Homenagem aos professores - Discurso de Letras
Ouça aqui: https://www.youtube.com/watch?v=y7zEyjM6hso
Boa noite, obrigado e parabéns turma de graduados...
Lá na vila as pessoas mais velhas não têm tanta escolaridade quanto vocês. A dona Maria da minha rua, por exemplo, fez até a quarta série. No entanto, a dona Maria recebe diariamente pessoas que querem aprender a costurar. Ela é uma ótima costureira. Dona Maria sabe falar a linguagem das agulhas, a linguagem dos tecidos, e sabe como passar esta informação a outras pessoas. Dona Maria sabe falar com as pessoas de um jeito bacana, e nessas conversas corações são costurados e sonhos são bordados. Dona Maria é a história de uma pessoa que estudou pouco e sabe muito, como tantas outras histórias com este mesmo tema que ouvimos por aí. Estas histórias, porém, acabam virando um lugar comum, um clichê, e por isso, nós não damos os devidos ouvidos a elas. Quantas Donas Marias não moram na tua rua? Na tua casa? Não são tua mãe, teu pai, teus avós ou algum vizinho?
A linguagem que nós estudamos tanto durante os anos de graduação das Ciências Humanas se estende para um entendimento mais amplo. E é disso que eu gostaria de falar para vocês hoje nesta bela e calma noite. Vocês vejam, nós somos o resultado eterno de uma conta feita para sempre. E nesta conta há subtrações, divisões, somas, multiplicações de todos os elementos que nós experienciamos na vida, de todas as cenas que vivemos, dos dias frios, do filme ruim, do amor encontrado, da felicidade espontânea, de alguma derrota ou frustração nossa. E foram momentos assim que adicionamos ao resultado múltiplo e movimentado que somos quando escolhemos entrar na faculdade. E os dias de discussão, os dias de sofrimento, do trabalho sendo feito na última hora, de estudo para as avaliações vão ficando amenos e nostálgicos na ilha de edição que a nossa memória é. É como se hoje assistíssemos ao nosso próprio filme e toda a dor e alegria passadas são de se chorar, rir, de se sentir novamente. É a tal saudade que nós falantes desta língua portuguesa sabemos bem o que é, por termos uma palavra que aponta para esta abstração sentimental.
Todos os estudos nossos durante estes longos anos que hoje parecem tão curtos foram para um a um desvendarmos e refletirmos sobre a nossa visão automática para as coisas, foram para nos colocar como participante ativo de todo e cada momento que estejamos presentes, como este que está acontecendo aqui e agora. Tudo que estudamos contribui para o desvendamento do que é a linguagem, a comunicação, a mensagem pensada e passada. É aí que descobriremos com mais razão a dona Maria das nossas ruas. É aí que perceberemos que a linguagem se desdobra para ser mais do que a nossa visão automática via. É aí que vemos que há pessoas que falam a língua da cores e pintam quadros ótimos, há outras que são fluentes em fazer um café da tarde ótimo, outras que falam o idioma da limpeza das casas. Tudo é uma linguagem, um código que vamos capturando, e aumentar a nossa percepção dessa linguagem, desse código, que está a todo o momento com nós, é o que aprendemos na graduação e que continuamos aprendendo para sempre depois dela, acreditem em mim.
Quando se damos conta disso, olhamos com outros olhos aquele tio do campo que dificilmente conversamos por causa da nossa rotina tão corrida e tecnológica. São tantas as linguagens que ele fala e que nós não, que nos enchemos de perguntas. E de fato este nosso tio distante também tem muitas perguntas a nós, afinal nós e todas as nossas circunstâncias somos plateias uns dos outros. E está aí outra coisa que está na nossa frente e por isso mesmo é tão fácil de esquecer. A importância de se ter uma plateia, de se dar ouvidos, de se olhar para as pessoas, e de ser visto. É isso que alimenta a maquinaria das relações pessoais. Alguns anos depois da minha própria graduação, eu chego aqui para falar para vocês e é porque eu os percebo que eu falo com este tom, com estas palavras, e pausas. Fossem vocês todos crianças e eu teria trazido desenhos e frases não tão enfadonhas como estas que vos falo. Eu, então, por mais que fale primeiro, sou uma resposta a vocês. Se este lugar estivesse vazio, eu não falaria nenhuma palavra. Nós necessitamos sempre de um outro para simplesmente sermos. Se pergunte: por que o adolescente grita bravo com a mãe e bate a porta do quarto? Pela obviedade monstruosa de existir uma mãe, uma casa, com um quarto e uma porta. A garota não diz “não” ao esperançoso e romântico garoto se não houver um esperançoso e romântico garoto. Estamos, assim, numa eterna construção dentro da distância entre nós e os outros. Somos nós também os outros para outros. Eu também construo aquele que não me é. Neste exato momento aqui nós nos construímos, todos, todos os resultados e circunstâncias que somos estão aqui espalhados por nós...
Talvez este meu discurso não esteja soando tão glorioso, mas é do resultado construído até agora por estes graduados que eu quero chamar à atenção de vocês, este resultado da conta eterna que são eles mesmos. E é disso que estamos falando aqui, é de cada um desses alunos que se construíram para ensinar, para se tornar um professor. O professor que cada vez mais se esforça para entender as linguagens diversas de cada aluno, os talentos escondidos, as situações complexas das salas de aula e fora delas. E a visão do professor mesmo muitas vezes se automatiza, e o professor acaba não sabendo bem o tamanho que tem, não dá ouvidos a ele mesmo, não nota a importância deste outro que ele é aos alunos e à sociedade, desta plateia que ele próprio se tornou.
