Café literário

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Café literário

O processo criativo do escritor

O escritor deve possuir a capacidade de percepção aguçada, interagindo e interferindo na realidade de modo singular. Por exemplo, estamos aqui para uma “mesa-redonda”. Quando recebi e li o convite, imaginei que chegaria aqui e teríamos uma “mesa redonda”! Para minha surpresa e frustração, a mesa é retangular. Portanto, minha primeira observação e sugestão para os coordenadores é que consigam para o ano que vem uma mesa redonda! Afinal, o obvio ululante, como costuma dizer Nelson Rodrigues, deve ser dito, feito, providenciado. Brincadeiras à parte, outro observador, ainda mais meticuloso e metódico, poderia ainda acrescentar: “Discordo! A mesa tem profundidade, largura e comprimento. Portanto, é um paralelepípedo retângulo!” Outro mais, não menos contumaz, diria: “Paralelepípedo retângulo com pernas”!

A partir dessa percepção singular – Mais alguém percebeu que a mesa não era redonda? Levante o braço, por favor, quem percebeu! – o escritor cria realidades, compondo elementos, signos, significantes e significados, ressignificando. Portanto, não basta escrever. É necessário o olhar perscrutador, investigativo. Como dizia Jean Paul Sartre, Ninguém se torna escritor por haver decidido dizer certas coisas, mas por haver decidido dizê-las de determinado modo.

Explico: Se perguntar sobre o que é amor para qualquer pessoa, as respostas serão variadíssimas, mas centenas, milhares dessas respostas se perderão no tempo. Vinicius de Moraes, entretanto, disse sobre o amor, nos seis últimos versos do soneto de fidelidade, escrito em 1943, em sua segunda fase romântica, que:

E assim, quando mais tarde me procure

Quem sabe a morte, angústia de quem vive

Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):

Que não seja imortal, posto que é chama

Mas que seja infinito enquanto dure.

O mesmo Vinicius, tratando sobre a felicidade, eterniza a fragilidade do estado de êxtase:

A felicidade é como a gota

De orvalho numa pétala de flor

Brilha tranquila

Depois de leve oscila

E cai como uma lágrima de amor.

Viajando pelos além-mares, encontramos Fernando Pessoa e seus heterônimos... O eterno fingidor. Sobre o tema, proclama no poema Autopsicografia:

O poeta é um fingidor.

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

Se o plumitivo ou escritor desejar, pode buscar na metalinguagem a inspiração para novas incursões. Alicerçado no dicionário, pesquisando, perceberá, por exemplo, que mesa redonda pode ser com ou sem hífen. Naquele caso, seria uma reunião de pessoas com olhar igualitário, posicionando-se sem hierarquização, de igual para igual, ao redor da mesa. Sem o hífen, seria uma mesa com forma arredondada – no caso concreto, retangular, paralelepípedo retângulo com pernas!

Pode, ainda, para enriquecer a contextualização, fazer comparações, buscar novas palavras com as mesmas peculiaridades. Em mesa redonda, mesa é substantivo; redonda, adjetivo; juntando, torna-se substantivo composto por metonímia. Que tal migrar para o fio da meada dos fios dentais? Seriam com ou sem hifens? Sem hífen, seria o fio que utilizamos para a higienização bucal – fio(substantivo) e dental(adjetivo). Com hífen, seria aquela peça inferior do biquíni que as mulheres usam para economizarem tecidos – mera questão econômica. Afinal, estamos em crise! Existe metáfora mais pertinente?

Portanto, o artista faz leitura de mundos e trabalha a linguagem de modo peculiar, único, especial, ao seu estilo, recriando e transformando realidades, segundo suas próprias convicções. Entretanto, a essência da arte está na busca do valor estético do texto, burilando os instintos perceptíveis e os sentidos do leitor. É a busca pela exteriorização da beleza, mesmo inconscientemente. Na geometria, por exemplo, existe a razão áurea, representada pela letra grega Phi, em homenagem ao escultor Phideas, que a utilizou na construção do Pathernon – Templo dedicado à deusa Atena, na Acrópole, no século V a.C . A Monalisa, de Leonardo da Vinci, foi construída em razão áurea – os olhos e a boca estão nessa proporção. A Sinfonia nº 5 de Beethoven está nessa razão; ainda na geometria, existe o retângulo de ouro, feito por divisão em média e extrema razão de Euclides – Dividindo-se a base pela altura, encontra-se o número de ouro 1,618.

Qual seria, portanto, a razão da divisão áurea? Provocar sensação de beleza a todos os olhares, conscientemente ou não. O artista tem essa obrigação – a de criar o espanto risonho nos sentidos do leitor. O escritor, enquanto artista, é arquiteto de palavras e precisa provocar no leitor a vontade de morar no templo de suas construções verbais, dando aos sentidos de quem o visita a sensação de estar numa linda, confortável e convidativa moradia. Talvez o leitor/morador não perceba a arte nem o trabalho envolvidos na construção, mas deve maravilhar-se com o resultado final. Claro, existem os gênios – aqueles que constroem histórias e realidades sem tanto sacrifício, mas, essencialmente, o sucesso do processo criativo, via de regra, é mais suor que inspiração. É dedicação. É rotina. É repetição.

De onde viria, finalmente, o meu fazer poético, literário, musical? Das minhas vivências, experiências e inquietações. Como dissera Newton: “Se cheguei até aqui foi porque me apoiei no ombro de gigantes”. Se você deseja ser um bom escritor, ou bom naquilo que faz, leia bons livros, ampare-se em bons referenciais, bons autores. Investigue sua língua vernacular e aprenda a destruir palavras, frases, orações e ideias, dando ao conjunto da obra a harmonia áurea que se aproximará do ideal de crescimento individual e coletivo que a arte busca – transformando em ética a estética da existência.

Nijair Araújo Pinto

Crato, 18 de abril de 2017.

13h21min

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Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 18/04/2017
Reeditado em 18/04/2017
Código do texto: T5974221
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