Sobre todas as reclamações políticas
Em resumo, independente de como chegam ao poder, o modus operandi é quase sempre o mesmo: os conquistadores vêem o povo como uma presa a ser dominada; os sucessores como um rebanho que naturalmente lhes pertence e, por fim, os eleitos tratam-no como bicho a ser domado. Etienne La Boétie salienta que “Para que os homens, enquanto neles resta vestígio de homem, se deixem sujeitar, é preciso uma das duas coisas: que sejam forçados ou iludidos. Iludidos, eles também perdem a liberdade; mas, então, menos freqüentemente pela sedução de outrem do que por sua própria cegueira.” O povo cai em tão profundo esquecimento de seus direitos que é quase impossível acordá-lo. Serve tão mansamente e de tão bom grado que, ao observá-lo no torpor da servidão, se poderia dizer não que tenha perdido totalmente a liberdade, mas que nunca a conheceu: “no início serve-se contra a vontade e à força; mais tarde, acostuma-se, e os que vêm depois, nunca tendo conhecido a liberdade, nem mesmo sabendo o que é, servem sem pesar e fazem voluntariamente o que seus pais só haviam feito por imposição. Assim, os homens que nascem sob o jugo, alimentados e criados na servidão, sem olhar mais longe, contentam-se em viver como nasceram; e como não pensam ter outros direitos nem outros bens além dos que encontraram em sua entrada na vida, consideram como sua condição natural a própria condição de seu nascimento”. A primeira razão da servidão voluntária é o HÁBITO. Por hábito, somos ensinados a servir, nos escravizamos. É o costume que, à medida em que o tempo passa, nos leva não somente a engolir, pacientemente, os sapos venenosos da escravidão, mas até mesmo a desejá-lo: “pois por melhor que seja, o natural se perde se não é cultivado, enquanto o hábito sempre nos conforma à sua maneira, apesar de nossas tendências naturais.”
Sendo assim, de se nascer servo e ser criado na servidão decorre naturalmente a segunda razão da servidão voluntária: a COVARDIA! Sob a tirania (mesmo que disfarçada), necessariamente os homens se acovardam, se escravizam: “Os escravos não tem ardor nem constância no combate. Só vão a ele como que obrigados, por assim dizer embotados, livrando-se de um dever com dificuldade: não sentem queimar em seu coração o fogo sagrado da liberdade, que faz enfrentar todos os perigos e desejar uma bela e gloriosa morte que nos honra para sempre junto aos nossos semelhantes. Entre os homens livres, ao contrário, é à discussão, polêmica, cada qual melhor, todos por um e cada um por todos: sabem que colherão uma parte igual no infortúnio da derrota ou na felicidade da vitória; mas os escravos, inteiramente sem coragem e vivacidade, têm o coração baixo e mole, e são incapazes de qualquer grande ação. Disso bem sabem os tiranos; assim, fazem todo o possível para torná-los sempre mais fracos e covardes. Artimanha dos tiranos: bestializar seus súditos!”.
Também como instrumentos de alienação, verdadeira mantenedora da tirania, a fim de adormecer o povo, súditos da escravidão, disponibiliza-se todo e qualquer meio de distração: drogas, tavernas, casas de prostituição, jogos, lutas públicas, fanfarras, enfim, toda sorte de iscas para o entorpecimento: caras, bundas, sejam puro-sangues ou éguinhas pocotós. Não há então necessidade de precaver-se contra o povo ignorante e miserável, fácil e bestialmente entretido e domesticado com tolices vãs: “Os tiranos romanos foram longe [na política do pão e circo], festejando freqüentemente os homens das decúrias (homens do povo, agrupados de dez em dez, e alimentados às custas do tesouro público), empanturrando essa gente embrutecida e adulando-a por onde é mais fácil de prender, pelo prazer da boca. Por isso, o mais instruído dentre eles não teria largado sua tigela de sopa para recobrar a liberdade da República de Platão. Os tiranos distribuíam amplamente o quarto de trigo, o sesteiro de vinho, o sestércio [bolsa-família romana]; e então dava pena ouvir gritar: Viva o Rei! Os broncos não percebiam que, recebendo tudo isso, apenas recobravam uma parte de seu próprio bem, e que o tirano não teria podido dar-lhes a própria porção que recobravam se antes não a tivesse tirado deles mesmos. O que hoje apanhava o sestércio, o que se empanturrava no festim público abençoando Tibério e Nero por sua liberalidade, no dia seguinte, ao ser obrigado a abandonar seus bens à cobiça, seus filhos à luxuria, sua própria condição à crueldade desses magníficos imperadores ficavam mudos como uma pedra e imóvel como um tronco”. Subserviente, iludida e enfeitiçada é a massa de ignorantes! “A covardia é a mãe da crueldade” (Montaigne). Nós mesmos, pacífico povo brasileiro, temos tradição, orgulhamo-nos de nossa mansidão e vivemos um paradoxo pois a violência é efeito (e não causa) da servidão voluntária.
Discorrendo sobre a terceira razão da servidão voluntária, a PARTICIPAÇÃO NA TIRANIA, La Boétie aponta quem são os interesseiros que se deixam seduzir pelo esplendor dos tesouros públicos sob a guarda do tirano, os que, em conluio, garantem e asseguram seu poder: “são sempre quatro ou cinco homens que o apóiam e que para ele sujeitam o país inteiro. Sempre foi assim: cinco ou seis obtiveram o ouvido do tirano e por si mesmos dele se aproximaram ou então, foram chamados para serem os cúmplices de suas crueldades, os companheiros de seus prazeres, os complacentes para com suas volúpias sujas e os sócios de suas rapinas. Tão bem esses seis domam seu chefe que este se torna mau para com a sociedade, não só com suas próprias maldades, mas também com as deles. Esses seis têm seiscentos que debaixo deles domam e corrompem, como corromperam o tirano. Esses seiscentos mantêm sob sua dependência seis mil, que dignificam, aos quais fazem dar o governo das províncias ou o manejo dos dinheiros públicos, para que favoreçam sua avareza e crueldade, que as mantenham ou as exerçam no momento oportuno e, aliás, façam tanto mal que só possam se manter sob sua própria tutela e instar-se das leis e de suas penas através de sua proteção. Grande é a série que vêm depois deles. E quem quiser seguir o rastro não verá os seis mil mas cem mil, milhões que por essa via se agarram ao tirano, formando uma corrente ininterrupta que sobe até ele. Daí procedia o aumento do poder do senado sob Júlio César, o estabelecimento de novas funções, a escolha para os cargos – não para reorganizar a justiça, mas sim para dar novos sustentáculos à tirania. Em suma, pelos ganhos e parcelas de ganhos que se obtêm com os tiranos chega-se ao ponto em que, afinal, aqueles a quem a tirania é proveitosa são em número quase tão grande quanto aqueles para quem a liberdade seria útil. Que condição é mais miserável que a de viver assim, nada tendo de seu e recebendo de um outro sua satisfação, sua liberdade, seu corpo e sua vida! Mas eles querem servir para amealhar bens”. Com isso vislumbra-se a rede da servidão. Frágil por natureza, de onde, a todo instante despontam os escândalos pois, o tirano não tem amigos, não ama nem é amado: “O que torna um amigo seguro do outro é o conhecimento de sua integridade. Entre os maus, quando se juntam, há uma conspiração, não uma sociedade; Eles não se entre-apoiam mas se entre-temem. São cúmplices”. Na ilusão de que estamos livres, fundamentam-se os três caminhos que nos levam a servidão (hábito, covardia e participação).