O SERMÃO DA MONTANHA - Parte 3

O SERMÃO DA MONTANHA - Parte 3

HUBERTO ROHDEN

13

“Não Resistais ao Maligno!”

É esta, certamente, uma das palavras mais enigmáticas do Nazareno, das menos

compreendidas, e ainda menos praticadas, sobretudo no ocidente cristão essencialmente violentista. No número de abril de 1959, da célebre revista mensal Stimmen der Zeit, dos padres jesuítas alemães, apare¬ce um artigo, da autoria do jesuíta P. Hirschmann, provando que a guerra atômica pode ser lícita, no caso em que seja necessária para salvar o Cristianismo sobre a face da terra. No mesmo sentido escreve o jesuíta P. Gundlach, que foi conselheiro espiritual do Papa Pio 12º, afirmando que a guerra atômica, e mesmo a extirpação de um povo inteiro (naturalmente a Rússia!) é não somente lícita, mas pode até ser dever de consciência no caso em que esse povo seja um impedimento para o triunfo do Cristianismo.

O que inspira semelhantes monstruosidades, oficialmente aprovadas pela respectiva igreja, é a clamorosa confusão entre “Cristianismo” e “Cristo”. Por “Cristianismo” entendem esses autores uma deter¬minada organização eclesiástica, engendrada, atra¬vés dos séculos, por hábeis teólogos e devidamente codificada pelos chefes hierárquicos dessa sociedade eclesiástica. A fim de preservar da destruição essa organização político-financeiro-clerical apregoam esses homens a liceidade da destruição do espírito do Cristo, que em hipótese alguma aprovaria a morte de um único ser humano, menos ainda a extinção de muitos milhões de inocentes, a fim de salvar o reino de Deus. Como se pode salvar o verdadeiro Cristianismo, que é o reino de Deus, destruindo-o radicalmente pela matança em massa?

Por onde se vê que esses doutores em teologia eclesiástica são perfeitos analfabetos na suprema sabedoria do Sermão da Montanha, e do Evangelho do Cristo em geral.

O gentio Mahatma Gandhi, não permitindo a morte de um só homem para libertar a Índia, compre¬endia mil vezes melhor o espírito do Cristo do que esses chamados “cristãos”, razão por que declarava a todos os missionários do ocidente que procuravam convertê-lo ao Cristianismo: “Aceito o Cristo e seu Evangelho — não aceito o vosso Cristianismo.”

*

“Não resistais ao maligno!”...

Nenhuma igreja, nenhum Estado cristão aceitou, até hoje, essa doutrina do divino Mestre. Todos praticam violência, por sinal que todas as sociedades, civis e eclesiásticas, se guiam, até hoje, pela lei do talião, estabelecida por Moisés, “olho por olho, dente por dente”. Aliás, parece mesmo que uma sociedade organizada não pode guiar-se pelo espírito do Evangelho do Cristo, porque qualquer sociedade organizada é baseada sobre o egoísmo, que aprova à violência; parece que só um indivíduo pode ser realmente crístico, não violentista. A sociedade tem determinados estatutos, leis, parágrafos jurídicos, que implicam sanção, isto é, violência, punição aos infratores dos estatutos jurídicos da sociedade. Sendo que toda a sociedade é produto da inteligência e a inteligência é, essencialmente, egoísta, não pode haver uma sociedade não-egoísta, não-violentista. Se Mahatma Gandhi conseguiu libertar a India com ahimsa (não-violência) foi unicamente porque, ao redor dele, havia numerosos indivíduos firmemente alicerçados na mesma verdade, como concebeu o próprio Presidente Nehru, e não porque a sociedade como tal se guiasse pelo princípio altruísta da ahimsa. Toda e qualquer sociedade, como sociedade, pratica necessariamente himsa (violência), sob pena de se destruir a si mesma, não fazendo valer as suas leis; só um indivíduo pode praticar ahimsa, não pagando mal com mal, mas pagando o mal com o bem, amando aos que o odeiam.

“Não resistir ao maligno” é, pois, uma ordem que visa diretamente o indivíduo em vias de cristifi¬cação. Uma sociedade, sendo fundamentalmente egoísta, nunca pode ser crística, embora possa dizer-se cristã, isto é, egoísta envernizada de Cristianismo.

Nenhuma sociedade organizada pode abrir mão dos seus “direitos”, sob pena de cometer suicídio, ela só existe em virtude dos seus “direitos”; o direito, porém, é uma forma de egoísmo, e egoísmo gera violência. Só se a sociedade abdicasse dos seus “direitos”, tudo endireitaria; mas, enquanto ela faz valer os seus “direitos”, tudo está torto.

O contrário do “direito” é a “justiça”, que épraticamente idêntica ao amor. A “justiça”, no sentido bíblico, é invariavelmente a “justeza”, o perfeito “ajustamento”, a harmonia entre o indivíduo e o Universal, entre o homem e Deus, entre a creatura finita e o Creador Infinito. Essa justiça, porém, é o perfeito amor, como aparece no “primeiro e maior de todos os mandamentos”, enunciado por Jesus.

No frontispício do Fórum da cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, se acham gravadas estas palavras do jurista-filósofo Cícero: Summum jus —Summa injuria (o supremo direito é a suprema injustiça). Quem reclama todos os seus direitos pessoais, age em nome de seu ego, que é necessaria-mente egoísta; mas quem pratica a justiça, age em nome da Constituição Cósmica do Universo, age em nome da própria alma do Universo, que é Deus; age, em nome do amor cósmico, que é a voz do divino Eu no homem.

Quem apela para seus “direitos” age em nome do ego, que é violentista.

Quem apela para a “justiça” age em nome do Eu, que não é violentista.

“Não resistir ao maligno” é, pois, um apelo para o divino Eu no homem, e não para seu humano ego.

*

Há, na legislação mosaica, uma matemática estranha: supõe que uma violência se neutralize com outra violência. Se alguém me arranca um olho ou quebra um dente, e eu lhe arrancar também um olho e quebrar um dente, estamos quites; porque cobrei do meu devedor uma divida em aberto.

Na realidade, porém, não estamos quites, nem eu nem ele, porque um negativo dele mais um negativo meu dão dois negativos; quer dizer que nós dois meu ofensor e eu, ofensor dele, criamos dois males no mundo; e, como a segunda ofensa exige uma terceira, da parte dele, e essa reclama uma quarta ofensa, da minha parte, e assim por diante, numa indefinida “reação em cadeia” — é claro que nós dois, o ofensor de lá e o ofensor de cá, vamos piorando o mundo cada vez mais, enchendo-o de negativos e mais negativos.

Contra essa falsa matemática de Moisés opõe Jesus a verdadeira matemática, absolutamente lógica e racional, afirmando que o negativo (mal) só se neutraliza pelo positivo (bem), e que o único modo de melhorar o mundo e a humanidade é pelo processo de: 1) não resistir ao mal; 2) de opor o bem ao mal. O meu positivo oposto ao negativo do meu ofensor neutraliza esse negativo, e o resultado ézero; mas, se eu opuser ao negativo do ofensor não apenas um positivo (um bem), porém, muitos —digamos 10 — neste caso não somente neutralizei o negativo (mal) dele, mas ainda há um superavit de positivos, isto é, enriqueci a humanidade de bens positivos.

Mahatma Gandhi — precisamente por ser ma¬hatma, “grande alma” — compreendeu e praticava admiravelmente essa matemática espiritual do Evan¬gelho do Cristo, dando à não-resistência o nome sânscrito de ahimsa e à política benevolência para com o ofensor o nome de satyagraha (apego à verdade), ou seja amor, justiça cósmica.

