Uma Velha Amiga
Essa segunda-feira recebi uma visita inesperada de uma velha amiga. Parecia um dia comum, com uma chuva que não despertava nenhum sentimento contido que merecesse uma atenção especial. Receber visitas sem convite, em geral, é algo que alegra, nos lembra o quanto somos bem quistos por alguém e entendemos que o sentimento de solidão está apenas em nossas mentes vazias. Ter a nossa existência vagamente contemplada por um aparecimento não divulgado, uma ligação cansada ou mesmo uma mensagem despretensiosa é de certo algo minimamente memorável pelos minutos ou horas que se seguem. É confortante saber que alguém se lembra da gente, por qualquer motivo que seja.
Entretanto (ah, entretanto...), tenho essa amiga que não sabe muito bem quando aparecer. Ela é desse tipo que some depois de cada visita por meses, às vezes anos, e volta assim, como se nunca nem tivesse ido embora. Ela é quieta também, sabe, não se expressa muito, tem meio que sempre o mesmo semblante e um ar pouco convidativo. Também conheci muita gente nessa breve caminhada que tenho traçado, e posso afirmar com grande certeza, essa amiga é a mais sincera e verdadeira de todas. É alguém que não falha em suas promessas, alguém que pode até tardar em suas tarefas, mas as cumpre com precisão e meticulosidade inenarráveis. Pode ser até que por causa dessa sinceridade não filtrada, por essa precisão que não mede esforços, que ela tenha poucos amigos. Não é todo mundo que gosta de ouvir e ver a verdade assim, nua e crua, exposta diante de nós. Viver numa fantasia brilhante e confortável evita o confronto direto com a realidade, evita que pensemos que tudo aquilo que temos e vivemos pode simplesmente mudar, e para qualquer indivíduo com uma gama emocional mais ampla que a de uma colher de chá isso é levemente desesperador.
Essa amiga, também, tem um certo problema com coisas que pertencem aos outros. Confesso, não entendo muito bem o que a leva a fazer isso, talvez seja algo cultural, ou até mesmo da própria natureza dela. Tentei entender durante um tempo, mas percebi que não é algo que está dentro da minha capacidade, e sei que fiz um esforço, até mesmo pelo tempo que a conheço. O que acontece é que ela vê coisas que gostamos e sente uma atração muito grande por essas coisas. Parece que ela consegue sentir da mesma forma o amor e carinho que temos, a afeição tão delicada e preciosa que, por vezes, demoramos anos para construir. Ela sente isso. Ela consegue perceber que sentimos aquilo, esse tipo de sentimento, e num instante tão rápido quanto um relâmpago no céu escurecido de uma noite chuvosa, ela replica esse sentimento e se apaixona tanto quanto nós estamos apaixonados. Compartilhar e repartir amor é algo que deve ser feito, diminui o egoísmo e traz grupos para ficarem juntos, revive relações que foram quebradas e feridas, só que isso ela não entende. O problema dessa amiga é que sempre que ela sempre se apaixona por algo que não é dela, ela quer para si e somente para si. E, acredite, ela sempre consegue. Eu tentei dizer não várias vezes, algumas das minhas coisas ainda eram bem novas, não queria que fossem embora assim. Pedi para ela não levar, pedi que me deixasse mais um pouco com elas e que depois ela poderia ter. Às vezes ela fingiu que me escutou, esperou um pouco, me enganou e levou-as embora mesmo assim. Algumas vezes, ela nem pediu, simplesmente pegou e não ouviu nem o meu suspiro de espanto, dando-me as costas e se dirigindo novamente para o lugar de onde veio. Já briguei com ela, já disse coisas que não diria para o pior dos indivíduos, segurei firme em minhas coisas para ela não tirar de mim, tão firme que até fiquei com medo de eu quebrar sem querer. Ela não para, e ela nunca larga. Ela também não devolve nunca algo que ela pega. Eu nunca a visitei, mas desconfio que tudo que ela já tirou de mim ela coloca numa estante, ou num tipo de expositor todo trabalhado como pequenos troféus, algum tipo de bibelô ou ornamento que fora adquirido nessas caminhadas solitárias numa feira de artesanato de uma cidade costeira, que serve de lembrança para algo que não volta.
