Exma. Sra. Presidente da Academia de Letras da Bahia, Profa. Dra. Evelina Hoisel.
Exmo. Sr. Jorge Portugal, digníssimo Secretário de Cultura do Estado da Bahia, em nome de quem saúdo as demais autoridades presentes.
Meus familiares e amigos.
Senhoras e senhores acadêmicos,
É inenarrável a honra de ser aceito nesta Academia, que desde o ano de 1917 reúne o que há de mais expressivo na cultura do nosso estado, e cujos antecedentes históricos datam do século XVIII, no Brasil-Colônia. Já naquela época houve aqui em Salvador duas tentativas de dotar o país de uma entidade capaz de congregar os seus ainda incipientes interesses literários. A primeira se chamou Academia dos Esquecidos. A segunda, Academia dos Renascidos.
Passos adiante, já no século XIX, outra iniciativa do gênero leva ao que é considerado o prelúdio desta Academia de Letras. Foi quando o então futuro Barão de Macaúbas fundou o Instituto Literário da Bahia. Passou-se isto no ano de 1845.
Em 1911, Almachio Diniz funda a Academia Baiana de Letras que, como as anteriores, não prosperou. Mais tarde, juntamente com Rui Barbosa, Severino Vieira, Egas Muniz Barreto de Aragão, Antônio Alexandre Borges dos Reis e Felinto Bastos, Almachio viria a tornar-se membro-fundador de uma nova e definitiva entidade, idealizada e organizada pelo engenheiro Arlindo Fragoso, o mesmo criador do Instituto Politécnico.
Foi assim que nasceu a Academia de Letras da Bahia, à qual, quase um século depois, este velho escriba chega, trazendo a sua gratidão pela generosidade do acolhimento nesta Casa de tantos amigos, e na sucessão de outro, o saudoso João Ubaldo Ribeiro - por extenso, João Ubaldo Osório Pimentel Ribeiro -, o brilhante romancista de Sargento Getúlio e Viva o povo brasileiro, só para citar os seus títulos mais aclamados, e que nos legou também uma vasta produção de pequenas joias em crônicas e contos – como uma obra-prima do gênero, Era diferente o dia de matar o porco, selecionado pelo escritor Valdomiro Santana para uma das melhores antologias de contistas baianos já publicadas.
Nascido em Itaparica em 23 de janeiro de 1941, filho primogênito de Maria Felipa Osório Pimentel e Manoel Ribeiro, João Ubaldo viria a fazer da sua ilha um cenário de “navegação infinita pela palavra”, no dizer daquela que com mais afinco e propriedade tem se dedicado ao estudo de sua obra, a doutora em Letras Rita Olivieri-Godet, titular de literatura brasileira na Universidade de Rennes, na França. A bem dizer, João Ubaldo dispensaria encômios protocolares, tão grande, forte e justo foi o reconhecimento que granjeou em vida, e que certamente perdurará pela nossa história literária afora.
Sim, todos conhecemos a sua trajetória – que é, aliás, a de um raro escritor a conseguir, em tempos de triunfo das nulidades fugazes -, se impor sem concessões mercadológicas, e de forma duradoura. Fabulosa, em todos os sentidos, sua obra é uma monumental contribuição à literatura brasileira, ao mesmo tempo enriquecedora da última flor do Lácio, que ele tornou mais culta e ainda mais bela, em várias edições, merecedoras de numerosas traduções, premiações – entre elas a maior láurea da lusofonia, o Prêmio Camões -, teses acadêmicas, livros e livros a mão cheia, como os da já citada Rita Olivieri-Godet, Construções identitárias na obra de João Ubaldo Ribeiro e Viva o povo brasileiro – a ficção de uma nação plural, adaptações para o cinema, a televisão, o teatro e, até, enredo de escola de samba.
Sucessor de Cláudio Veiga, a quem, no seu discurso de posse, em cerimônia aqui realizada na noite de 22 de novembro de 1912, louvou como “um homem de letras por excelência e um apaixonado pelo que ensinava”, João Ubaldo Ribeiro foi, nesta Academia, o quinto ocupante da Cadeira número 9, cujo patrono é Antônio Ferreira França, nascido em Salvador em 1771, e falecido em 1848, quando a Bahia lhe demonstrou um apreço incomum, ao comparecer em peso ao seu funeral, tornado um acontecimento extraordinário. Médico e professor de aritimética, álgebra e geometria no Colégio da Companhia de Jesus, Antônio Ferreira França contribuiu para o alto grau do ensino a que tinham acesso os jovens baianos daquele tempo. Ministrou Aulas Régias no Liceu Provincial e na Faculdade de Medicina, e foi interlocutor de um discípulo e cliente, o escritor Caetano Lopes de Moura, que ajudou a se curar de uma pleurisia. Assim que se recuperou dessa grave doença, Caetano Moura partiu para a Europa, onde teve uma existência romanesca e de aventuras. Soldado e biógrafo de Napoleão, ele escreveu e publicou seus livros na França. Mesmo considerado por Sílvio Romero “um dos nossos notáveis prosadores”, a crônica literária passou uma esponja em seu nome, como registrou Cláudio Veiga aqui, em seu discurso de posse, com a autoridade de autor de uma biografia desse hoje esquecido escritor baiano.
Coube a um descendente do mestre e médico de Caetano Moura ser o fundador da cadeira a que terei assento nesta egrégia Casa, como o seu sexto ocupante. O primeiro a ocupá-la, portanto, foi José Alfredo de Campos França, figura de grande projeção na sociedade baiana do começo do século vinte. Nascido em 19 de março de 1865, Campos França bacharelou-se em Direito em 1894. Ainda estudante, tornou-se adjunto de Psicologia na antiga Escola Normal, onde, em 1905, viria a ser catedrático de História do Brasil. Antes disso, em 1897, conseguira, por concurso, ser nomeado professor substituto na Faculdade de Direito, na qual, em 1899, é promovido a catedrático de Direito Internacional, sendo, no ano seguinte, transferido para a cátedra de Direito Civil.