Pense nas personalidades históricas e famosas, pense em você mesmo, e se lembre do professor que pegou na mão tua e deles e fez todos desenharem as vogais. E é aí que tudo começa, pois ensinar alguém a falar, ensinar alguém a possuir uma linguagem é dar a este alguém um contorno no mundo, uma fala, um gesto, uma significação. A linguagem nos amplia, nos estica. Mesmo eu não estando com alguém, eu posso me esticar através de um papel qualquer, numa mensagem qualquer, posso escrever e alcançar com a ponta das palavras o que eu quero alcançar: Como sem palavras sairia um "Eu te amo" num papel velho? Como se enviaria a carta de amor, de despedida, de aviso da morte? Até um tchau é linguagem! Afinal, o que é aquele tchauzinho? Aquele abanar da mão com os dedos todos erguidos? O que é senão uma tentativa última de mesmo distante ainda ter alguma coisa que una duas pessoas, que comunique, que passe uma mensagem? E não é verdade que nos sentimos até tristes ou ofendidos quando não recebemos um tchau decente de alguém que gostamos? Perguntem aos filhos que perderam os pais, os pais que perderam os filhos num de repente, e vocês verão.
Ensinar alguém a se pronunciar perante o mundo é uma coisa importante, talvez a mais importante de todas as coisas… O professor auxilia o sem voz a ter voz, o sem letra a ter letra, o sem gesto a ter gesto, o sem significação a significar: e aí aquele aluninho vai poder convidar o amiguinho para brincar, vai poder pedir o que quiser: “com mais açúcar, mamãe” talvez diga. O alunão vai poder explicar melhor aquele sentimento tão difícil de explicar, vai ser capaz de reconhecer os números no telefone e discar apressado e gritar as saudades para alguém de quem tenha saudades. A palavra elimina as distâncias, ou ao menos tenta com força fazer isso. E o professor das línguas outras? Tão esquecido… Mas de igual importância. Ensinar alguém a falar uma outra língua é abrir uma porta para um outro mundo de possibilidades, é rir da piada até ontem inalcançável, é conhecer mais palavras e poder usá-las, e é, sobretudo, poder conhecer mais pessoas. E mais sobretudo ainda, ensinar uma língua outra a alguém é transformar algo que era uma fronteira em uma bela e firme ponte.
Se de fato no início de tudo era o verbo, e o verbo se tornou carne, se de fato Deus disse “Faça-se a luz”, em que língua Deus disse isso? Havia então uma linguagem antes de tudo? Se um ponto no nada imenso explodiu e criou todas as coisas, onde estava o código matemático que fez esse ponto explodir? Ensinar alguém uma linguagem é colocar este alguém em contato com a possibilidade deste cálculo, com a possibilidade de sonhar sobre o passado e o futuro, com a possibilidade de falar com Deus, com a possibilidade de aprender com as coisas da vida e guardar as memórias em palavras e revivê-las todas ao contá-las a um amigo. Ensinar alguém alguma coisa é se espalhar para ser este alguém, é ser um pouquinho todos os alunos. Por isso eu repito, o professor não sabe bem o tamanho que tem e há razão para isso, pois o professor é do tamanho da capacidade humana de se maravilhar com as coisas.
É muito fácil pensar que as coisas estão todas na “minha” frente, “me atrapalhando”. Enquanto recém-professores vocês notarão que a nossa fala automática é a de vítima. Todos somos as vítimas, os oprimidos, nunca os opressores. É como aquela velha piada: “Se o aluno passa, ele diz: eu passei. Se o aluno reprova, o aluno diz: o professor me reprovou”. Sei que é uma tarefa difícil se perceber também como parte ativa e constituinte de algo não tão maravilhoso. De se perceber às vezes injusto, de notar a si mesmo como construtor da realidade com a toda a culpa do mundo. Se estou na fila gigantesca do banco, eu raramente me dou conta que não simplesmente estou na fila do banco, mas eu também sou a própria fila. Eu também sou o próprio congestionamento, eu também sou o grupo eterno de pessoas supérfluas que só atrapalham uma tarefa cotidiana qualquer. Isso vem bem a se falar para os que vivem com outras pessoas, para os que convivem. Há coisas que o seu amigo faz que você se irrita, que você detesta, mas nunca fala, não há tanto motivo assim... Decerto há coisas que você também faz que também irritam o teu amigo, mas que ele não se pronuncia sobre... Se perceber como mais um neste planeta cheio de pessoas, é ao mesmo tempo ficar menos arrogante e mais ciente do valor que temos uns para os outros. Cuidem-se, professores, cuidem-se. Não deixem a Dona Maria da tua rua morrer num acidente na esquina de vocês sem vocês darem o devido valor às linguagens que ela fala e que ela pode ensinar, não deixem... porque a esquina cheia de acidentes fatais está sempre à espreita. Nem se deixem pormenorizar neste mundo de gigantes. A Dona Maria, afinal, pode ser nós mesmos, cheios de esperança, cheios de coisas que aprendemos diariamente. E isso, podemos dizer, acontece com todo mundo. Mas vocês todos aqui são diferentes, vocês têm aquela vontade vinda não sei de onde de passar aos outros o que vocês aprenderam, vocês quiseram fazer disso a própria profissão. Isso é perceber que somos o apresentador e a plateia ao mesmo tempo. Isso é notar que somos parte importante na construção mútua dos que estão próximos a nós. Isso é compreender que por mais que em algum momento da vida nos encontremos completamente sozinhos em algum canto do universo, podemos amenizar este sentimento através de alguma linguagem que é a ligação entre nós e os outros, entre nós e Deus, entre nós e o próprio universo. Isso é ser professor. Isso é ser a Dona Maria que mora na rua da vida de cada um de nós.
Eu desejo dias sinceramente bonitos a todos vocês.
Obrigado.
(Discurso proferido por Adrian Lincoln F. Clarindo)