Naturalmente, para que alguém possa praticar essa não-violência e essa benevolência, tem de passar por uma profunda experiência mística sobre a sua verdadeira natureza, e não se identificar com seu ego físico-mental-emocional.

14

“Quando Alguém te Ferir na Face Direita, Apresenta-lhe Também a Outra”

E prossegue o divino Mestre: “Se alguém te roubar a túnica cede-lhe também a capa! Se alguém te obrigar a andar com ele mil passos, vai com ele dois mil! Se alguém te pede que lhe emprestes algo, não lhe voltes as costas!”

O que aos profanos totais parece covardia e absurdidade, o que aos semiprofanos parece extraor¬dinário heroismo e virtuosidade, é, para o verdadeiro iniciado no espírito do Cristo, algo inteiramente natural e evidente.

Aqui atinge o Sermão da Montanha um como clímax.

Não se trata de praticar uma série de atos virtuosos externos, como parece á primeira vista — trata-se, sim, de crear dentro de si uma atitude, um clima, uma atmosfera permanente, a qual, de vez em quando, oportunamente, se revele em algum desses atos externos, transitôrios. Uma vez que o “agir segue ao ser”, e natural que um novo ser interno se manifeste num novo agir externo; mas, o principal não é esse agir, o qual, sem o seu correspondente ser, será sempre algo sacrificial e artificial meramente moral e não profundamente místico como é a alma do reino de Deus. O verdadeiro Cristianismo não éapenas um sistema ético de agir virtuosamente —é um novo modo de ser ontologicamente, uma completa e total transformação do indivíduo huma¬no. Esse novo “modo de ser”, certamente, supõe uma série de “atos de agir”, mas essa série de atos, embora necessários, não são suficientes para produzir essa atitude, esse ser. Os atos éticos são condição, mas não são causa dessa nova atitude crística. São neces¬sários, mas não são suficientes para crear essa “nova creatura em Cristo”, a qual, em última análise, é um carisma, um dom da graça divina. Ninguém pode merecer, causar, a graça; se assim fosse, ela não seria graça, que é de graça. Tudo que é merecido épequeno — o que é de graça é grande.

O valor do homem não está naquilo que ele fez ou diz, externa e transitoriamente — mas está naquilo que ele é, interna e permanentemente. O externo e transitório é condição necessária, mas não é causa suficiente do interno e permanente. Causa suficiente é só o poder ou a graça de Deus. Em última análise, a “nova creatura em Cristo” é filtra de um novo fiat lux da onipotência creadora de Deus. Para que esse fiat lux possa ser proferido sobre as trevas abismais do ego humano, deve este ser receptivo, faminto, devidamente evacuado de si para poder ser plenificado por Deus — isto é condição preliminar necessária para que a causa divina possa agir.

Que alguém ofereça, de fato, a outra face a quem o feriu em uma, ou ceda a capa a quem lhe roubou a túnica, é de somenos importância e depende das circunstâncias do momento —mas que ele mantenha em si essa firme e constante atitude de benevolência e beneficência, isto sim é importante e decisivo. E no momento dado, essa atitude interna também se revelara em atos externos. “O agir segue ao ser.”

Os atos externos mencionados por Jesus, no Sermão da Montanha, são o transbordamenty natural e irresistível de uma poderosa atitude interna e permanente; hrotam espontaneamente do tronco robusto de um novo ser, em forma de flores e frutos naturais de um novo fazer e dizer.

Isso, porém, supõe uma total transformação interior do homem, o cruzamento de uma fronteira invisível e decisiva, a transição irrevogável do velho ego luciférico para o novo Eu crÍstico.

O velho ego, antes de tudo, quer receber e ser servido — o novo Eu quer dar e servir.

O velho ego sente-se facilmente ofendido, preterido, vulnerado por bofetadas, roubos, exigência de serviço indébito, pedido de empréstimo de dinheiro sem juros, por qualquer olhar ou palavra de desprezo, e, obediente à lei escravizante de ação e reação, de causa e efeito, revida ofensas, vinga injúrias, afirma a sua propriedade individual, acha covardja não ofender o ofensor, e valentia pagar mal por mal —por que tudo isto? Porque o pequeno ego, precisamente por ser pequeno e fraco, é escravo e vítima permanente duma tirania da qual não consegue emancipar-se sobretudo porque essa escravidão é chamada “Liber¬dade”. Quem chama saúde a doença não pode ser curado; o primeiro passo para a cura é reconhecer a doença como doença. O primeiro passo para ser libertado da escravidão do ego é reconhecer essa escravidão como escravidão.

O Sermão da Montanha oferece ao homem a chave para abrir a sua velha prisão e entrar na “gloriosa liberdade dos filhos de Deus” — mas depende do próprio homem dar meia volta à chave, para abrir a porta — ou para continuar preso.

O novo Eu crístico nada sabe de ofensas, injú¬rias, desprezos, propriedade individual, direitos, porque ele é todo invulnerável, livre, imune; nenhum fator externo lhe pode fazer mal, porque não o pode fazer mau.

Em uma série de luminosas contraposições, frisa o Nazareno a derrota do pequeno ego humano e a vitória do grande Eu divino, isto é, a total auto-realização ou cristificaçào do homem.

Quem não cruzou essa misteriosa fronteira que medeia entre o pequeno mundo do ego e o vasto universo do Eu, ou não é capaz de praticar esses atos de gloriosa libertação, ou quando, por exceção, consegue praticar algum deles, logo se sente como um herói, como algum “super”, porque esse ato “virtuoso” destoa da sua atitude habitual, e, por isto, lhe parece algo notável e extraordinário. Enquanto o homem vê nesses atos um heroismo, uma virtude, algo de excepcional, não creou ainda a competente atitude, não cruzou ainda a misteriosa fronteira entre o ego luciférico e o Eu crístico; não é ainda um verdadeiro iniciado, mas, na melhor das hipóteses, um profano de boa vontade.

Não é o simples “querer” que decide — todos os profanos de boa vontade querem — mas é um novo “poder”. Muitos podem querer — poucos podem poder. Para que alguém possa, não só querer, mas, também poder, é indispensável que tenha recebido uma vida nova, que tenha renascido pelo espírito, que tenha tido a suprema revelação do seu eterno “ser divino” — o seu misterioso “eu e o Pai somos um”, ou, em sânscrito: tat twam asi (isto, Brahman, és tu). Essa grande revelação da Verdade sobre si mesmo crea no homem a força do poder, uma nova atitude permanente, um novo modo de ser.

Verdade é que todo homem, em virtude da sua natureza humana, da sua “alma naturalmente crística”, era sempre essa “nova creatura em Cristo”, mas não o era explicitamente, senão, apenas, implicitamente; essa “nova creatura em Cristo” estava nele em estado latente, embrionário, meramente potencial; estava concebida e andava como que em gestação, mais ou menos adiantada ou atrasada, mas não havia nascido, ainda atualmente. Em todos os homens existe o Cristo potencial — a “luz verdadeira que ilumina a todo homem que vem a este mundo” — mas, enquanto esse Cristo potencial não passar a ser o Cristo atual, podem esses homens querer o bem , mas não o podem realizar; neles está como escreve Paulo de Tarso, o “querer o bem”, mas não está o “poder o bem”.

Essa transição do débil “querer” para o vigoroso “poder” é um carisma inexplicável, uma graça divina que ninguém pode merecer, embora todos possam e devam preparar o ambiente e crear um clima propício para que essa graça venha.