Paralelamente às suas atividades no magistério, José Alfredo de Campos França desenvolvia intensa carreira política, que começou como deputado estadual, cargo que exerceu de 1895 a 1904. Em 1905 teve a desdita de ser vitimado por uma hemiplegia, que afetou o seu lado direito. Mas não se deixou derrotar pela paralisia, mantendo-se em cena bravamente, em dois mandatos no Senado Estadual - surgido com a Proclamação da República e extinto com a Revolução de 1930 -, e outro na Câmara Federal. Em resumo: foi com o seu saber jurídico e a sua bagagem parlamentar que Campos França, considerado por Rui Barbosa uma das mais eminentes figuras do seu tempo, chegou à Academia de Letras da Bahia. Ele faleceu em 1923, sendo aqui sucedido pelo também catedrático na Faculdade de Direito Edgar Ribeiro Sanches, descrito por Demóstenes Madureira de Pinho como um homem de pensamento, e de excepcional cultura, cuja capacidade de transmitir conhecimentos e de escarvar a inteligência do discípulo fazia dele um modelo de mestre, cujas lições não terminavam nas aulas, mas continuavam nas conversas, nos encontros casuais, nas palestras improvisadas.
Nascido em Salvador no ano de 1891, Edgar Raggio Ribeiro Sanches era tido como um orador sensível à magia do estilo, cujos discursos entusiasmava os jovens. O que certamente o deixava empolgado, como no trecho de um deles, que cito:
Falar à mocidade é, sem dúvida, uma das maiores alegrias do homem. Dizer aos que vieram depois de nós a lição da nossa experiência é míster dos mais gratos ao coração. Clamar aos ouvidos inexperientes dos que estão a subir a mais bela vertente da vida, os que estão a galgar os cimos alagados da claridade do ideal, os ensinamentos que recolhemos no curso da nossa própria existência é este um dos mais nobres labores.
Tão eloquente tribuno haveria de ser levado pela política à então capital do país, o Rio de Janeiro, onde, na década de 1930, representaria a Bahia na Câmara Federal. Na Constituinte de 1933, compôs a bancada baiana com os deputados José Joaquim Seabra, Marcos dos Reis, Medeiros Neto, e os membros desta Academia Magalhães Neto, Aloísio de Carvalho Filho e Homero Pires. Entre os seus destaques parlamentares figura um discurso polêmico proferido na véspera da Semana Santa de 1934, quando, a propósito da referência ao nome de Deus no preâmbulo da Constituição, emitiu conceitos condizentes com a sua condição de incréu, o que resultou em muitos apartes. E pior: sua oração não foi transcrita nos anais da Constituinte. Também não teria sido bem aceito um estudo que escrevera como parecer a um projeto legislativo que mandava dar ao idioma falado no Brasil a denominação de língua brasileira, que, ao contrário do livro de Luís Viana Filho – A Língua no Brasil -, e um trabalho de Artur Neiva sobre o mesmo assunto – Estudos de Língua Nacional -, não viria a merecer dos especialistas referências favoráveis.
Edgar Raggio Ribeiro Sanches faleceu no Rio de Janeiro em 1974. Foi sucedido nesta Casa pelo cientista social e humanista Antônio Luiz Machado Neto, mestre da Filosofia do Direito e da Sociologia, disciplinas que o tornaram um nome nacional.
Nascido em Salvador em 1930, Machado Neto teve uma existência breve, mas plena de realizações. Professor da Universidade Federal da Bahia, e da Universidade de Brasília (entre os anos de 1962 e 1965), destacou-se no cenário cultural baiano por sua intensa atividade de pesquisador e escritor. Suas pesquisas científicas e análises da vida intelectual renderam-lhe inúmeros livros, artigos em jornais e revistas de ciência e cultura nacionais e estrangeiras, participação em congressos no Brasil e no exterior. Era Machado Neto ainda um estudante de 22 anos quando publicou o seu primeiro livro, Dois Aspectos da Sociologia do Conhecimento, tido e havido como uma das primeiras contribuições brasileiras a esse novo setor da Sociologia. E até aos 28 anos publicaria mais quatro títulos: Marx e Mannhein, Sociedade e Direito na Perspectiva da Razão Vital, Para uma Sociologia do Direito Natural, e Filosofia da Filosofia – Introdução Problemática da Filosofia. E não parou por aí.
Sua produção foi extensa, chegando a cerca de 30 livros, entre os quais se inclui a sua tese apresentada para o concurso de Titular de Sociologia, intitulada Estrutura Social na República das Letras. Outro seu legado aos interessados na nossa história literária é o ensaio A Bahia Intelectual (1900-1930). Pensador moderno, Machado Neto era avesso aos exercícios estilísticos, que chamava de “ouropéis da erudição retórica”, contra o que se insurgiu até em seu discurso de posse nesta Academia, em 31 de maio de 1973, quando o acadêmico José Calasans Brandão da Silva fez-lhe as honras da Casa. Aqui, teve como sucessor Cláudio de Andrade Veiga, que foi recebido por Hélio Simões em 18 de maio de 1978.
Doutor em Letras e Professor Emérito da Universidade Federal da Bahia, Cláudio Veiga nasceu em Salvador no dia 28 de maio de 1927. Ele estudou na Sorbonne e no Instituto de Filologia de Estrasburgo, aperfeiçoando-se em Língua e Literatura francesas, às quais dedicou boa parte de sua obra, vindo a publicar uma antologia bilíngue de poesia, muito bem recebida em Paris por consagrados escritores como Maurice Druon e Jean d’ Ormesson, o mesmo Jean d’ Ormesson que é hoje, aos 88 anos, o decano da Academia Francesa, e uma celebridade no mundo das letras em seu país. Do interesse francófono de Cláudio Veiga destaca-se ainda o seu livro Um brasilianista francês, cuja primeira parte é dedicada a Philéas Lebesgue, que no começo do século XX foi o principal divulgador da literatura brasileira na França. Lesbeque se correspondia com nossos escritores, de norte a sul, traduzia poetas (Manuel Bandeira, Guilherme de Almeida e Mário de Andrade, por exemplo), e ficcionistas como José de Alencar, Coelho Neto e o baiano Xavier Marques.
