Maldades e maldosos VI parte

A compreensão dessas nossas limitações, ou talvez características humanas, deveria servir para levarmos uma vida mais leve, sem tantas cobranças e culpas, sem julgar tanto aos erros dos outros e aos nossos próprios. O que não significa negligenciar com os erros, mas sermos menos exigentes com a vida, aprendendo o valor de nos perdoar e perdoar aos demais. E mais. Reconhecer nossas limitações e aprender a perdoar não significa tolerar falsidades, traições, maldades, devendo aprender a nos defender de situações que nos causem danos e de pessoas que escolheram fazer o mal em vez do bem! E quando nossas escolhas erradas infligirem as leis, a saúde, a paz, arrepender-se e pedir perdão são boas medidas, mas podem não bastar. É preciso também reparar os danos que causamos e nos esforçar concretamente e não só com promessas para remover o que atrapalha as boas relações conosco e com os outros.

Os erros têm uma incrível capacidade de se destacarem dos acertos, e por isso chamam tanto a nossa atenção, talvez pelo potencial de danos que podem provocar. Ao contrário dos acertos cujos benefícios e vantagens nem sempre são tão visíveis. Podemos passar a vida toda orientando nossas escolhas para agir de forma correta, entretanto, basta um momento de descuido e seremos julgados e medidos por este nosso ato mal e não por todos os outros em que fomos bons. Por isso, pais e educadores em geral preocupam-se em orientar as crianças e os jovens em formação para que façam as escolhas certas, indicando caminhos para o bem, a paz, a verdade, a bondade, mas não podem caminhar por eles. Então, ao mesmo tempo em que exigem que sejam bons, consideram-se no dever de repreendê-los e puni-los quando avançam os limites, para que tenham a noção entre o que é e não é aceitável para a vida em sociedade. Pais que não estabelecem e cobram limites dos filhos não os ajudam a se prepararem para a vida, onde os limites são bem claros e duramente defendidos e cobrados. Não se trata de uma tarefa fácil. Os pais e educadores sabem da urgência dessa formação, pois a vida pode ser muito injusta com os que erram. É melhor que os limites sejam colocados em casa e na escola, onde as crianças e jovens estão num ambiente de aprendizado e de maior compreensão, do que serem punidos mais tarde por estranhos, pela Policia ou Justiça ou pelo próprio bando, que geralmente não têm a mesma preocupação pedagógica.

Se uma educação permissiva demais é inadequada, uma educação autoritária e repressora demais também é, pois só servirá para formar adultos hipócritas e infelizes que almejam e cobram dos outros uma perfeição inatingível e se tornam incapazes de se perdoarem e de perdoarem aos outros pelos erros.

Às vezes as pessoas são tão rigorosas consigo próprias e com os outros que colocam os erros humanos num nível de pecado à própria divindade. A culpa pode assumir uma proporção assombrosa, esmagando o indivíduo a ponto de se considerar indigno do seu deus e acabar se afastando dele e do seu perdão e indulgencias, fazendo com que se considere uma causa perdida, condenando-se em sua mente ao inferno eterno por antecipação. Pessoas desesperançadas que acham que não tem mais nada a perder podem se tornar capazes de crimes e maldades horríveis! Por outro lado, tem pessoas que acabam negligenciando em seu esforço para escolher o certo na certeza de que a divindade perdoará sempre.

Mesmo pessoas consideradas boas produzem maldades, assim como pessoas consideradas más podem fazer coisas boas. A mídia mostra de vez em quando histórias de gente julgada como bons vizinhos, bons colegas, pessoas acima de qualquer suspeita, simpáticos, inteligentes, sedutores, bonitos e que se descobriu mais tarde serem pedófilos ou assassinos a sangue frio, ou num dia qualquer sacam uma arma e matam colegas de trabalho ou da escola. Por outro lado, pessoas que julgávamos más, numa hora em que passamos por dificuldades, às vezes, são as primeiras a nos estender as mãos para ajudar.

Durante períodos de exceção, em que a sobrevivência é ameaçada, pessoas que normalmente orientam suas escolhas para o bem, podem escolher o contrário, como autodefesa. O perigo é passarem do ponto de retorno e perderem sua dignidade. Em tempos de guerra e nas prisões podem acontecer situações assim, como pode acontecer de pessoas que, nas mesmas circunstâncias, conseguem manter a integridade.