Esse carisma é algo que nos “acontece” de fora, mas que o homem não “produz” de dentro de si, do séu ego. Esse “acontecer” da graça brota das eternas e ignotas profundezas de Deus — do Deus transcen¬dente, que é o Deus imanente; mas não vem das periferias superficiais do pequeno ego consciente.

*

Quando o homem consegue cruzar essa miste¬riosa fronteira, do pequeno ego humano para o gran¬de Eu divino, então toda a vida dele se transforma e ilumina com inefável força e claridade. Então entra ele num novo céu e em uma nova terra. Então vive ele o seu céu aqui mesmo, aqui, agora, e para sempre, e por toda a parte — e o seu inferno não existe mais em parte alguma. Então nada mais o entristece, o molesta, o ofende, o perturba. Então, está ele, defi¬nitivamente liberto pela Verdade, e essa libertação é a sua suprema felicidade.

O que aos profanos, de má vontade, parece absurdo, o que aos profanos, de boa vontade, parece doloroso sacrifício e virtude heróica — e para os verdadeiros iniciados espontânea facilidade e suprema beatitude...

O Sermão da Montanha é a chave da grande e definitiva libertação do homem. E a última palavra sacra de toda a iniciação esotérica e mística dos candidatos à verdadeira sabedoria e experiência cósmica.

O Sermão da Montanha é um convite para a morte e para a ressurreição, para o ocaso do ego luciférico e para a alvorada do Eu Crístico...

Aceitar esse convite é vida eterna — rejeitá¬lo é morte eterna...

Aqui se bifurcam os caminhos da humanidade...

Aqui se digladiam, em dramático duelo, as duas maiores potências do Universo — Lúcifer e Lógos, a magia mental do velho ego, e a sabedoria espiritual do novo Eu...

Aqui se alarga o campo da grande tentação, em pleno deserto — entre a política telúrica do tentador: “Eu te darei todos os reinos do mundo e sua glória” — e a sapiência cósmica do tentado: “O meu reino não é deste mundo”.

No Everest do Sermão da Montanha se vê todo o indivíduo humano colocado na grande encruzilhada entre o “querer ser servido” do velho ego luciférico — e o “querer servir” do novo Eu cristico...

A escolha é livre — mas as conseqüências da escolha obedecem a uma lei inexorável...

A alternativa suprema e última é esta: VIDA — ou MORTE...

15

“Amai os Vossos Inimigos”

É dos tópicos evan¬gélicos mais repetidos no mundo cristão — e de todos o menos praticado. E a razão última e mais profunda dessa falta de prática do amor aos inimigos nasce de uma falsa compreensão dessas palavras do Mestre. A imensa maioria dos cristãos julga tratar-se aqui de um imperativo categórico do dever compulsório, quando, de fato, se trata de um ato de querer espontâneo; não do heroismo de uma virtude ética, e sim da evidência de uma sabedoria cósmica. naturalmente, para que o dever compulsório da virtude possa converter-se no querer espontâneo da sabedoria, terá de acontecer algo de imensamente grande entre esse doloroso dever de ontem e esse glorioso querer de hoje.

Que é que deve acontecer entre esses dois pólos adversos?

Deve acontecer uma grande compreensão.

É sabido que tudo que é difícil não tem garantia de perpetuidade — mas tudo que é fácil tem sólida garantia de indefectível continuidade. Enquanto o “amor aos inimigos” se nos apresentar como um dificultoso dever compulsório, uma virtude ou virtuosidade, é claro que não temos a menor garan¬tia de que vamos amar nossos inimigos, amanhã e depois, mesmo que talvez hoje os amemos. Só quan¬do o dificultoso dever compulsório se transformar num jubiloso querer espontâneo, e quando a virtude passar a ser sabedoria e profunda compreensão da realidade, é que o nosso amor aos inimigos deixará de ser um fenômeno intermitente, passando a ser uma realidade permanente.

Estas palavras de Jesus não têm, pois, em pri¬meiro lugar, caráter ético, mas sim um sentido metafísico, visando estabelecer a solidariedade cósmica através da sabedoria da compreensão.

Exemplifiquemos.

Alguém é meu inimigo, e eu sou inimigo dele. Estamos ambos no plano negativo, nas trevas, ele, e eu.

Alguém é meu inimigo, mas eu não sou inimigo, e sim amigo dele; neste caso, ele está na zona negativa das trevas, mas eu estou na zona positiva da luz.

Ora, como a luz sempre atua positivamente, rumo à construção, e as trevas atuam negativamente, rumo à destruição, é certo que, no caso de um encontro mútuo entre a luz e as trevas, o positivo eliminará o negativo, e não vice-versa. “A luz brilha nas trevas, mas as trevas não a prenderam” (extinguiram).

O preceito de amar nossos inimigos é, pois, antes de tudo, um postulado de caráter metafísico, único capaz de estabelecer solidariedade cósmica.

Sendo eu de vibração positiva, filho da luz, posso ajudar a quem é negativo, filho das trevas. Se eu não for positivo, nada poderei fazer em benefício do meu semelhante negativo, porque ambos estamos no mesmo plano negativo, fraco, inerte. Mesmo no caso em que eu não tenha ódio real a meu inimigo, não o posso ajudar eficazmente, porque sou neutro e fraco; só no caso em que eu seja realmente positivo, pelo amor, é que posso ajudar a quem está no ódio, contrapondo uma “violência espiritual a uma violência material”, no dizer de Mahatma Gandhi.

Se odeio a quem me odeia, acrescento negativo a negativo, aumentando as trevas do mundo.

Se deixo de odiar a quem me odeia, não aumento os fatores negativos, mas, também, não destruo o que já existe, deixando as trevas no statuo quo.

Se amo a quem me odeia, neutralizo o negativo do meu inimigo com o meu positivo, eliminando assim as trevas e dando vitória à luz. E este o único modo eficiente de tornar o mundo melhor: substituir as trevas negativas do ódio pela luz positiva do amor.

O Sermão da Montanha, a filosofia da Bhagavad Gita, a sabedoria do Tao Te Ching, a vida de Gandhi e de todos os grandes iluminados, estão baseados nesta matemática espiritual.

“Um único homem que tenha chegado à plenitude do amor neutraliza o ódio de milhões.” (Mahatma Gandhi.)

*

Acresce outro fator importante. Quando odeio a quem me odeia, não apenas aumento as trevas em que ele está, mas, também, aumento as minhas próprias trevas, direta e indiretamente.

Diretamente, pelo pró¬prio ódio que produzo em mim, como vimos, e indiretamente porque todo pensamento, sobretudo quando transformado em atitude permanente, produz vibrações de certa categoria; e estas vibrações, segundo uma lei cósmica inexorável, demandam automatica¬mente aquela zona onde encontram afinidade vibra¬tória: vibrações negativas associam-se a vibrações negativas, vibrações positivas vão em busca de vibrações positivas, no mundo da humanidade, e até dos seres infra-humanos.

Nesse mergulho no mundo das vibrações, os meus pensamentos, em marcha, são saturados dos elementos, negativos ou positivos, conforme sua natureza e afinidade, que encontrarem no ambiente, e, carregados dessas vibrações, os meus pensamentos voltam a mim, porqüanto os meus pensamentos, por mais transcendentes que pareçam e distantes de mim, estão sempre imanentes em mim, inseparavel¬mente unidos à sua causa e fonte, e a natureza da sua saturação se refletirá necessariamente sobre seu emissor. Se, por exemplo, é emitido por mim um pensamento de ódio ou malquerença com 10 graus de negatividade e encontrando lá fora um ambiente carregado com 20 graus negativos, este pensamento de ódio volte a mim saturado de 20 graus de nega¬tividade ou malquerença, duplicando, portanto, o meu próprio estado negativo, e fazendo-me duas vezes pior do que eu era antes. “Cada um colherá conforme o que tiver semeado.” “Quem ventos se-meia, tempestades colherá.”