É bem alentado o currículo do quarto ocupante da Cadeira número 9, tanto pela sua produção literária quanto pelas funções que exerceu, a saber: diretor do Instituto de Letras da UFBa, substituto eventual do reitor daquela instituição, presidente da Associação Brasileira dos Professores Universitários de Francês, membro do Conselho Estadual de Cultura, membro desta Academia de Letras, que presidiu por 26 anos seguidos. Igualmente dignos de nota são os títulos honoríficos que recebeu, na França, em Portugal e Bahia, onde, por duas vezes, lhe foi conferida a Ordem do Mérito, como Comendador e Grande Oficial.
Agraciado pela Academia Francesa com o Grand Prix de Rayonnement de la Langue Française, Cláudio Veiga recebeu também o Troféu Francisco Igreja, da União Brasileira de Escritores, e o Prêmio Nacional de Ensaio, da Academia Brasileira de Letras.
Sua rica bibliografia inclui trabalhos como Castro Alves Guia da Catedral, Sete Tons de uma Poesia Maior - um ensaio sobre o simbolista Arthur de Salles -, e Poetas e Prosadores na Bahia, aos quais se somam suas contribuições aos estudos de literatura comparada, de que o livro Camões e Ronsard é um bom exempo.
Uma parte significativa do que Cláudio Veiga escreveu teve acolhida em editoras do eixo Rio-São Paulo, como Record, Tempo Brasileiro, Topbooks, Ática e FTD, despertando as atenções de críticos importantes, como Afrânio Coutinho – que o chamava de mestre -, e Wilson Martins – que louvou sua extraordinária e sólida cultura humanística.
“Sua obra, não pequena, permance importante e atual”, lembrou João Ubaldo Ribeiro, ao ser empossado aqui, na já referida noite de 22 de novembro de 2012, quando foi recebido pelo acadêmico Joaci Góes. “À frente desta Academia Cláudio Veiga foi um trabalhador infatigável e devotado, que deixou um legado talvez inestimável”, frisou Ubaldo.
Com a morte de Jorge Calmon, de quem era muito amigo, em 18 de dezembro de 2006, Cláudio Veiga renunciou a seu último mandato, quando ainda faltavam dois anos para terminá-lo. Foi então substituído pelo vice-presidente, Edvaldo Boaventura. Reconduzido para uma nova gestão, Boaventura presidiu a renovação dos Estatutos, que limitou o mandato a 2 anos, com apenas uma recondução, e retirou a exigência de se residir em Salvador para ser membro efetivo desta Casa.
Senhoras e Senhores,
Não poderia fechar este histórico das eminentes figuras que aqui me antecederam sem um preito àquele que me coube suceder.
Ele me chamava de compadre. Por um bom tempo convivemos entre bares e lares do Rio de Janeiro, e - às vezes tendo outro tipo inesquecível entre nós, o gaúcho Moacyr Scliar -, participamos de algumas das mesas mais animadas da minha vida de palestrante. Três delas foram memoráveis: no Fórum de Ciência da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no Salão do Livro de Paris e na Feira do Livro de Frankfurt. Com o passar do tempo, nossos encontros foram rareando. Mas de vez em quando nos falávamos ao telefone, ou nos correspondíamos via internet. Na última vez que lhe escrevi, perguntei quando era que a gente ia se reencontrar, para dar umas boas risadas. Ele me respondeu que iria voltar a frequentar a Academia Brasileira de Letras para convivermos mais. Não demoraria a estar lá. Para ser pranteado.
Às 8 horas da manhã de 18 de julho de 2014, o telefone toca. Susto. Quem e o que poderia ser, tão cedo? Era uma repórter de uma rádio de São Paulo, que, mal diz “Bom dia”, detona: “João Ubaldo Ribeiro acaba de morrer. O que o senhor tem a dizer sobre isso?” Não! Ele era 4 meses e 10 dias mais novo do que eu. Tal infausto só podia ser uma injustiça divina. Ato contínuo, chamo um táxi e me ponho a correr para o velório, na Academia Brasileira de Letras, na qual ele ocupava a cadeira 34 desde 8 de junho de 1994, quando ali foi recebido pelo também baiano Eduardo Portella, de cuja saudação pincei estas linhas precisas: “A obra de João Ubaldo recolheu os inúmeros tempos da nossa História e os reconstruiu. Juntou o passado ao futuro e deixou o presente perpassar esse interminável horizonte que vai e vem do mato ao mar”.
Agora, era da Casa de Machado de Assis que ele iria partir para a tal da última morada. De cara, avisto, vestida de preto e aos prantos, a moça de Birigui, no interior de São Paulo, que João Ubaldo conheceu na cidade de Natal, no Rio Grande do Norte, onde ela estava morando. Foi durante um encontro de escritores nordestinos, para o qual nós dois fomos convidados. “Fui testemunha ocular do começo de tudo”, eu disse a Berenice, ao abraçá-la. E aí vi os seus olhos contristados se iluminarem: “Menino, e eu não me lembro?”, ela me respondeu, entre lágrimas e risos. Naquele momento tão doloroso restou-me o consolo ter sido capaz de fazê-la sorrir.
Comove-me recordar ainda, aqui e agora, o último romance de João Ubaldo, O albatroz azul, que envolve três temas universais: vida, morte, renascimento. Deslumbrante do título ao ponto final, O albatroz azul é uma pintura, pincelada por um texto sonoro, luminoso – sim, com a luminosidade da paradisíaca ilha de Itaparica -, num dos mais belos livros já escritos em língua portuguesa, e que proporciona um raro prazer estético e existencial.
