado, vendedor de aguardente e já poeta, os escritores Plínio Salgado (cujo romance O estrangeiro leu ainda em provas), Mário de Andrade (do qual teve nas mãos um exemplar de Macunaíma antes mesmo que o autor), Oswald de Andrade e outros, nacionalistas que, alguns anos antes, haviam participado da Semana de Arte Moderna. Iria mais tarde, já na maturidade, confessar que se cansara, então, de tanto verde, de tanto tapuia, de tanto verde-e-amarelo dos modernistas, preferência de alguns deles que de alguma forma iria propiciar anos depois o lançamento do Integralismo, movimento a que o jovem Schmidt não aderiu.

(Abro aqui um parêntese para esclarecer que, embora amigo de Plínio Salgado, Schmidt jamais ingressou nas fileiras daquele movimento. Como editor, pouco depois, publicou livros de doutrinação do Integralismo, de autoria de Plínio Salgado, Gustavo Barroso e de outros líderes do movimento, o que tem levado algumas pessoas a considerar Schmidt-editor uma editora porta-voz do Integralismo. Um levantamento bibliográfico daquele período mostrará, no entanto, que a Livraria José Olympio Editora publicou mais livros sobre o Integralismo do que Schmidt-Editor.)

Naqueles anos em São Paulo, o jovem Schmidt, com sua atividade de vendedor de aguardente e de álcool, morava num quarto que dividia com um estudante da Faculdade de Direito, um rapaz rio-grandense que propagava idéias da esquerda, e que naquele momento crítico da vida do negociante-poeta exerceu sobre este grande influência. Dois anos depois, em carta a Alceu Amoroso Lima, Schmidt ainda citava com admiração o exemplo de seu colega de pensão, o idealismo dos moços que conhecera ao lado do jovem socialista que se chamava Plínio Melo.

De volta ao Rio, depois de percorrer o interior do Paraná em negócios de madeiras, foi trabalhar em Nova Iguaçu, numa serraria que fabricava caixas de pinho para exportação de laranjas, então a principal riqueza do município. Foi durante sua permanência em Nova Iguaçu que conheceu Alceu Amoroso Lima, o então crítico Tristão de Athayde, com quem trocava cartas e livros. O crítico foi visitá-lo na serraria, tornando-se um amigo dedicado durante toda a vida, apesar de alguns desencontros nos últimos anos. Quem o viu bem de perto também foi Jackson de Figueiredo, o pensador católico fundador da revista A Ordem e proprietário da Livraria Católica, da qual Schmidt depois foi gerente e pouco mais tarde seu dono.

Em 1931 tornou-se livreiro (Livraria Schmidt) e editor, Schmidt-Editor. Na sua editora conheceram-no de perto muitos escritores que passavam para uma conversa, ou mesmo para publicar um livro. Entre esses, Jorge Amado, que ficou devendo ao jovem editor Schmidt a publicação do seu primeiro romance, País do carnaval, e do prefácio que ele escreveu para o livro; Rachel de Queiroz, que ainda mocinha, veio do Ceará conhecê-lo e tratar da publicação de João Miguel, seu segundo romance; Gilberto Freyre, que refundia sua tese universitária, para publicação pela editora de Schmidt seu primeiro livro, Casa grande e senzala. Muitos outros iam conhecer o poeta, em seu escritório de editor, no número 27 da Travessa do Ouvidor, antiga Rua Nova do Ouvidor, em certa época denominada Rua Sachet. Conheceram-no de perto, então, jovens escritores como Otávio de Faria, o futuro autor da Tragédia Burguesa, série de romances em que focalizou a sociedade brasileira e a alma de seus componentes. Foi pela mão de Otávio de Faria que Schmidt conheceu o quase adolescente Jorge Amado, que por alguns anos freqüentou o Schmidt-editor. Em seu livro Navegação de cabotagem, o escritor baiano refere-se várias vezes a seu primeiro editor, narrando passagens a que assistiu, e de que participou no escritório do poeta. E num depoimento que me enviou há alguns anos, fez considerações sobre as atividades de Schmidt como editor. “Nos fundos da livraria encontrava-se num pequeno escritório uma grande mesa, atrás da qual o poeta aboletava-se escrevendo poemas, conversando com amigos, e sobretudo dando longos telefonemas para a namorada, sobrinha formosa de Jayme Ovalle, com quem viria a se casar.”

