O Menino do Poré
E o Menino do Poré chega à Academia Mossoroense de Letras!
Nesta saudação, é imperioso lembrar um pouco de tal trajetória. Exitosa trajetória, essa de Milton Marques de Medeiros. Porém, sem grandes alardes. Na medida em que ele, como protagonista, sempre a conduziu “sem ruídos, ou precipitações, tal qual um rolamento SKF”, parafraseando o velho alcaide Dix-huit Rosado, que gostava de usar tão singular figura de imagem em sua eloquente oratória.
O garoto de dona Luiza Freire, muito cedo órfão de pai, com sonhos e tenra determinação, deixou a sua pacata Upanema pela cidade grande, Mossoró, sendo abraçado por Seu Né e Donana. Juntando-se, pois, à grande prole do casal, compartilhando, com seus “novos irmãos”, daquela rotina onde se intercalavam tarefas escolares com o esfregar do chão do Café... Sim, o famoso Café de Seu Né, de quente e memorável fogão.
Numa segunda fase de estudos, Paraíba foi o seu destino. Paraíba feminina, acolhedora, sim senhor. Na terra de José Américo de Almeida, Delfina Freire materializou esse acolhimento materno. E o jovem Milton transpôs os umbrais da Faculdade de Medicina, com a mesma fleuma com que tangia animais sob a nuvem de poeira das veredas do Poré.
Nas férias universitárias, ele sempre regressava a Mossoró, para, durante tal período, ajudar seu irmão Mário no bar da ACDP. A elite mossoroense, habitué do elegante Clube da Manoel Hemetério, como dizia Ivonete Paula, a Pequena Notável, talvez nem percebesse que, entre os garçons de Mário, de quando em vez, havia um acadêmico de medicina equilibrando bandejas. Existia nesse labor, registre-se, uma “discreta” retribuição à ajuda que Mário desembolsava para contribuir com o sustento de Milton em João Pessoa.
Nos dois últimos anos da faculdade, aprovado em concurso, Milton ingressou no serviço público paraibano, precisamente na Secretaria da Fazenda, e, mesmo como escriturário, o bolso do acadêmico ganhou um considerável reforço pecuniário. Vínculo esse que Milton seria obrigado a romper, por optar pela residência médica em São Paulo. Na jornada de especialização em psiquiatria, encontrou outro apoio maternal na Terra da Garoa: dona Catarina Solano. O resguardo daquela pensão tornou-se uma espécie de locus amoenus para o nordestino que conduzia outro “sonho feliz de cidade”, mas que estava determinado a cumprir tal jornada tendo como foco principal a mente humana. Isto, naquele mundo que já era “o avesso do avesso do avesso do avesso”.
O retorno às terras potiguares estava com os seus dias contados: Mossoró, encontro e destino certos. Era final da década de sessenta, do século passado, Zilene o esperava. A vida profissional do jovem médico se inicia de forma intensa.
Ele logo percebe que os doentes mentais sofriam em demasia. Faltava-lhes atendimento digno. Milton foi tomado de espanto ao saber que costumavam levar os casos graves para a Cadeia Pública. A falta de estrutura resultava num cenário dantesco: familiares viam seus pacientes serem tratados como réus, cujos alaridos clamavam inocências de crimes jamais cometidos.
Nesse diapasão, surge a Casa de Saúde São Camilo de Lellis. Milton junta-se a um grupo de médicos já atuantes na terra de Santa Luzia. Grupo vanguardista na ideia de dotar a cidade e a região de um nosocômio para seus “doentes mentais”: Cesar Alencar, Vicente Morais, Leodécio Fernandes Néo (ah, Leodécio!... Mossoró ainda não lhe tributou o devido reconhecimento).
Também é nesse período correspondente que o timoneiro João Batista Cascudo Rodrigues assume o leme da jornada que resultaria no surgimento da nossa UERN. E o jovem psiquiatra é um dos convocados para contribuir com a luta específica de edificação de um dos pilares do novo Templo do Saber, qual seja: a Faculdade de Enfermagem.
Paralelamente à rotina de médico e de professor, nos anos subsequentes, outras atividades são agregadas quase que naturalmente à sua performance multifacetada: vive e compartilha conhecimento e fé entre irmãos maçons e cursilhistas. Nesse interregno, brota nele, também, o viés de comunicador.