Um trecho:
Velho como está, então lhe é possível lembrar tudo do instantinho em que nasceu. Foi menos que um relâmpago, foi uma faísca voadora que sumiu sem chegar a cintilar, uma fresta entreaberta e fechada simultaneamente, com nenhuma direção. Mas ele já viveu o bastante para estar seguro de que, naquela passagem, soube tudo – passado, presente e futuro, os três embolados, sem antes nem depois.
Saudades eternas, D. João I e único, no reino das letras deste mundo.
*****
Morremos com os mortos.
Eles partem e com eles nos levam.
Nascemos com os mortos.
Eles retornam e consigo nos trazem.
Saudades de quem me recitou estes versos de T. S. Eliott ao telefone, na tarde de 23 de julho de 2006: aquele que, no Ginásio de Alagoinhas, me apresentou às obras de Jorge Amado, Graciliano Ramos e Monteiro Lobato. Seu nome: Carloman Carlos Borges, um professor de matemática e geografia que amava a literatura, e que iria dedicar a maior parte de sua vida à Universidade Estadual de Feira de Santana. Ele, que já se foi, aqui retorna trazendo Jorge, Zélia, James, Calazans Neto, Hélio Pólvora, Guido Guerra, Consuelo Pondé de Sena, Sônia Coutinho, Marcos Santarrita, Ildázio Tavares, David Salles, Ariovaldo Matos - a quem muito devo, assim como ao hoje ilustre membro desta Academia, o poeta e ensaísta João Carlos Teixeira Gomes, o Pena de Aço. Ari e Joca me adestraram na arte de escrever. Foi no Jornal da Bahia, onde ingressei pelas mãos de seu dono, João da Costa Falcão, a pedido de um amigo dele de Alagoinhas, um militante comunista chamado Mário Alves. Antes que alguém aqui se benza dizendo “Comunista! Cruz, credo!”, vos direi: falo de um santo homem, o meu anjo da guarda, que me trouxe do interior para a capital, e que, mais do que um emprego, me arranjou um destino. Vestido com um terno branco, como se estivesse indo à missa, ele pagou a minha passagem de trem - um trem tão bonito que se chamava Martha Rocha -, o táxi da estação da Calçada à Praça Cayru e o bilhete do Elevador Lacerda, e, na Cidade Alta, marchamos a pé até o escritório de João Falcão, que de longe reconheceu a voz de quem chamava por ele. – É você, Mário? – João Falcão perguntou, lá de dentro. E logo fui entregue ao poderoso empresário, que, sem prescindir da companhia do seu amigo Mário Alves, me levou ao seu jornal, lá me deixando aos cuidados do ficcionista e dramaturgo Ariovaldo Matos, o editor-chefe, que por sua vez me passou ao poeta João Carlos Teixeira Gomes, o chefe da reportagem geral. Ari, Joca, e mais outro poeta, Jeovah de Carvalho, chefe da reportagem policial, e o talentoso repórter Humberto Vieira da Cruz - um primo meu que, por incrível que pareça, só viria a conhecer naquela Redação -, me prepararam em pouco tempo para ir bater na porta do jornal Última Hora, de São Paulo, entrar e lá ficar, não sem, diga-se, a força de dois baianos, Carlos Coelho e Walfredo Girardi Reis.
Memória! Junte na sala do cérebro os inumeráveis bem amados. Que de passados e presentes afetos esta noite se paramente, como quereria o poeta Vladímir Maiacóviski, que parodio, sem cerimônia. Portanto, Sra. Dona Memória, junte aqui Nerina e Zica Torres, os que me tiraram do cabo de uma enxada para estudar em Alagoinhas, a terra da laranja, onde, em tempo de luzes verdes e sonhos dourados, eu viria a fazer amigos para sempre, como Josival Vaz Fagundes, Kerdoval Macedo, Valdemar Arlego Paraguassu, Aristóteles Freitas Costa, a prima Maria Gesilda da Cruz, filha de Alzira, irmã de Giése, aos quais também muito devo. Assim como a Maria e Mário Gomes – os pais do poeta Goulart Gomes -, que me deram guarida em sua casa aos fundos do edifício número três da rua João de Deus, no Pelourinho. Indo bem ao fundo da memória, vejo aquela que me ensinou o beabá - Dona Durvalice, minha mãe, que aqui está, viva ela -, à qual se junta a professora Serafina, que, na sua escola risonha e franca, ensinava os meninos a cantar hinos e declamar poemas patrióticos. Já Dona Teresa gostava mesmo era de uma boa prosa, que nos fazia ler em voz alta - “Verdes mares bravios da minha terra natal, onde canta a jandaia na fronde da carnaúba”.
Igualmente reverenciável é o poeta e Meritíssimo Juiz de Direito Eurico Alves Boaventura - primo do acadêmico Edivaldo Boaventura -, que chegou a Alagoinhas no ano de 1959, para ensinar uma cidade que dormitava ouvindo estrelas a ler a poesia moderna, da qual ele era amigo íntimo, a ponto de trocar versos com alguns de seus ícones, como Manuel Bandeira e Jorge de Lima.
Portanto, que esta noite se embriague de prosa, poesia e virtudes às glórias do passado, presente e futuro das letras e artes dessa terra que me deu régua e compasso – a mesma terra de Gil, Caetano, Gláuber, Geraldo del Rey, Caymmi, Othon Bastos, Capinan, Myriam Fraga, Florisvaldo Mattos, Ruy Espinheira Filho, Orlando Sena, Muniz Sodré, Tomzé, Carlos Pitta, Cajazeira, Aleilton Fonseca, Aramis Ribeiro Costa, Carlos Ribeiro, Luis Pimentel, Cyro de Mattos, Adelice Souza, Aninha Franco, Gláucia Lemos, Antônio Brasileiro, Rita Santana, Roberval Pereyr, Risério, Fernando da Rocha Peres, Paulo Costa Lima... tntos, tantos.
Por fim, mas não por último, celebro mais: os leitores, professores, estudantes, a imprensa em geral e a nossa crítica literária em particular, de José Olímpio da Rocha a Jorge de Souza Araújo, de Cid Seixas a Gerana Damulakis.
Muitíssimo obrigado, querida e imortal Bahia.