Como editor, tinha bom faro, o poeta. Vejamos três exemplos apenas: O pintor Santa Rosa, recém-chegado de Maceió, em encontro na livraria de Schmidt, deu-lhe a notícia de que um ex-prefeito de Palmeira dos Índios e pequeno negociante, chamado, todos o sabem, Graciliano Ramos, tinha um bom romance escrito alguns anos antes e que estava reescrevendo. Seu nome ganhara destaque desde que o Jornal do Brasil publicara trechos de relatório de sua atuação no município, documento totalmente diferente do comum, onde havia toques literários de grande efeito. Schmidt pediu a seu secretário, Rômulo de Castro, antigo funcionário da Livraria Católica, que escrevesse a Graciliano solicitando-lhe o livro. Publicado algum tempo depois, alcançaria grande sucesso. Outro fato se deu no consultório, ali perto da editora, de um médico que atendia de graça a escritores amigos. Iniciando suas atividades de editor, Schmidt foi consultá-lo. Sabia que ele já publicara um livro de assuntos médicos. Na conversa, tomou conhecimento de que ele estava concluindo um romance, mas que não queria publicar logo. Por insistência do poeta, que quase lhe tomou os originais sob protesto do autor, o romance foi publicado com grande êxito. Chamava-se José Geraldo Vieira o autor, e o romance, A mulher que fugiu de Sodoma.

O último dos três casos a que me referi ocorreu com um jovem, ainda inédito, que trabalhava no escritório do tio, de quem Augusto Frederico Schmidt acabava de ser sócio em negócios de seguros. O rapazinho, conversando com Schmidt, mostrou seus conhecimentos literários, discorrendo com desenvoltura sobre romancistas e poetas. Encerrando a conversa, Schmidt apontou para uma gaveta da mesa do e ordenou: Me dê o romance que você guarda na gaveta. Surpreso, o o moço retira da gaveta e lhe entrega o manuscrito de um romance. O título: Maleita. O nome do rapaz: Lúcio Cardoso. Foi um dos sucessos de Schmidt-Editor e a estréia do grande romancista e poeta.

Creio já chegada a hora de revelar minhas lembranças pessoais do memorialista, jornalista e animador político e sobretudo poeta. O Schmidt que eu vi de perto. Não o conhecia senão de nome, de poemas publicados no Correio da Manhã, e outros jornais, das entrevistas, da televisão. Quanto a poetas e escritores, já conhecia vários, depois que vim definitivamente morar no Rio de Janeiro, em 1953. Visitara Manuel Bandeira em seu apartamento na Avenida Beira-Mar. Conhecera Carlos Drummond de Andrade, quando publiquei meu pequeno livro Raimundo Correia estudante, apresentado por José Simeão Leal, diretor do Serviço de Documentação do MEC. Augusto Meyer, quando assisti a um curso por ele ministrado na Faculdade Nacional de Filosofia, à época situada na Av.Presidente Antônio Carlos. Brito Broca, no Instituto Nacional do Livro. E vários outros. Mas Schmidt junca o vira pessoalmente.

Uma tarde, em meados de 1958, estava posto em sossego no apartamento em que morava, na Praia de Botafogo, quando o telefone toca. “Queria falar com Waldir Ribeiro do Val”, ouvi ao atender, e em seguida: Aqui é o Augusto Frederico Schmidt”.

Pensei a princípio que se tratasse de um trote, tão em voga à época, em que os telefones não eram tão difundidos como hoje. “Sou eu mesmo”, respondi, ainda um pouco em dúvida. Era possível que uma figura tão importante no cenário político de então, um poeta tão famoso, iria telefonar-me assim sem mais nem menos? Percebendo minha estupefação, continuou dizendo que conhecida meus trabalhos sobre Raimundo Correia e gostaria de conversar comigo. Se podia procura-lo em seu apartamento. Marcamos para o dia seguinte. Ele deu-me o endereço (Paula Freitas, 20, 8° andar) e antes de desligar perguntou-me a minha idade.

-- Trinta anos? Ótimo, disse ele.