Milton Marques marcou época como um dos apresentadores do Programa Ponto por Ponto, na Rádio Rural. Em seguida, empreendeu, em parceria com o ex-governador Tarcísio Maia, a edificação de emissoras radiofônicas em Mossoró e Assu.
Tudo isso perpassado pelo tão propalado cortejo por sua entrada na vida política. A “mosca azul” zumbia e voava, como no poema de Machado de Assis. Milton resistiu a tais “encantos”. E tudo com o já característico tom fleumático.
Houve, sim, passagem pela gestão pública. Nos anos oitenta, na presidência do Instituto de Previdência do Estado, depois, Secretário de Saúde de Mossoró e, mais recentemente, na reitoria da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.
Mesmo correndo o risco de eclipsar outras tantas iniciativas, não seria justo, de minha parte, deixar de citar pelo menos outros dois empreendimentos, como realce em seu perfil biográfico: a atuação no ramo salineiro e a edificação da própria TCM (TV Cabo Mossoró), árvore frondosa que nos abriga e nos acolhe nesta noite.
E confluímos ao que poderíamos considerar como leitmotiv da sua chegada à AMOL: o seu ofício de cronista. Longos anos sustentando a semanal Déjà vu, na brava, e bravia, Gazeta do Oeste.
Arrimado numa aparente linguagem coloquial, Milton foi construindo sua marca indelével nas páginas do periódico. Como se estivesse conversando sobre psiquiatria, urdia textos onde cavaqueava (e enxertava) assuntos mil. Nada escapava a tão vigilante olhar: política, religião, fatos, pessoas e tipos de Mossoró. Tudo com perspicácia e lírico aprumo.
Para nosso regozijo, agora eternizamos essas crônicas, ou parte delas, em livro. Elevando-as e perenizando-as. Dando-nos oportunidade de leituras e releituras, com vagar e redobrada atenção. Ofertando-as aos pesquisadores. Àqueles que já estão (ou estarão) contagiados pelo exemplo comovente, singular e gigantesco de Raimundo Soares de Brito, a quem Milton sucede na Academia Mossoroense de Letras.
Recentemente, vale destacar, Milton ingressou no Instituto Cultural do Oeste Potiguar – ICOP, e na Academia de Ciências Sociais e Jurídicas de Mossoró – ACJUS.
Agora, o “revolucionário silencioso”, como bem o definiu uma das suas filhas, chega à Casa de Vingt-un, Raibrito, Dorian Jorge Freire e de outros tantos abnegados da cultura.
Junta-se, pois, a esta confraria que sonha o sonho utópico das letras. Agrega-se a essa onírica viagem em prol da cultura. Compartilhando desse anseio coletivo e muito bem-intencionado de querer edificar algo que possa perpetuar nossa cultura literária para as gerações futuras. Algo que peleja para se contrapor às avalanches de iniquidades que assolam a nossa juventude, infelizmente um tanto vulnerável.
Pois bem, sem falsa modéstia, não me creio inteligente; porém, a argúcia mediana, que zelo por ser merecedor, é-me suficiente para entender da impossibilidade de apresentar Milton Marques a quaisquer agremiações de Mossoró. Saudar foi o verbo que usei no início das minhas palavras. E o reafirmo agora.
Posso embasar tal assertiva com uma singelíssima constatação que os senhores e senhoras haverão de concordar: como o saudoso Monsenhor Américo representou em passado recente, Milton, Padre Sátiro, Edir Moura, as Irmãs Zelândia e Elen... simbolizam unanimidades nesta Mossoró de tantas divergências. Unanimidades inteligentes, contrariando o pensamento de Nelson Rodrigues. E, diga-se de passagem, fizeram-no por merecer. Somente isso, pelo emblemático que ressoa em nossa comunidade, seria estandarte e flâmula para qualquer fraterna saudação.
Encerro, em nome de todos os confrades, dizendo ao Menino do Poré (expressão cunhada pela jornalista Lúcia Rocha):
- Entre, Milton, a Casa é sua.
Muito obrigado.
*David de Medeiros Leite é membro da Academia Mossoroense de Letras (AMOL).