Salvador, 21 de maio de 2015.
Exmo. Sr. Jorge Portugal, digníssimo Secretário de Cultura do Estado da Bahia, em nome de quem saúdo as demais autoridades presentes.
Meus familiares e amigos.
Senhoras e senhores acadêmicos,
É inenarrável a honra de ser aceito nesta Academia, que desde o ano de 1917 reúne o que há de mais expressivo na cultura do nosso estado, e cujos antecedentes históricos datam do século XVIII, no Brasil-Colônia. Já naquela época houve aqui em Salvador duas tentativas de dotar o país de uma entidade capaz de congregar os seus ainda incipientes interesses literários. A primeira se chamou Academia dos Esquecidos. A segunda, Academia dos Renascidos.
Passos adiante, já no século XIX, outra iniciativa do gênero leva ao que é considerado o prelúdio desta Academia de Letras. Foi quando o então futuro Barão de Macaúbas fundou o Instituto Literário da Bahia. Passou-se isto no ano de 1845.
Em 1911, Almachio Diniz funda a Academia Baiana de Letras que, como as anteriores, não prosperou. Mais tarde, juntamente com Rui Barbosa, Severino Vieira, Egas Muniz Barreto de Aragão, Antônio Alexandre Borges dos Reis e Felinto Bastos, Almachio viria a tornar-se membro-fundador de uma nova e definitiva entidade, idealizada e organizada pelo engenheiro Arlindo Fragoso, o mesmo criador do Instituto Politécnico.
Foi assim que nasceu a Academia de Letras da Bahia, à qual, quase um século depois, este velho escriba chega, trazendo a sua gratidão pela generosidade do acolhimento nesta Casa de tantos amigos, e na sucessão de outro, o saudoso João Ubaldo Ribeiro - por extenso, João Ubaldo Osório Pimentel Ribeiro -, o brilhante romancista de Sargento Getúlio e Viva o povo brasileiro, só para citar os seus títulos mais aclamados, e que nos legou também uma vasta produção de pequenas joias em crônicas e contos – como uma obra-prima do gênero, Era diferente o dia de matar o porco, selecionado pelo escritor Valdomiro Santana para uma das melhores antologias de contistas baianos já publicadas.
Nascido em Itaparica em 23 de janeiro de 1941, filho primogênito de Maria Felipa Osório Pimentel e Manoel Ribeiro, João Ubaldo viria a fazer da sua ilha um cenário de “navegação infinita pela palavra”, no dizer daquela que com mais afinco e propriedade tem se dedicado ao estudo de sua obra, a doutora em Letras Rita Olivieri-Godet, titular de literatura brasileira na Universidade de Rennes, na França. A bem dizer, João Ubaldo dispensaria encômios protocolares, tão grande, forte e justo foi o reconhecimento que granjeou em vida, e que certamente perdurará pela nossa história literária afora.
Sim, todos conhecemos a sua trajetória – que é, aliás, a de um raro escritor a conseguir, em tempos de triunfo das nulidades fugazes -, se impor sem concessões mercadológicas, e de forma duradoura. Fabulosa, em todos os sentidos, sua obra é uma monumental contribuição à literatura brasileira, ao mesmo tempo enriquecedora da última flor do Lácio, que ele tornou mais culta e ainda mais bela, em várias edições, merecedoras de numerosas traduções, premiações – entre elas a maior láurea da lusofonia, o Prêmio Camões -, teses acadêmicas, livros e livros a mão cheia, como os da já citada Rita Olivieri-Godet, Construções identitárias na obra de João Ubaldo Ribeiro e Viva o povo brasileiro – a ficção de uma nação plural, adaptações para o cinema, a televisão, o teatro e, até, enredo de escola de samba.
Sucessor de Cláudio Veiga, a quem, no seu discurso de posse, em cerimônia aqui realizada na noite de 22 de novembro de 1912, louvou como “um homem de letras por excelência e um apaixonado pelo que ensinava”, João Ubaldo Ribeiro foi, nesta Academia, o quinto ocupante da Cadeira número 9, cujo patrono é Antônio Ferreira França, nascido em Salvador em 1771, e falecido em 1848, quando a Bahia lhe demonstrou um apreço incomum, ao comparecer em peso ao seu funeral, tornado um acontecimento extraordinário. Médico e professor de aritimética, álgebra e geometria no Colégio da Companhia de Jesus, Antônio Ferreira França contribuiu para o alto grau do ensino a que tinham acesso os jovens baianos daquele tempo. Ministrou Aulas Régias no Liceu Provincial e na Faculdade de Medicina, e foi interlocutor de um discípulo e cliente, o escritor Caetano Lopes de Moura, que ajudou a se curar de uma pleurisia. Assim que se recuperou dessa grave doença, Caetano Moura partiu para a Europa, onde teve uma existência romanesca e de aventuras. Soldado e biógrafo de Napoleão, ele escreveu e publicou seus livros na França. Mesmo considerado por Sílvio Romero “um dos nossos notáveis prosadores”, a crônica literária passou uma esponja em seu nome, como registrou Cláudio Veiga aqui, em seu discurso de posse, com a autoridade de autor de uma biografia desse hoje esquecido escritor baiano.
Coube a um descendente do mestre e médico de Caetano Moura ser o fundador da cadeira a que terei assento nesta egrégia Casa, como o seu sexto ocupante. O primeiro a ocupá-la, portanto, foi José Alfredo de Campos França, figura de grande projeção na sociedade baiana do começo do século vinte. Nascido em 19 de março de 1865, Campos França bacharelou-se em Direito em 1894. Ainda estudante, tornou-se adjunto de Psicologia na antiga Escola Normal, onde, em 1905, viria a ser catedrático de História do Brasil. Antes disso, em 1897, conseguira, por concurso, ser nomeado professor substituto na Faculdade de Direito, na qual, em 1899, é promovido a catedrático de Direito Internacional, sendo, no ano seguinte, transferido para a cátedra de Direito Civil.