No dia seguinte, sete e meia da noite, subi ao seu apartamento em Copacabana. Depois de alguma espera, o próprio poeta, em passos lentos, abriu-me a porta. Estava ali, diante de mim, o poderoso Schmidt. Ao cumprimenta-lo, desculpei-me de chegar tão cedo. Estaria jantando?

-- Ai de mim! Ai de mim, eu não posso jantar!

Minha primeira impressão foi de surpresa. Como alguém, com tanta fama e poder, se mostrava tão fragilizado e lamentoso, diante de um jovem totalmente estranho?

No seu escritório-biblioteca, não muito grande, as paredes cobertas de estantes de madeira, os livros belamente encadernados, Schmidt disse-me que conhecia os meus trabalhos, e que fora ele mesmo que me escolhera para conversarmos. Fez perguntas sobre minha vida, o que fazia, em que trabalhava, e convidou-me a trabalhar com ele, como seu colaborador, na verdade seu secretário-literário. Minhas funções ele declinou na mesma hora: rever os artigos que escrevia para O Globo, levá-los à redação, reunir seus trabalhos e preparar a edição de seus novos livros, e ajudar nos trabalhos da Operação Pan-Americana, que então se iniciavam.

Comecei no dia seguinte, pela manhã, e lá já encontrei a datilógrafa Yetta, que passava à máquina os artigos, antes da primeira revisão. Dias depois comecei a organizar o volume As florestas. Organizei a Antologia poética, que saiu pela Editora Leitura, de Barbosa Mello. Vieram depois Babilônia, livro de sonetos modernos, com capa feita a meu convite pelo artista Adir Botelho. Mais tarde, preparei Antologia de prosa, publicada pela Letras e Artes, para a qual escrevi a orelha, não assinada, republicada na 2ª edição, há poucos anos. Em 1964, sugeri ao poeta a publicação de um livro de artigos políticos, cujo título foi discutido no escritório de Schmidt. A sugestão vencedora, Prelúdio à revolução, foi de autoria do então jovem deputado federal Antônio Carlos Magalhães, recentemente falecido, que era assíduo freqüentador da casa de Schmidt. O livro saiu como a obra de estréia da minha editora, Edições do Val que durou alguns anos.

Schmidt escrevia como um autômato, às vezes atendendo a um telefonema, ou falando a alguém. Daí a letra quase ininteligível, que às vezes ele mesmo não conseguia decifrar.

Estávamos no Governo Juscelino Kubitschek, a presidência ainda se exercia no Palácio do Catete, e Schmidt escrevia muitos dos discursos presidenciais. Juscelino e Schmidt falavam-se quase diariamente. Schmidt argumentava, discutia, debatia, sempre com veemência os diversos assuntos que estavam na pauta do dia. Schmidt era sempre veemente, desejando ver aceitas suas ponderações. Um dia ele encerrou uma discussão dizendo: “Juscelino, o problema é que eu sou muito mais juscelinista que você.”

A casa do poeta, por esse tempo, transformara-se em um pequeno Itamaraty, de onde saíam mensagens aos presidentes dos 21 países latino-americanos, e também ao Presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy.

Grande era também o número de políticos, militares, deputados que visitavam o apartamento da Paula Freitas, 20. Jornalistas compareciam com freqüência, para entrevistá-lo ou colher notícias em primeira mão, pois ele se transformara num informante privilegiado. Entre os jornalistas mais assíduos estavam Wilson Figueiredo e Hermano Alves. Schmidt gostava de ser centro das atenções, e às vezes me perguntava: “Está anotando isso, para a minha biografia?” Talvez estivesse brincando, mas eu, mentindo, respondia que sim.

Na sua qualidade de presidente da Delegação brasileira no Comitê dos 21, e de Embaixador do Brasil à Conferência das Nações Unidas, em Nova Iorque, era auxiliado por diplomatas do Itamaraty. Quem muito o ajudou, à época, na organização da Operação Pan-Americana (OPA) foi o então secretário Mozart Gurgel Valente, anos depois Embaixador do Brasil em Washington, onde veio a falecer. Estava à disposição de Schmidt. Mas sofria com a falta de organização do poeta. Um exemplo: estávamos no escritório de Schmidt às 8 da manhã. Às 10 Schmidt dizia: Aguardem, que já volto. Meio-dia, uma da tarde. Mozart impaciente, mas resignado, esperava. Finalmente íamos almoçar pelas redondezas, às pressas. E o poeta só regressava no final da tarde. Outro precioso auxiliar na correção dos discursos feitos por Schmidt, para si próprio e para o Presidente da República, era o filólogo Antônio José Chediak, à época diretor da Seção de Obras Raras da Biblioteca Nacional e professor do Colégio Pedro II.