É de todo indiferente que a pessoa por mim odiada ‘‘mereça’’ ou ‘‘não mereça” o meu ódio; em qualquer hipótese, eu contribuo para tornar o mundo pior, porque me tornei pior a mim mesmo, parte integrante deste mundo. Eu, o sujeito e autor do meu ato, sou atingido pelo efeito do mesmo, muito antes que o objeto seja atingido. Ninguém pode atingir o objeto antes de atingir o sujeito. O mal que faço, ou procuro fazer a algum outro, me atinge a mim mesmo em primeiro lugar, e fere o sujeito de um modo muito mais grave do que possa ferir o objeto. “O que entra no homem não torna o homem impuro, mas o que sai do homem, isto sim, torna o homem impuro.”

O mal que os outros me fazem não me faz mal, porque não me faz mau. Antes que o mal faça mal a outros, já fez mal ao malfeitor, porque o fez mau. Não é certo que o objeto seja atingido por meu mal, mas é absolutamente certo que o sujeito é atingido por ele.

Esse impacto do meu pensamento sobre os objetos ou pessoas é, antes de tudo, sobre o meu próprio sujeito, é tanto mais veemente e destruidor, quanto maior for a vibração emocional de que o pensamento está saturado.

Amar seus inimigos é, pois, um preceito de sabedoria cósmica, porque promove a auto-realização do homem a sua verdadeira cristificação.

16

“Cuidado que não Pratiqueis as Vossas Boas Obras Para Serdes Vistos Pelas Gentes”

Repetidas vezes, e de modos vários, insiste Jesus neste preceito ou proibição, que, à primeira vista, parece ser de caráter simplesmente ético. Entretanto, esse inextirpável desejo de publici¬dade, embora ético em suas ramificações, tem as suas raízes embebidas no abismo da metafísica.

Há em toda tendência publicitária algo de pro¬fano e prosaico — como existe em toda atitude silenciosa algo de sagrado e poético. Todas as coisas grandes estão envoltas em silêncio e mistério. Parece que o silêncio engrandece e o ruído amesquinha todas as coisas.

Quando o homem recebe alguma grande inspiração e a assoalha aos quatro ventos, ela enfraquece e se esteriliza — mas quando ele a guarda na solidão de um grande silêncio, ela se robustece e fertiliza. Vigora secreta afinidade entre solidão e sacralidade — e há semelhança entre publicidade e profanidade.

Na origem da vida física colocou a natureza humana o sentimento do recato e pudor — e o início da vida espiritual também está envolto na misteriosa casti¬dade de uma profunda reverência. Toda a decadência do indivíduo ou de um povo começa, invariavelmen¬te, com a perda do pudor e da reverência pela vida, quer material, quer espiritual.

“Não pratiqueis as vossas boas obras para ser¬des vistos pelos homens!”

Qual a razão última por que todo homem profano — isto é, de consciência apenas físico-mental — sente a imperiosa necessidade de fazer alarde das suas boas obras? Por que quer ver-se admirado, louvado ou de outro modo qualquer, ser recompensado pelo bem que pratica?

É porque todo homem profano é essencialmente mercenário — e esse espírito mercenário é indício da sua fraqueza. O homem interiormente rico, com¬pleto, sadio, não tem necessidade de ser recompensa¬do, nem compensado, nem pensado; só o pobre e indigente é que deseja ser recompensado, porque fazer o bem é para ele um sacrifício, uma perda; quer ser compensado, porque se sente incompleto; deve ser pensado porque está doente e chagado.

O homem de sentimentos mais nobres, é claro, não espera receber dinheiro nem outro equivalente material por seus atos bons — mas todo homem que ainda se move no plano da consciência horizontal julga-se com o direito de receber por suas boas obras pelo menos uma palavrinha de reconhecimento, de gratidão, de apreciação, e aguarda sobretudo algum resultado visível por seus trabalhos e esforços — e esse desejo dos resultados palpáveis também é, em última análise, espírito de espírito mercenário. A própria esperança de receber, em troca de suas boas obras, o céu — isto é, uma recompensa externa e adicional ao fato de ser bom — é desejo impuro e mercenário. Dificilmente encontraríamos entre mi¬lhares de homens um só que fosse capaz de prosseguir, corajosa e serenamente, uma árdua empresa espiritual ou beneficente, através de anos e decênios, sem jamais receber uma palavra de estímulo externo em forma de louvor ou aplauso.

Por que é que só nos sentimos seguros e corajosos quando, pelo menos de vez em quando, alguém nos louva ou quando aparecem resultados visíveis do nosso trabalho?

É porque todo homem profano, como já foi dito alhures, é essencialmente extroverso, objetivado; não tem noção clara de si mesmo a não ser quando o seu ego é, por assim dizer, refletido no espelho de algum objeto. Assim como ninguém pode ver o seu próprio rosto, ou a cor dos seus olhos senão quando refletidos em um espelho, semelhantemente, também, o homem profano só conhece o seu sujeito interno quando refletido por um objeto externo —como uma onda de radar, que só dá sinal de si quando, depois de emitida, encontra no seu caminho um objeto donde possa ricochetear e ecoar rumo ao aparelho emissor.

A consciência físico-mental, relacionada com os objetos, é sempre indireta. Quando ninguém reflete o meu ato, nada sei da natureza do meu ato. Mais ainda, quando pratico um ato bom e ninguém me louva nem reconhece essa bondade, pouco a pouco começo a duvidar da natureza positiva desse ato; e se alguns vão ao extremo de tachar de mau o meu ato bom — por quanto tempo serei capaz de crer na bondade do meu ato?

Meu Deus! Como o homem profano depende do mundo externo! Como ele é escravizado pelo reflexo da opinião pública! Não possui nenhuma autonomia e segurança intrínseca e por isto necessita dessas escoras e muletas extrínsecas.

Quando, então, o homem profano consegue ultrapassar a invisível fronteira que medeia entre o seu pseudo-eu, ou ego personal, e o seu verdadeiro Eu crístico, o seu divino EU SOU — então caem por terra todas as escoras e muletas; então proclama ele a sua verdadeira independência, a “gloriosa liberdade dos filhos de Deus”.

Daí por diante, não mais pratica ele boas obras para ser visto e louvado pelos homens; essa atitude lhe pareceria tão absurda e ridícula como arrastar-se arrimado a muletas em plena saúde.

A partir daí, toda a firmeza e segurança lhe vêm de dentro, das profundezas da sua consciência espi¬ritual. Esse homem conhece-se a si mesmo por intuição íntima, e não necessita de derivar esse conhecimento das palavras dos que não o conhecem. Ele sabe que os seus atos e sua atitude estão sin¬tonizados com a Lei Eterna e a consciência nítida dessa harmonia lhe dá tão grande firmeza e sereni¬dade que, ainda que todo o mundo o louvasse, nem por isso se sentiria mais seguro; e embora o mundo inteiro o censurasse e condenasse, nem por isso per¬deria esse homem um só grau da sua segurança e tranqüilidade interna; e ainda que os seus trabalhos não surtissem nenhum efeito palpável, ele prossegui¬ria a trabalhar com o mesmo afinco e otimismo de sempre.

“Trabalha intensamente — diz a sabedoria oriental — e renuncia a cada momento aos frutos do teu trabalho!”