Paralelamente às suas atividades no magistério, José Alfredo de Campos França desenvolvia intensa carreira política, que começou como deputado estadual, cargo que exerceu de 1895 a 1904. Em 1905 teve a desdita de ser vitimado por uma hemiplegia, que afetou o seu lado direito. Mas não se deixou derrotar pela paralisia, mantendo-se em cena bravamente, em dois mandatos no Senado Estadual - surgido com a Proclamação da República e extinto com a Revolução de 1930 -, e outro na Câmara Federal. Em resumo: foi com o seu saber jurídico e a sua bagagem parlamentar que Campos França, considerado por Rui Barbosa uma das mais eminentes figuras do seu tempo, chegou à Academia de Letras da Bahia. Ele faleceu em 1923, sendo aqui sucedido pelo também catedrático na Faculdade de Direito Edgar Ribeiro Sanches, descrito por Demóstenes Madureira de Pinho como um homem de pensamento, e de excepcional cultura, cuja capacidade de transmitir conhecimentos e de escarvar a inteligência do discípulo fazia dele um modelo de mestre, cujas lições não terminavam nas aulas, mas continuavam nas conversas, nos encontros casuais, nas palestras improvisadas.
Nascido em Salvador no ano de 1891, Edgar Raggio Ribeiro Sanches era tido como um orador sensível à magia do estilo, cujos discursos entusiasmava os jovens. O que certamente o deixava empolgado, como no trecho de um deles, que cito:
Falar à mocidade é, sem dúvida, uma das maiores alegrias do homem. Dizer aos que vieram depois de nós a lição da nossa experiência é míster dos mais gratos ao coração. Clamar aos ouvidos inexperientes dos que estão a subir a mais bela vertente da vida, os que estão a galgar os cimos alagados da claridade do ideal, os ensinamentos que recolhemos no curso da nossa própria existência é este um dos mais nobres labores.
Tão eloquente tribuno haveria de ser levado pela política à então capital do país, o Rio de Janeiro, onde, na década de 1930, representaria a Bahia na Câmara Federal. Na Constituinte de 1933, compôs a bancada baiana com os deputados José Joaquim Seabra, Marcos dos Reis, Medeiros Neto, e os membros desta Academia Magalhães Neto, Aloísio de Carvalho Filho e Homero Pires. Entre os seus destaques parlamentares figura um discurso polêmico proferido na véspera da Semana Santa de 1934, quando, a propósito da referência ao nome de Deus no preâmbulo da Constituição, emitiu conceitos condizentes com a sua condição de incréu, o que resultou em muitos apartes. E pior: sua oração não foi transcrita nos anais da Constituinte. Também não teria sido bem aceito um estudo que escrevera como parecer a um projeto legislativo que mandava dar ao idioma falado no Brasil a denominação de língua brasileira, que, ao contrário do livro de Luís Viana Filho – A Língua no Brasil -, e um trabalho de Artur Neiva sobre o mesmo assunto – Estudos de Língua Nacional -, não viria a merecer dos especialistas referências favoráveis.
Edgar Raggio Ribeiro Sanches faleceu no Rio de Janeiro em 1974. Foi sucedido nesta Casa pelo cientista social e humanista Antônio Luiz Machado Neto, mestre da Filosofia do Direito e da Sociologia, disciplinas que o tornaram um nome nacional.
Nascido em Salvador em 1930, Machado Neto teve uma existência breve, mas plena de realizações. Professor da Universidade Federal da Bahia, e da Universidade de Brasília (entre os anos de 1962 e 1965), destacou-se no cenário cultural baiano por sua intensa atividade de pesquisador e escritor. Suas pesquisas científicas e análises da vida intelectual renderam-lhe inúmeros livros, artigos em jornais e revistas de ciência e cultura nacionais e estrangeiras, participação em congressos no Brasil e no exterior. Era Machado Neto ainda um estudante de 22 anos quando publicou o seu primeiro livro, Dois Aspectos da Sociologia do Conhecimento, tido e havido como uma das primeiras contribuições brasileiras a esse novo setor da Sociologia. E até aos 28 anos publicaria mais quatro títulos: Marx e Mannhein, Sociedade e Direito na Perspectiva da Razão Vital, Para uma Sociologia do Direito Natural, e Filosofia da Filosofia – Introdução Problemática da Filosofia. E não parou por aí.
Sua produção foi extensa, chegando a cerca de 30 livros, entre os quais se inclui a sua tese apresentada para o concurso de Titular de Sociologia, intitulada Estrutura Social na República das Letras. Outro seu legado aos interessados na nossa história literária é o ensaio A Bahia Intelectual (1900-1930). Pensador moderno, Machado Neto era avesso aos exercícios estilísticos, que chamava de “ouropéis da erudição retórica”, contra o que se insurgiu até em seu discurso de posse nesta Academia, em 31 de maio de 1973, quando o acadêmico José Calasans Brandão da Silva fez-lhe as honras da Casa. Aqui, teve como sucessor Cláudio de Andrade Veiga, que foi recebido por Hélio Simões em 18 de maio de 1978.
Doutor em Letras e Professor Emérito da Universidade Federal da Bahia, Cláudio Veiga nasceu em Salvador no dia 28 de maio de 1927. Ele estudou na Sorbonne e no Instituto de Filologia de Estrasburgo, aperfeiçoando-se em Língua e Literatura francesas, às quais dedicou boa parte de sua obra, vindo a publicar uma antologia bilíngue de poesia, muito bem recebida em Paris por consagrados escritores como Maurice Druon e Jean d’ Ormesson, o mesmo Jean d’ Ormesson que é hoje, aos 88 anos, o decano da Academia Francesa, e uma celebridade no mundo das letras em seu país. Do interesse francófono de Cláudio Veiga destaca-se ainda o seu livro Um brasilianista francês, cuja primeira parte é dedicada a Philéas Lebesgue, que no começo do século XX foi o principal divulgador da literatura brasileira na França. Lesbeque se correspondia com nossos escritores, de norte a sul, traduzia poetas (Manuel Bandeira, Guilherme de Almeida e Mário de Andrade, por exemplo), e ficcionistas como José de Alencar, Coelho Neto e o baiano Xavier Marques.