Foi na casa de Schmidt que um dia conheci o então secretário do Itamaraty Alberto da Costa e Silva. Assisti à conversa de ambos, quando Schmidt comentou, com muita propriedade e conhecimento de causa, com o jovem poeta os livros do pai deste, o poeta Da Costa e Silva, principalmente Sangue e Zodíaco.

Surgiam às vezes fatos curiosos. Um almirante (creio que da reserva) chega sem ser esperado, o empregado lhe abre a porta e o visitante quase entrando na sala contígua à biblioteca, o poeta corre rápido à entrada da biblioteca, e puxa as duas portas sempre ocultas, deixando apenas uma fresta central, da qual nervoso grita: -- Não posso recebê-lo agora, Almirante, eu estou nu! Não estava, nunca aparecera assim: de manhã bem cedo usava um robe, antes de ir para o banho.

Telefonema diário, bem cedo, era o de Roberto Marinho. Não era preciso mandar repórter do jornal, o próprio diretor colhia as novidades.

Balzac afirmou que não há grande homem para o criado de quarto, por tudo em que este participa da vida íntima do personagem. No caso de Schmidt, isso não podia acontecer. Embora cordial e amigo, ele não dava intimidade a seus colaboradores, tratando-os sempre de Professor ou Doutor. E estes só o tratavam de Dr. Schmidt.

Preocupava-se com o futuro, embora parecesse desdenhar dos títulos. Dizia não querer pertencer à Academia Brasileira de Letras e só pareceu disposto a candidatar-se nos últimos tempos de sua vida, por insistência de seu amigo Josué Montello. Não se candidatou, morreu antes.

Certa vez perguntou-me: “Você acha que eu sou um bom poeta?” E em outra ocasição: “Será que dez anos depois da minha morte alguém se lembrará de mim?” Um dia me disse: “Quando eu morrer, você será o guardião de minha obra”. Falava empiricamente, mas confiava no interesse que eu sempre demonstrava em preservá-la. Muitos originais que iam para a cesta de lixo ele me autorizava a recolhe-los ao meu arquivo pessoal.

Era um espírito brincalhão, irônico, muitas vezes descontraído, dando gargalhadas famosas desde a juventude. Sobre um deputado assíduo ao seu apartamento, que esperava ser nomeado ministro, dizia sempre: “É a nossa mosca azul.” Um dia me revelou, numa definição: “Eu sou moleque por fora, mas sou sensato por dentro”. Comentando sua fama de milionário, observou-me: “Não sou rico, nem casa em Petrópolis eu tenho. Você já viu alguém rico sem casa de veraneio?” E confessou-me que para ele não havia interesse em desmentir essa fama, pois tinha assim mais credibilidade. Era sócio de muitas empresas, diretor de várias delas, presidente ou vice-presidente de algumas, possuindo poucas ações ou nenhuma, ouvia-se comentar. Disse-me ainda que o apartamento em que morava fora comprado em longo financiamento pela Caixa Econômica e ainda não estava pago.

Desde muito corria a sua fama de rico. Manuel Bandeira escreveu uma quadra, publicada creio que na Revista do Brasil, em 1946, que dizia:

O poeta Augusto Frederico

Schmidt, de quem dizem está rico,

É um homem pobre, certifico,

Mas o poeta sempre foi rico.

Ao publicar a quadra no Mafuá do malungo, Bandeira mudou o terceiro verso para: “Foi um homem pobre”, em lugar de “É um homem pobre...” Teria acertado?

Schmidt gostava de futebol, mas assistia pouco, pela televisão. Era torcedor do Botafogo, o time da “estrela solitária”, curiosamente o título de um de seus livros de poesia. Foi, como se sabe, presidente do Clube de Regatas Botafogo, e na sua presidência realizou-se a fusão com o o Botafogo Futebol Clube, surgindo daí o Botafogo de Futebol e Regatas. Sobre futebol, costumava ouvir o seu barbeiro, Geraldo Fedulo de Queiroz, que além de lhe fazer a barba aplicava-lhe insulina todas as manhãs.