Ainda é importante ficar atento ao poder do bando, pois também se aplicam aos grupos e à própria sociedade a impossibilidade da bondade e justiça perfeitas. Às vezes, individualmente, cada membro do bando consegue orientar suas escolhas para o bem, entretanto, ao se juntar num grupo, pode produzir escolhas absolutamente perversas que sozinhos jamais teriam coragem de cometer. Lembro aqui dos jovens que queimaram o índio Galdino que dormia num ponto de ônibus em Brasília. Um ato estúpido de diversão ao saírem de uma balada.

As ideologias também têm papel semelhante ao do bando. Muitos empresários bem-sucedidos são pessoas boas individualmente, mas integram um sistema opressor e injusto de concentração de renda e poder que produzem muitas das iniquidades e distorções que afligem a humanidade e o planeta. Existem políticos que individualmente são pessoas de bom caráter, preocupados com o bem público, mas sob influência do seu partido ou do grupo a que pertence, cometem ou apoiam ou se omitem diante de atos que sabem que irá causar danos ao povo.

Achar que os que produziram ou apoiaram a escravidão, a Inquisição ou o Nazismo, por exemplo, foram todos monstros sem coração é não querer encarar o fato de que foram seres humanos, como nos, que produziram atrocidades terríveis em nome de uma ideologia, de um líder carismático, de uma visão de mundo em que se achavam superiores aos demais, seja por razões de raça seja por razão de fé. Que atitudes tomamos ainda hoje que podem se comparar com as que tomaram aqueles povos naquelas épocas? Ao tratar os animais com crueldade e indiferença, por exemplo, estaríamos repetindo o erro de nos achar uma raça superior à deles? Nossa espécie e as demais estão todas no mesmo barco evolucionário e enredados de forma interdependente onde todos dependem de todos, onde ninguém é mais especial a ponto de não depender do outro. Só para lembrar, sem as bactérias que habitam nosso intestino teríamos dificuldades para retirar os nutrientes dos alimentos e sem os ácaros que se alimentam de nossa pele morta ela se acumularia em camadas e seríamos bem feiosinhos e diferentes do que somos! Varrer a escravidão, a Inquisição, o Nazismo e outras mazelas históricas de nossas vistas, e sermos rápidos no julgamento alheio, pode ser uma forma de não querermos nos olhar no espelho para não ver a fera feia que também está dentro de nós pronta para despertar bastando que a alimentemos com nossas escolhas ruins!

A história que aprendemos nas escolas nem sempre é toda a verdade e pode nem mesmo retratar os fatos históricos, mas a versão contada pelos que venceram que podem demonizar, desumanizar e desespiritualizar o adversário, como se fossem muito diferente de nós, para justificar moralmente as violências e selvagerias. Lembro que no passado, para justificar as maldades contra os escravos, argumentava-se que não tinham alma, assim como fazemos hoje com os animais. Então estaremos condenados a repetir os erros? Guardadas as devidas proporções, a concentração de riquezas e sua má distribuição, tornam as favelas de hoje equivalente aos guetos nazistas, um lugar destinado ao confinamento de pessoas pobres e excluídas destinadas ao abandono, a falta de infraestrutura urbana, dominadas pelo poder paralelo do tráfico, mas que se constitui na maioria carente que troca o voto por vantagens e benefícios aqui e agora, tornando-se um reduto eleitoral para a política assistencialista.

Também temos o equivalente aos fornos crematórios do nazismo na forma da fome, da falta de saneamento, da exclusão social, que mata e comprometem as chances de futuro de milhões de pessoas todos os dias. E o que a maioria da sociedade costuma fazer diante das cinzas e do mau cheiro? Prefere não tomar conhecimento, como se tais mazelas não tivessem associadas ao tipo de sistema de produção e consumo e má distribuição de renda ao qual dá seu apoio por ação ou omissão. A maioria de nós prefere acreditar na mentira de que somos uma sociedade de oportunidades iguais o que deixa subliminarmente implícita a ideia de que os pobres e excluídos é que são os únicos responsáveis pela situação em que se encontram, pois escolheram não se empenhar o bastante para estudar e trabalhar e contentam-se com migalhas de políticas assistencialistas, que dão o peixe, mas não ensinam a pescar.

Vil Becker
Enviado por Vil Becker em 11/11/2015
Reeditado em 18/11/2015
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