É bem alentado o currículo do quarto ocupante da Cadeira número 9, tanto pela sua produção literária quanto pelas funções que exerceu, a saber: diretor do Instituto de Letras da UFBa, substituto eventual do reitor daquela instituição, presidente da Associação Brasileira dos Professores Universitários de Francês, membro do Conselho Estadual de Cultura, membro desta Academia de Letras, que presidiu por 26 anos seguidos. Igualmente dignos de nota são os títulos honoríficos que recebeu, na França, em Portugal e Bahia, onde, por duas vezes, lhe foi conferida a Ordem do Mérito, como Comendador e Grande Oficial.
Agraciado pela Academia Francesa com o Grand Prix de Rayonnement de la Langue Française, Cláudio Veiga recebeu também o Troféu Francisco Igreja, da União Brasileira de Escritores, e o Prêmio Nacional de Ensaio, da Academia Brasileira de Letras.
Sua rica bibliografia inclui trabalhos como Castro Alves Guia da Catedral, Sete Tons de uma Poesia Maior - um ensaio sobre o simbolista Arthur de Salles -, e Poetas e Prosadores na Bahia, aos quais se somam suas contribuições aos estudos de literatura comparada, de que o livro Camões e Ronsard é um bom exempo.
Uma parte significativa do que Cláudio Veiga escreveu teve acolhida em editoras do eixo Rio-São Paulo, como Record, Tempo Brasileiro, Topbooks, Ática e FTD, despertando as atenções de críticos importantes, como Afrânio Coutinho – que o chamava de mestre -, e Wilson Martins – que louvou sua extraordinária e sólida cultura humanística.
“Sua obra, não pequena, permance importante e atual”, lembrou João Ubaldo Ribeiro, ao ser empossado aqui, na já referida noite de 22 de novembro de 2012, quando foi recebido pelo acadêmico Joaci Góes. “À frente desta Academia Cláudio Veiga foi um trabalhador infatigável e devotado, que deixou um legado talvez inestimável”, frisou Ubaldo.
Com a morte de Jorge Calmon, de quem era muito amigo, em 18 de dezembro de 2006, Cláudio Veiga renunciou a seu último mandato, quando ainda faltavam dois anos para terminá-lo. Foi então substituído pelo vice-presidente, Edvaldo Boaventura. Reconduzido para uma nova gestão, Boaventura presidiu a renovação dos Estatutos, que limitou o mandato a 2 anos, com apenas uma recondução, e retirou a exigência de se residir em Salvador para ser membro efetivo desta Casa.
Senhoras e Senhores,
Não poderia fechar este histórico das eminentes figuras que aqui me antecederam sem um preito àquele que me coube suceder.
Ele me chamava de compadre. Por um bom tempo convivemos entre bares e lares do Rio de Janeiro, e - às vezes tendo outro tipo inesquecível entre nós, o gaúcho Moacyr Scliar -, participamos de algumas das mesas mais animadas da minha vida de palestrante. Três delas foram memoráveis: no Fórum de Ciência da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no Salão do Livro de Paris e na Feira do Livro de Frankfurt. Com o passar do tempo, nossos encontros foram rareando. Mas de vez em quando nos falávamos ao telefone, ou nos correspondíamos via internet. Na última vez que lhe escrevi, perguntei quando era que a gente ia se reencontrar, para dar umas boas risadas. Ele me respondeu que iria voltar a frequentar a Academia Brasileira de Letras para convivermos mais. Não demoraria a estar lá. Para ser pranteado.
Às 8 horas da manhã de 18 de julho de 2014, o telefone toca. Susto. Quem e o que poderia ser, tão cedo? Era uma repórter de uma rádio de São Paulo, que, mal diz “Bom dia”, detona: “João Ubaldo Ribeiro acaba de morrer. O que o senhor tem a dizer sobre isso?” Não! Ele era 4 meses e 10 dias mais novo do que eu. Tal infausto só podia ser uma injustiça divina. Ato contínuo, chamo um táxi e me ponho a correr para o velório, na Academia Brasileira de Letras, na qual ele ocupava a cadeira 34 desde 8 de junho de 1994, quando ali foi recebido pelo também baiano Eduardo Portella, de cuja saudação pincei estas linhas precisas: “A obra de João Ubaldo recolheu os inúmeros tempos da nossa História e os reconstruiu. Juntou o passado ao futuro e deixou o presente perpassar esse interminável horizonte que vai e vem do mato ao mar”.
Agora, era da Casa de Machado de Assis que ele iria partir para a tal da última morada. De cara, avisto, vestida de preto e aos prantos, a moça de Birigui, no interior de São Paulo, que João Ubaldo conheceu na cidade de Natal, no Rio Grande do Norte, onde ela estava morando. Foi durante um encontro de escritores nordestinos, para o qual nós dois fomos convidados. “Fui testemunha ocular do começo de tudo”, eu disse a Berenice, ao abraçá-la. E aí vi os seus olhos contristados se iluminarem: “Menino, e eu não me lembro?”, ela me respondeu, entre lágrimas e risos. Naquele momento tão doloroso restou-me o consolo ter sido capaz de fazê-la sorrir.
Comove-me recordar ainda, aqui e agora, o último romance de João Ubaldo, O albatroz azul, que envolve três temas universais: vida, morte, renascimento. Deslumbrante do título ao ponto final, O albatroz azul é uma pintura, pincelada por um texto sonoro, luminoso – sim, com a luminosidade da paradisíaca ilha de Itaparica -, num dos mais belos livros já escritos em língua portuguesa, e que proporciona um raro prazer estético e existencial.
Um trecho:
Velho como está, então lhe é possível lembrar tudo do instantinho em que nasceu. Foi menos que um relâmpago, foi uma faísca voadora que sumiu sem chegar a cintilar, uma fresta entreaberta e fechada simultaneamente, com nenhuma direção. Mas ele já viveu o bastante para estar seguro de que, naquela passagem, soube tudo – passado, presente e futuro, os três embolados, sem antes nem depois.