Não desmentindo a fama dos fígaros, Geraldo falava, contava casos, comentava futebol. Schmidt ouvia, ria, brincava com o amigo barbeiro, chamava-o, ironizando-o, de “pé de valsa”, pois ele se vangloriava de ser um ótimo dançarino.

Um dia nos surpreendemos com Geraldo se dirigindo ao Poeta em tom veemente:

“Não admito, Dr. Schmidt, não admito!”

Olhamos todos, assustados, o que Schmidt fizera para desagradar tanto ao barbeiro? E ante o olhar surpreso de todos, e do próprio Schmidt, Geraldo concluiu, no mesmo tom de voz:

“Não admito que o senhor descuide assim de sua saúde!”

O Poeta era mesmo descuidado e indisciplinado ante o tratamento prescrito pelos médicos. Um deles ameaçou deixá-lo se continuasse assim rebelde.

Geraldo gabava-se de ser bom orador. Numa eleição a deputado, a que ambos concorreram, tivera mais votos do que Schmidt. E provou que realmente era um tribuno. No enterro do poeta, depois do discurso de Sobral Pinto, toma a palavra o barbeiro. E pronunciou o mais emocionante discurso de todos os que se ouviram diante do esquife do poeta. Suas palavras fizeram brotar lágrimas da maioria dos presentes.

Considerado muito rico, Schmidt fazia questão de receber pequenos pagamentos por sua colaboração em jornais. N’O Globo, onde publicava dois ou três artigos por semana, era registrado como “auxiliar de redator”, o que causava comentários entre os redatores. Quando a Folha de S. Paulo desejou reproduzir seus artigos, Schmidt mandou-me negociar com o chefe da sucursal no Rio, jornalista e romancista Ascendino Leite, a sua remuneração, que considerei indigna. E ante um certo espanto da minha parte, Schmidt justificou: “Não é pelo dinheiro, é para não parecer um jornalista amador.”

N’O Globo não era apenas o que constava na relação de empregados, pendurada na parede da redação. Era também um conselheiro, um disseminador de idéias. Comentava, discutia, opinava, em conversas telefônicas, ou pessoalmente, com Roberto Marinho. Em 1962, por exemplo, com a saída de Ibrahim Sued d’O Globo, por um incidente com sua coluna “Reportagem Social”, Roberto Marinho decidiu que a coluna, com outro nome, não teria um redator conhecido, e seria publicada com pseudônimo. Foi Schmidt, leitor e admirador de Proust, quem sugeriu o pseudônimo Carlos Swann, e indicou o Álvaro Americano para redigir a coluna.

Muito eu teria para dizer ainda sobre o Augusto Frederico Schmidt que conheci de perto. Mas não posso alongar-me, abusando da paciência dos que me ouvem.

Destacado em suas atividades comerciais, políticas e sociais, era sem dúvida um grande prosador e poeta, e uma figura humana admirável. Um vida cheia de contradições, tinha admiradores incondicionais e críticos implacáveis. E em meio ao céu e ao inferno, firme em suas convicções, lutando na imprensa por um “Brasil grande”, e débil diante das ciladas que lhe postas por sua sensibilidade de poeta, Schmidt era ao mesmo tempo um homem múltiplo e único.

Sua morte foi notícia em muitos jornais do Brasil e do exterior, principalmente de Portugal e dos Estados Unidos. No Brasil, foram também publicados muitos artigos sobre o poeta, alguns dos quais serão reproduzidos no número especial da revista Poesia para todos, que estou finalizando para publicação em breve.

Lembro-me de que no momento em que íamos enterrá-lo no São João Batista, no túmulo de sua família, murmurei para mim mesmo o poema de Vicente de Carvalho, de que Schmidt tanto gostava:

Olha que te levam para o mesmo lado

Onde o sino tange com uma voz de choro.

Schmidt, acorda!

Waldir Ribeiro do Val
Enviado por Waldir Ribeiro do Val em 23/08/2007
Reeditado em 11/12/2008
Código do texto: T619852