O homem que conquistou essas alturas é supremo árbitro da sua vida e não necessita de olhar para a direita, para a esquerda, para trás, a ver se os homens louvam ou vituperam os seus atos. Nem há motivo para fazer publicidade das suas boas obras, porque elas são boas em si mesmas, independentemente da aprovação ou reprovação de terceiros.

“Não pratiqueis as vossas boas obras para serdes vistos pela gente!” — isto é um ultimatum para a consciência físico-mental e um veemente chamariz para a consciência espiritual.

17

“Quando Jejuares, Lava o Rosto e Unge a Cabeça”

A mais fascinante poesia do homem plenamente cristificado consiste em fazer com leveza as coisas pesadas, — com facilidade as coisas difíceis, — com suavidade as coisas amargas, — com alegria as coisas tristes, — com sorridência as coisas dolorosas.

O homem bom asceticamente bom, eticamente virtuoso, faz pesadamente as coisas pesadas, tristemente as coisas tristes, dificilmente as coisas difíceis, amargamente as coisas amargas, e assim por diante. Nisto há verdade e bondade, mas, não há beleza e poesia. A suprema perfeição do homem crístico é uma verdade revestida de beleza. A vida do homem plenamente cristificado é comparável à máquina de aço de lei, que funciona com absoluta precisão e infalibilidade, mas o seu funcionamento é leve como a luz, silencioso como a trajetória dos astros, espontâneo como o amor, sorridente como um arco-íris sobre vastos dilúvios de lágrimas.

O homem totalmente profano não pratica as coisas boas, procura evitá-las e ser alegremente mau.

O homem semi-espiritual, simplesmente cristão e virtuoso, pratica o bem, mas com gemidos e dor; ser bom é, para ele, carregar a cruz, cumprir heroica¬mente o imperativo categórico do dever.

O homem plenamente espiritual, cristico, en¬trou na zona da suprema sabedoria, que é leve e luminosa, espontânea e radiante. Ele é, de fato, a “luz do mundo”, é como esse sol de estupendo poder e de inefável suavidade, esse sol que lança pelos espaços as esferas gigantescas — mas sua luz não quebra a delgada lâmina de uma vidraça que penetra, nem ofende a delicadeza de uma pétala de flor que beija silenciosamente. O homem crístico é como o sol, suavemente poderoso, poderosamente suave.

É poderoso — mas não exibe poder.

É puro — mas não vocifera contra os impuros.

Adora o que é sagrado — mas sem fanatismo.

É amigo de servir — mas sem servilismo.

Ama — sem importunar a ninguém.

Vive alegre — com grande compostura.

Sofre — sem amargura.

Goza — sem profanidade.

Ama a solidão — sem detestar a sociedade

É disciplinado — sem fazer disto um culto.

Jejua — mas não desfigura o rosto para mostrar a vacuidade do estômago.

Pratica abstinência de muitas coisas — sem fazer disto uma lei ou mania.

É um herói — mas ignora qualquer complexo de heroísmo.

É virtuoso — mas não é vitima da obsessão de virtuosidade.

Trabalha intensamente, com alegria e entusiasmo

— mas renuncia serenamente, a cada momento, aos frutos do seu trabalho.

Assim é o homem que se tornou “luz do mundo”.

*

Mas, como pode um homem fazer hoje, por um querer espontâneo, o que ontem só fazia por um dever compulsório? Como pode jejuar com alegria, hoje, de rosto em festa, quando ontem só jejuava com tristeza, de rosto desfigurado?

Que foi que lhe aconteceu entre esse hoje e aquele ontem? Entre esse jubiloso querer de hoje e aquele doloroso dever de ontem?

Algo de estranho e de grande deve ter aconte¬cido...

Sim, aconteceu-lhe algo de estranho e de grande — aconteceu-lhe a coisa maior do universo que pode acontecer a um ser mortal — aconteceu-lhe a graça divina de uma grande, vasta e profunda compreensão de si mesmo, do Deus nele, do seu Cristo interno.

Esse homem superou a velha ilusão de que “ser bom” seja necessariamente “ser sofredor”.

Certamente, ser bom é cruz e sacrifício no seu estágio inicial, e por isto o homem bom é, geralmente, um sofredor. Mas ser bom, no seu estágio final, não é sofrimento, é gozo e felicidade. Se a vontade de Deus pode e deve ser feita “assim na terra como nos céus”, e se, nos céus, essa vontade divina é feita com imensa alegria e felicidade, é certo que, segundo as palavras do divino Mestre, a vontade de Deus também pode ser cumprida, aqui na terra, com alegria e feli¬cidade, O homem terrestre também pode ser jubilosa-mente bom, a sua mais pura felicidade pode consistir em ser bom.

A compreensão é uma misteriosa alquimia, transmuta o caráter doloroso do ser bom em algo gozoso. O doloroso provém da personalidade do ego, ainda não plenamente integrada na divina individu¬alidade do Eu; mas, uma vez que o pequeno ego humano se integrou no grande Eu divino assume o fenômeno do sofrimento caráter totalmente diverso daquele que tinha antes.

A dolência acaba em delícia.

O sacrifício perde o seu caráter habitual de dolorosidade e se reveste do caráter da sacralidade. Sacrifício vem de sacrumfacere, fazer coisa sagrada. Ora, a coisa mais sagrada que existe é o amor. Por isto, o sacrifício assumido por amor é sacrum, coisa sagrada, é um ato litúrgico.

*

Que semelhante alquimia seja possível, di-lo claramente o divino Mestre: “Meu jugo é suave e meu peso é leve.”

Di-lo também o seu grande discípulo Paulo de Tarso: “Eu transbordo de júbilo no meio de todas as minhas tribulações.”

Afirma-o, também, um dos modernos discípulos do Cristo, Mahatma Gandhi: “Nada tenho que perdoar a ninguém, porque nunca ninguém me ofendeu.”

É esta a suprema perfeição do homem crístico: praticar c dever austero da Verdade com a leve e luminosa poesia do querer espontâneo.

NOTA: A oração dominical, ou Pai-nosso, que fez parte do Sermão da Montanha, não está incluída neste volume, porque dele tratamos, explicitamente em nossa obra A Metafísica do Cristianismo, Editora Martin Claret.

18

“Quem Não Renunciar a Tudo que Tem Não Pode Ser Meu Discípulo”

Ter — ou Ser?

É a estes dois monossílabos que se reduz, em última análise, toda a filosofia do Evangelho e toda a sabedoria dos séculos.

Ter — ou Ser?

Duas atitudes aparentemente incompatíveis.

“Ninguém pode servir a dois senhores.

O homem que tem algo não pode ser alguém — e vice-versa.

O homem profano só conhece o ter, ou os teres, isto é, certo número de objetos quantitativos, que estão ao redor dele, no plano horizontal, e que ele considera ingenuamente como sendo seus bens. O profano total nada sabe do seu íntimo ser, de algo que não é dele, mas que é ele mesmo. Pode alguém ser milionário no plano horizontal dos seus teres, e ser ao mesmo tempo mendigo indigente na zona vertical do seu ser. De tanto ter, não chega a ser alguém.

Outros, mais avançados, resolvem renunciar a todos os seus teres e se isolam no puro ser, isto é, na divina essência do seu eterno Eu, sua alma, seu Cristo interno. E, de tão enamorados desse seu verdadeiro ser, desprezem soberanamente todos os ilusórios teres dos profanos. São os ascetas, os místico, os yoguis, os austeros desertores de todas as coisas periféricas, os impávidos bandeirantes da verdade central. E, por mais tenebrosa que a outros pareça essa noite da renúncia absoluta e incondicional, ela é solene e grandiosa, porque possui a fas¬cinante sacralidade das noites estreladas...