Saudades eternas, D. João I e único, no reino das letras deste mundo.
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Morremos com os mortos.
Eles partem e com eles nos levam.
Nascemos com os mortos.
Eles retornam e consigo nos trazem.
Saudades de quem me recitou estes versos de T. S. Eliott ao telefone, na tarde de 23 de julho de 2006: aquele que, no Ginásio de Alagoinhas, me apresentou às obras de Jorge Amado, Graciliano Ramos e Monteiro Lobato. Seu nome: Carloman Carlos Borges, um professor de matemática e geografia que amava a literatura, e que iria dedicar a maior parte de sua vida à Universidade Estadual de Feira de Santana. Ele, que já se foi, aqui retorna trazendo Jorge, Zélia, James, Calazans Neto, Hélio Pólvora, Guido Guerra, Consuelo Pondé de Sena, Sônia Coutinho, Marcos Santarrita, Ildázio Tavares, David Salles, Ariovaldo Matos - a quem muito devo, assim como ao hoje ilustre membro desta Academia, o poeta e ensaísta João Carlos Teixeira Gomes, o Pena de Aço. Ari e Joca me adestraram na arte de escrever. Foi no Jornal da Bahia, onde ingressei pelas mãos de seu dono, João da Costa Falcão, a pedido de um amigo dele de Alagoinhas, um militante comunista chamado Mário Alves. Antes que alguém aqui se benza dizendo “Comunista! Cruz, credo!”, vos direi: falo de um santo homem, o meu anjo da guarda, que me trouxe do interior para a capital, e que, mais do que um emprego, me arranjou um destino. Vestido com um terno branco, como se estivesse indo à missa, ele pagou a minha passagem de trem - um trem tão bonito que se chamava Martha Rocha -, o táxi da estação da Calçada à Praça Cayru e o bilhete do Elevador Lacerda, e, na Cidade Alta, marchamos a pé até o escritório de João Falcão, que de longe reconheceu a voz de quem chamava por ele. – É você, Mário? – João Falcão perguntou, lá de dentro. E logo fui entregue ao poderoso empresário, que, sem prescindir da companhia do seu amigo Mário Alves, me levou ao seu jornal, lá me deixando aos cuidados do ficcionista e dramaturgo Ariovaldo Matos, o editor-chefe, que por sua vez me passou ao poeta João Carlos Teixeira Gomes, o chefe da reportagem geral. Ari, Joca, e mais outro poeta, Jeovah de Carvalho, chefe da reportagem policial, e o talentoso repórter Humberto Vieira da Cruz - um primo meu que, por incrível que pareça, só viria a conhecer naquela Redação -, me prepararam em pouco tempo para ir bater na porta do jornal Última Hora, de São Paulo, entrar e lá ficar, não sem, diga-se, a força de dois baianos, Carlos Coelho e Walfredo Girardi Reis.
Memória! Junte na sala do cérebro os inumeráveis bem amados. Que de passados e presentes afetos esta noite se paramente, como quereria o poeta Vladímir Maiacóviski, que parodio, sem cerimônia. Portanto, Sra. Dona Memória, junte aqui Nerina e Zica Torres, os que me tiraram do cabo de uma enxada para estudar em Alagoinhas, a terra da laranja, onde, em tempo de luzes verdes e sonhos dourados, eu viria a fazer amigos para sempre, como Josival Vaz Fagundes, Kerdoval Macedo, Valdemar Arlego Paraguassu, Aristóteles Freitas Costa, a prima Maria Gesilda da Cruz, filha de Alzira, irmã de Giése, aos quais também muito devo. Assim como a Maria e Mário Gomes – os pais do poeta Goulart Gomes -, que me deram guarida em sua casa aos fundos do edifício número três da rua João de Deus, no Pelourinho. Indo bem ao fundo da memória, vejo aquela que me ensinou o beabá - Dona Durvalice, minha mãe, que aqui está, viva ela -, à qual se junta a professora Serafina, que, na sua escola risonha e franca, ensinava os meninos a cantar hinos e declamar poemas patrióticos. Já Dona Teresa gostava mesmo era de uma boa prosa, que nos fazia ler em voz alta - “Verdes mares bravios da minha terra natal, onde canta a jandaia na fronde da carnaúba”.
Igualmente reverenciável é o poeta e Meritíssimo Juiz de Direito Eurico Alves Boaventura - primo do acadêmico Edivaldo Boaventura -, que chegou a Alagoinhas no ano de 1959, para ensinar uma cidade que dormitava ouvindo estrelas a ler a poesia moderna, da qual ele era amigo íntimo, a ponto de trocar versos com alguns de seus ícones, como Manuel Bandeira e Jorge de Lima.
Portanto, que esta noite se embriague de prosa, poesia e virtudes às glórias do passado, presente e futuro das letras e artes dessa terra que me deu régua e compasso – a mesma terra de Gil, Caetano, Gláuber, Geraldo del Rey, Caymmi, Othon Bastos, Capinan, Myriam Fraga, Florisvaldo Mattos, Ruy Espinheira Filho, Orlando Sena, Muniz Sodré, Tomzé, Carlos Pitta, Cajazeira, Aleilton Fonseca, Aramis Ribeiro Costa, Carlos Ribeiro, Luis Pimentel, Cyro de Mattos, Adelice Souza, Aninha Franco, Gláucia Lemos, Antônio Brasileiro, Rita Santana, Roberval Pereyr, Risério, Fernando da Rocha Peres, Paulo Costa Lima... tntos, tantos.
Por fim, mas não por último, celebro mais: os leitores, professores, estudantes, a imprensa em geral e a nossa crítica literária em particular, de José Olímpio da Rocha a Jorge de Souza Araújo, de Cid Seixas a Gerana Damulakis.
Muitíssimo obrigado, querida e imortal Bahia.
Salvador, 21 de maio de 2015.