Me indigna fortemente que algo que eu tenha desenvolvido tanto carinho e apego seja utilizado apenas como adorno no meio de tantos outros. Sei que eu não sou o único que ela visita assim, certamente ela também deve ter pego coisas assim dos outros, seria até ridículo pensar que é uma implicância comigo num mundo tão vasto e diversificado. Mas, poxa, é frustrante desenvolver um apreço tão concreto por algo e tê-lo tirado de ti num movimento sutil e aparentemente inocente. É frustrante devotar tempo e esforço emocional para algo que eu achava que iria ficar comigo para sempre ser retirado à força. Quando essa amiga vai embora ela também deixa algo, mas sabe alguém que não sabe dar presentes e sempre dá o mesmo par de meias todo natal? Ela é assim. Ela sempre deixa duas coisas, sempre as mesmas duas coisas toda vez que ela vai embora e leva com ela os presentes dela. Parece uma brincadeira de “Amigo Secreto” forçado, em que ela sabe que vamos brincar e traz um presente e, como eu não sabia, acaba levando aquilo que eu tenho disponível e desprotegido. Esses presentes que ela sempre me deixa não são tão iguais assim cada vez que ela vem, mas à título de comparação são como chocolates meio amargos; não muito secos, mas com algum dulçor que faz com que você volte a comê-los de tempos em tempos já que eles estão ali. Eu me acostumei com chocolate meio amargo nesses anos todos. Esses presentes são relacionados com aquilo que ela leva, tem um sabor diferente toda vez, mas mesmo assim similar, parecendo até que ela já sabia que iria levar exatamente aquelas coisas que eu tinha, parece que ela sabia que eu tinha aquelas coisas e então ela faz esses presentes meia-boca com sabores levemente diferenciados para eu poder lembrar individualmente das coisas que eu tinha. Ela me deixa esses presentes, mas nunca perguntou se eu queria mesmo, se eu gostava, se de certa forma supria o que eu sentia por aquilo que ela me tirou. É possível que ela não tenha mais o que oferecer, que nessa jornada de cleptomania e acúmulo as únicas coisas que ela tenha se desprendido sejam essas que ela deixa como presente. É possível que ela estivesse observando o que eu tinha bem antes, e num ato singelo e compadecido, quase que por um arrependimento precoce, ela prepara esses presentes individualmente com uma construção especial. Não é o ideal, mas aceito de bom grado, numa compreensão de que ela nunca vai mudar.
Mas como ia dizendo, nessa segunda-feira ela me visitou de novo e levou outra coisa. Eu nem estava em casa, recebi a notícia por telefone. Eu não a esperava tão cedo, não faz nem seis meses e ela esteve próxima de novo. Nessa visita ela levou algo que não sabia que poderia perder tão logo, que tirou de mim, mas também dos que me rodeiam. Ela foi sutil no começo, ninguém desconfiou, mas quando viram que ela estava perto sabiam exatamente o que ela queria dessa vez, e tentaram segurar com todas as forças. Em vão. Ela não desiste, ela não larga, ela não falha. O que ela quer é dela, e quando ela quer vai ser. Foi uma briga intensa com ajuda de terceiros, mas não teria outro resultado, ela já havia se decidido. Dessa vez acho só acho que ela errou a mão nos presentes. Estão mais amargos que de costume, com um retrogosto que lembra passeios no shopping e tardes de domingo em casa assistindo televisão. Foi injusto, bem mais injusto que das outras vezes. Retirar algo tão belo, tão desprendido, tão bondoso quanto o que ela retirou não é compreensível. Pode ser que dessa vez ela tenha se apaixonado perdidamente e foi mais impulsiva que o normal, agiu de forma bruta e não mediu esforços. Foi um pouco dilacerador, não ter tido a chance de uma última olhada para ver se estava tudo bem, um último carinho para tentar transmitir o afeto que eu senti durante todos esses anos, me desculpar pelos erros que cometi, só demonstrar que todo o tempo valeu a pena. Eu estava longe e achei que quando voltasse ainda aquilo que tinha estaria ali, no mesmo lugar, intocado, apenas um pouco mais velho, mas com a mesma graça e energia que sempre teve, com o mesmo olhar e o mesmo carinho. Meus achismos, como de praxe, quase nunca se concretizam.
Esse ato de levar as minhas coisas, as coisas que eu compartilho com outros, tende apenas a se repetir. Ela não vai parar. E ela sempre volta, mesmo a gente não querendo. Eu tentei por um tempo não ter mais nada, me desprender totalmente e não possuir. Se eu não tivesse nada, ela não poderia retirar algo de mim, uma lógica quebrada que parecia factível. Sou humano ainda, não consegui me desprender, ainda possuo, ainda sinto, ainda vou querer ter. E, não importa o que eu tenha, ela vai querer também, mais cedo ou mais tarde ela volta. Nisso então eu peço à amiga apenas duas coisas: quando quiseres que seja eu teu presente, que me leve rápido, não te demores comigo em algo que sabes que não irás largar; ao deixar os teus presentes aos outros, faça-os mais doces, de forma que eles queiram voltar, e não se distanciem. Um dia, minha amiga, todos vão te conhecer, e espero que não os trate como tens me tratado.