É a estes que Jesus se refere nas palavras que encimam o presente capítulo: “Quem não renunciar a tudo que tem não pode ser meu discípulo.

Quer dizer que qualquer ter, ou posse de objetos externos, impede o homem de ser discípulo do Cristo, ele, que não tinha onde reclinar a cabeça nada tinha, porque tudo era; porque o seu ter descera ao ínfimo nadir, quando o seu ser atingira o supremo zênite. Por fim, renuncia também ao ter mais intimamente ligado ao ser, o corpo físico. E assim acabou ele de “entrar em sua glória”.

Pode parecer estranho e humanamente inexeqüível esse inexorável radicalismo do Mestre. E não faltou quem mobilizasse contra essa sangrenta ver¬dade da renúncia absoluta e incondicional todas as legiões da dialética mental, a ver se conseguia salvar do naufrágio ao menos alguns dos seus queridos ídolos, a ver se conseguia passar pelo “fundo da agulha” pelo menos com uma parte da bagagem que o profano costuma levar de reboque, nessa jornada terrestre; habituados a subornar os outros e a entrar de contrabando em todos os paraísos da terra, tentam eles aplicar essa sua política e diplomacia também, ao Evangelho do reino de Deus.

Entretanto, as palavras do Mestre não admitem vestígio de dúvida; são inexoravelmente claras:

“Quem não renunciar a tudo que tem não pode ser meu discípulo” — tudo, sem exceção de coisa alguma! O episódio trágico do jovem rico é uma ilustração clássica para essa verdade austera.

Tudo quanto o homem possui em bens terrestres torna-o dependente e escravo; mas o reino dos céus é somente para as almas completamente livres. En¬quanto o homem tem algo que o mundo lhe possa tirar, ou deseja algo que o mundo lhe possa dar, não é definitivamente livre, e por isto não pode ser discípulo do Cristo. Os nossos teres quantitativos nos excluem do reino dos céus — o nosso ser qualitativo nos fez entrar no reino de Deus. Aproximamo-nos de Deus na razão direta do que somos, e na razão inversa do que temos. O ter é nosso, o ser é de Deus.

Mas, em que consiste esse ser?

Consiste na consciência da verdade sobre nós mesmos. Se conhecermos a verdade sobre nós mesmos, seremos livres. “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará. E, se o Filho do homem vos libertar, sereis realmente livres.”

Essa verdade libertadora sobre nós mesmos porém, está na experiência íntima da nossa essencial identidade com Deus — “eu e o Pai somos um —e na completa harmonia da nossa vivência cotidiana com essa verdade suprema.

*

Mas... não é necessário que o homem, aqui no mundo, possua certas coisas? Poderá ele viver decentemente sem possuir nada? Bastará, aqui na terra, o simples e puro ser? E não é um certo ter compatível com esse ser?

É este, talvez, o ponto em que o Cristianismo organizado falhou mais deploravelmente, e, o que é pior, as próprias igrejas cristãs procuram justificar esse espírito de possessividade de seus filhos — tanto mais que os próprios chefes espirituais são, não raro, os maiores possuidores de bens materiais. Será que a muitos desses chefes não caberiam as palavras veementes que o Cristo fulminou aos guias de Israel? “Guias cegos guiando outros cegos! Mas, se um cego guiar outro cego, ambos acabarão por cair na cova. Ai de vós, doutores da lei! Roubastes a chave do conhecimento do reino de Deus! Vós não entrais, nem permitis que outros entrem!”

Não há nada no Evangelho em que o divino Mestre insista com maior rigor e freqüência do que no espírito de absoluta e total renúncia aos bens terrenos, por sinal que ele considera a posse desses bens como absolutamente incompatível com o espírito do reino de Deus.

À primeira vista, parece possível e até necessário esse consórcio entre o ser e o ter, razão por que os teólogos e moralistas cristãos de todos os tempos têm tentado realizar esse congraçamento. Entretanto, continua a ser verdade inconcussa que “ninguém pode servir a dois senhores: a Deus e ao dinheiro”. Ter algo e ser alguém, são duas antíteses tão inexoravelmente hostis que nenhum tratado de paz é possível entre essas duas potências, assim como impossível é um consórcio entre as trevas e a luz, entre o não e o sim, entre a morte e a vida.

Entretanto, sem revogar o que acabamos de dizer, passaremos a explicar dois termos: possuir e administrar. É possível que o homem seja discípulo do Cristo, e ao mesmo tempo administre parte dos bens de Deus em benefício dos outros: filhos de Deus, seus irmãos. Deus é o único dono, proprietário e possuidor de todas as coisas que ele creou; nenhum homem é dono de coisa alguma e, se ele se arroga o direito de ser proprietário disto ou daquilo, comete crime de “apropriação indébita”, roubando a Deus e aos filhos de Deus algo que não lhe pertence. Por isto, nenhum genuíno discípulo do Cristo se considera possuidor, dono ou proprietário do dinheiro ou de quaisquer bens materiais que, casualmente, estejam sob a sua administração; considera-se invariavelmente como simples administrador desses bens, de cujo emprego terá de dar estreitas contas ao legítimo senhor e proprietário.

Lemos nos “Atos dos Apóstolos” que entre os primeiros discípulos do Cristo não havia propriedade particular, mas que todos os bens eram comuns. Não existia nenhuma lei externa que obrigasse os cristãos a socializarem os seus bens, mas havia neles a lei interna do amor nascido da compreensão da grande verdade de que todas as coisas do mundo são de Deus e que nenhum filho de Deus tem o direito de se arrogar a posse exclusiva de uma parte desses bens. A administração desses bens deve ser entregue a pessoas que tenham maior capacidade, e sobretudo maior espírito de desapego, mas o usufruto dos bens deve reverter sempre em prol da humanidade como tal. Se os homens se considerassem administradores, em vez de possuidores, dos bens materiais, seria proclamado o reino de Deus sobre a face da terra; cessariam guerras, explorações, brigas, roubos, assassinatos, etc. “A cobiça é a raiz de todos os males”, dizem os livros sacros.

*

Esse conceito de administração, em vez de propriedade, é um simples e espontâneo corolário da realização crística do homem. Em face do nasci¬mento do sol do ser empalidecem todas as estrelas noturnas do ter. O homem crístico sente intuitivamente a total incompatibilidade entre o “ser discípulo do Cristo”, e “possuir bens terrenos”. Essa alternativa representa para ele um dilema de lógica inexorável: ou isto — ou aquilo! Uma vez que ele conhece a sua sublime dignidade em Cristo Jesus, como poderia, ainda, degradar-se ao ponto de colocar a mão, pesadamente, sobre algum pedaço de matéria morta e declarar enfaticamente: “Isto aqui é meu, e de mais ninguém!”? Semelhante atitude lhe pareceria tão incrívelmente ridícula e vergonhosa que ele não a perdoaria a si mesmo. E se, pela força das circunstâncias, esse homem for obrigado a assinar em cartório com firma reconhecida, algum documento de propriedade, tem ele plena consciência de que esse instrumento de posse vigora apenas no plano horizontal das pobres relações legais e jurídicas, mas que nada significa na zona vertical da sua atitude espiritual e ética, perante Deus e seus irmãos humanos; esse homem sabe que, a despeito do que ele assinou sobre as infalíveis estampilhas, testemunhas da hu¬mana desconfiança e inconfidência, continua a não ser dono e proprietário de coisa alguma.

Também, como poderia um genuíno discípulo do Cristo declarar de boa-fé “este objeto me perten¬ce”, quando ele mesmo já não se pertence, uma vez que pertence a Deus e à humanidade? Como apropriar-se de um objeto, se ele já desapropriou o próprio sujeito? Com o voluntário naufrágio do meu falso eu, do ego personal, naufragaram, também, todos os bens que eu chamava falsamente meus. A idéia do meu nasceu com a idéia do eu; quando esse eu morre morrem necessariamente todas as ilusões relacionadas com o meu. O EU verdadeiro, divino, nada sabe de meus, porque o zênite do ser provoca o nadir do ter: quem tudo é, nada tem; a intensa luminosidade do ser aniquila todas as trevas do ter. Quem de fato é discípulo do Cristo nada tem nem quer ter, para si mesmo, embora possa prestar-se para administrador de uma parte dos bens de Deus em prol de seus irmãos.

O que eu considero meu só tem função enquanto ainda vive em mim a noção do eu físico-mental; no momento em que o meu pequeno eu personal se afogar nas profundezas do TU divino e no vasto NÓS da humanidade, deixa esse conceito de meu ter razão de ser; é como um objeto suspenso no vácuo, depois que lhe foi subtraído o sujeito de inerência que lhe servia de base e substrato.

Por isso, o homem que atingiu a plenitude do seu ser, pelo despontar da consciência cósmica; perde toda a noção de posse e propriedade. Nada adquire e nada perde. O fluxo e refluxo incerto de lucros e perdas deixou de existir para ele, e com isto foi eliminada a fonte principal da inquietação que atormenta os profanos. Nada possui que o mundo lhe possa tirar, e nada deseja possuir que o mundo lhe possa dar. Entretanto, se as circunstâncias terrenas o nomearam administrador do patrimônio de Deus e da humanidade, esse homem administra com a máxima solicitude essa parcela do patrimônio terrestre universal.

Pela mesma razão , o homem que se despojou dos teres pela maturação do ser não experimenta a menor dificuldade nem tristeza em passar a outras mãos a gestão dos negócios temporários que lhe foi confiada.

O grande industrial norte-americano R. G. Le Tourneau, fabricante de possantes máquinas de terraplenagem, mandou colocar sobre a entrada de uma das suas fábricas o seguinte letreiro:

“Não digas: Quanto do meu dinheiro dou a Deus?

Dize antes: Quanto do dinheiro de Deus guardo para mim?”

Esse homem descobriu que nós não temos dinheiro algum, mas que todas as coisas do mundo são de Deus; entretanto, pode o administrador dos bens de Deus tirar para si uma pequena “comissão”. Le Tourneau, no princípio, tirava uma comissão de 90% para si, dando 10% a Deus, para fins de altruísmo e religião; hoje inverteu as quotas, dando 90% a Deus e guardando 10% para si. Entretanto, mesmo esses 10% Le Tourneau não se considera proprietário, senão apenas administrador, porque, também, este dinheiro pertence a Deus e à humanidade.

“Quem não renunciar a tudo que tem não pode ser meu discípulo.”

19

“Quem Quiser Construir Uma Torre... Empreender Uma Guerra - Renuncie a Tudo!”

As alegorias da construção da torre e da empresa bélica focalizam como talvez nenhuma outra, a sapiência cósmica do Nazareno sapiência que se acha em flagrante conflito com a tradicional sagacidade da inteligência humana.

Diz o Mestre que o homem que deseja construir uma torre elevada — nós diríamos um arranha-céu - deve, antes de tudo, calcular criteriosamente se possui os recursos necessários para ultimar a obra, para que não seja obrigado a deixar o trabalho a meio caminho, com grande prejuízo próprio e zom¬baria dos outros.

Diz ainda que um rei, em vésperas de declarar guerra a outro rei, deve ponderar judiciosamente se com 10.000 soldados pode derrotar seu adversário que dispõe de 20.000, do contrário, fará melhor em desistir do empreendimento para que, a meio caminho das operações bélicas, não se veja obrigado a solicitar convênios de armistício ou paz, com grande humilhação e prejuízo.

Até aqui, as duas alegorias nada parecem ter de extraordinário; temos até a impressão de ouvir falar um homem do nosso século interessado na construção de edifícios, ou um beligerante profano dotado de certo tino estratégico e senso diplomático. E, com isto, nos sentimos quase reconciliados com o Nazareno, considerando-o como um dos “nossos”

— quando, de improviso, ele passa do símbolo para o simbolizado, recorrendo a uma conclusão diametralmente oposta aos nossos cálculos e à nossa expectativa:

“Assim, vos digo eu, não pode ninguém ser discípulo meu quem não renuncie a tudo quanto possui.

Segundo a nossa sagacidade humana teríamos esperado algo totalmente diverso; teríamos esperado que o Mestre recomendasse ao construtor da torre —digamos, em linguagem moderna, do arranha-céu — que aumentasse os seus recursos para poder terminar a obra começada; e que fizesse ver ao rei beligerante que duplicasse ou triplicasse o número de seus soldados para derrotar seu inimigo. E, no plano material, é claro, teria sido esta a solução. O simbolizado, porém, não se acha nesse plano material, e por isso Jesus não recomendou nenhum desses dois expedientes. Em vez disto, passa a uma conclusão diametralmente oposta às nossas expectativas: insiste em que o homem, para conseguir os recursos necessários, abra mão de tudo quanto possui! Quer dizer que a fraqueza está no possuir — e a força no despossuir-se.

Os objetos materiais a que o homem está apegado representam a medida da sua impotência — ao passo que a espontânea renúncia a esses objetos é a bitola da sua potência, porque esse volun¬tário desapego das quantidades materiais significa qualidade espiritual. Ora, sendo a quantidade sinônimo de fraqueza, e a qualidade homônimo de força, éclaro que o apego a objetos materiais é fraqueza e derrota — e a renúncia espontânea aos mesmos éforça e garantia de vitória.

A filosofia qualitativa do Mestre, como se vê, é exatamente o contrário da nossa política quanti¬tativa: e o verdadeiro Cristianismo está na razão direta daquela e na razão inversa desta.

O “ter” é dos profanos — o “ser” é dos iniciados.

Quanto mais cresce o “ser” do homem mais decresce o seu desejo de ter

Não é, certamente, a simples ausência material desses objetos que dá força ao homem; não é o simples fato de alguém ser Diógenes ou um mendigo pelo desfavor das circunstâncias — mas é o fato da espontaneidade do desapego, porque esse ato vo¬luntário é filho de uma exuberante plenitude espiri¬tual, e essa plenitude é que é garantia de vitória ou melhor, ela mesma é a grande vitória.

A vida espiritual é uma construção altíssima, uma intensa verticalização rumo ao Infinito, obra gigantesca que necessita de um alicerce sólido para não expor a futuros riscos a grande torre.

A vida espiritual é uma guerra sem tréguas contra poderosos adversários como ilustra tão maravilhosamente o drama místico da Bhagavad Gita: o príncipe Arjuna tem de lutar contra os usurpadores do seu trono espiritual, os sentidos e o intelecto.

Os recursos para essa grande empresa aumentam na proporção direta em que o homem der mais importância ao que ele é internamente e menos importância ao que ele tem externamente. O “ser alguém” é, geralmente, incompatível com o “ter algo”; por isso deve o homem diminuir aquilo que tem na razão direta daquilo que ele é.

Só alguém que fosse firmemente estabelecido e consolidado no seu eterno “ser” poderia, sem prejuízo, voltar ao “ter” temporário — mas onde estão esses homens cósmicos, univérsicos, plenamente cristificados, totalmente realizados?

A imensa maioria dos homens do nosso século mesmo quase dois milênios após a vinda do Cristo — não podem ser e ter ao mesmo tempo; só lhes resta a alternativa entre o ser e o ter: ou ter sem ser — ou ser sem ter.

Mahatma Gandhi foi convidado pelos homens do “ter” a derrotar a potência material do Império Britânico com outra potência material — isto é, derrotar um “ter” com outro “ter”; mas ele se recusou preferindo derrotar o “ter” material do militarismo inglês com o “ser” espiritual que ele tinha em Deus. E Gandhi o fez, de encontro a todas as expectativas dos que só viam força na política do “ter”, e fraqueza na filosofia do “ser”.

É que “a loucura de Deus é mais sábia que os homens, e a fraqueza de Deus é mais forte que os homens.” (São Paulo.)

“Bem-aventurados os mansos, porque eles possuirão a terra!” (Jesus.)

Mansos são os que confiam no “ser” espiritual e desconfiam do “ter” material. Aparentemente esses mansos são constantemente derrotados pelos vio¬lentos; na realidade, porém, eles são sempre vitoriosos, aqui e por toda a parte, embora os cegos e os míopes nada enxerguem dessa vitória, que se acha em uma outra dimensão , inacessível ao alcance dos sentidos e do intelecto. Internamente, os mansos são sempre vitoriosos, porque possuem o reino dos céus; mas muitas vezes são vitoriosos, também, externamente, possuindo não só o céu de dentro, senão, também, a terra de fora. Não há, certamente, nenhum Alexandre Magno, Aníbal, Júlio César, Napoleão, Hitler ou Mussolini que tão genuinamente possua “a terra”, isto é, as simpatias, o amor e a admiração dos melhores dentre os homens, aqui na terra, como os possuem, através dos séculos e milênios, Jesus, Francisco de Assis, Mahatma Gandhi e todos os que preferiram a mansidão à violência, o amor ao ódio.

Esses, sim, construíram a sua torre espiritual pelo desapego e derrotaram seus inimigos pelo amor.

20

“Não Julgueis - e Não Sereis ‘Julgados!’ Não Condeneis - e Não Sereis Condenados!”

Com estas duas frases lapidares enuncia o divino Mestre a lei universal e infalível de causa e efeito, ou, como diz a filosofia oriental, a lei do “karma”. Se os homens compreendessem praticamente essa lei, não haveria malfeitores sobre a face da terra, porque o homem compreenderia que fazer mal a seus semelhantes é fazer mal a si mesmo e, como ninguém quer ser objeto de um mal, ninguém seria autor do mal; cada um compreenderia que ser mau é fazer mal a si mesmo.

O universo é um “kosmos”, isto é, um sistema de ordem e harmonia, regido por uma lei que não admite exceção, ou no dizer de Einstein, o universo é a própria Lei Universal. Dentro desse sistema cósmico, a toda ação corresponde uma reação equi¬valente. Pode essa reação tardar, mas ela vem com absoluta infalibilidade.

Objetivamente, ninguém pode perturbar o equi¬líbrio do universo, embora, sub jetivamente, os seres conscientes e livres possam provocar perturbação. A ação do perturbador provoca infalívelmente a reação do perturbado, e esses dois fatores, ação e reação, atuando como causa e efeito, mantêm o equilíbrio do Todo. A ação do perturbador chama-se culpa ou pecado, a reação do perturbado chama-se pena ou sofrimento. Ser autor de uma culpa é ser mau ser objeto de uma pena é sofrer um mal. Por isso ématematicamente impossível que alguém seja mau sem fazer mal a si mesmo. Se tal coisa fosse possível, o malfeitor teria prevalecido contra o universo e ab¬rogado a Constituição Cósmica; teria, por assim dizer, derrubado o Himalaia com a cabeça.

Compreender praticamente essa lei inexorável é ser sábio, e ser sábio é deixar de ser mau ou pecador. Se todos os homens fossem sábios ou sapientes, não haveria maus sobre a face da terra. Mas os homens são maus porque são insipientes, ignorantes. “Disse o insipiente no seu coração: Não há Deus!” Todas as vezes que os livros sacros se referem ao pecador, usam o termo “insipiente”, isto é, não sapiente”, ou ignorante.

O grande ignorante é o pecador.

O grande sábio é o santo.

Quem conhece experiencialmente a ordem cósmica não comete a loucura de querer destrui-la com seus atos maus, porque sabe que isto é tão impossível como querer derrubar o Himalaia com a cabeça ou apagar o sol com um sopro.

O verdadeiro homem santo é um sapiente. E sua sapiente santidade consiste em manter perfeita harmonia com a lei do universo. A própria palavra “santo” quer dizer “universal” ou “total” 2. O homem santo é o homem univérsico, integral, cósmico, aquele que não procura uma vantagem parcial contrária à ordem total.

2 Em alemão, beil quer dizer total, integral, completo, e a palavra beilig, derivada de beil, significa santo. Em inglês, wbole (antigamente bale, derivado do verbo to beal) quer dizer total, inteiro; e boly significa santo. — Santo é, pois, o homem que é total, integral, universal, o homem que estabelece e mantém harmonia entre a parte e o Todo, entre o individuo humano e o Universo cósmico.

21

“Pedi, e Recebereis; Procurai, e Achareis; Batei e Abrir-se-vos-á”

Assim disse o Mestre, e prosseguiu, con¬firmando esta grande verdade cósmica: “Pois todo aquele que pede receberá; quem procura achará; e a quem bate abrir-se-lhe-á.

Mais uma vez enuncia Jesus uma lei eterna e infalível, baseada na polaridade de todas as coisas. É necessário que o homem peça, procure, bata —mas nada disto é suficiente. O pedir, procurar, bater não é causa daquilo que ele recebe, acha e das portas que se lhe abrem; mas tudo isto é condição indispen¬sável, fator preliminar para que a graça de Deus possa entrar em movimento, agir rumo ao homem que assume essa atitude propícia, que crea em si essa atmosfera e esse clima favorável para que a plenitude de Deus possa fluir para dentro da vacuidade do homem. Não há, nem jamais poderá haver, um pedir, um procurar, um bater tão poderoso que possa produzir, causar de dentro de si mesmo, o menor dos dons espirituais, porque esses dons são essen¬cialmente gratuitos, são purÍssima graça, e, portanto, 100% de graça. E cegueira espiritual e orgulho luciférico pensar que o homem-ego, o homem¬persona possa causar, isto é, merecer algo daquilo que lhe é dado, que ele acha ou que se lhe abre. O abrimento de uma janela não causa a luz solar que vai iluminar a sala; a adubação de uma planta não causa o seu crescimento, florescimento e frutificação — mas esses atos são necessários como condições preliminares para que a causa possa atuar e produzir de si mesma os seus efeitos, para que o sol possa iluminar a sala, para que a vida cósmica refletida na planta possa expandir-se. Nenhum abrir de janela pode causar luz solar; nenhum adubar de planta pode crear vida.

A causa é sempre um fator interno — ao passo que a condição é apenas um adjutório externo. Nenhum fato material ou mental pode causar um efeito espiritual, porque, em hipótese alguma, pode o efeito ser maior que sua causa. Deus dá a quem pede; Deus faz achar a quem procura. Deus abre a quem bate. Deus é sempre a causa intrínseca do efeito; o homem é apenas condição extrínseca do mesmo. O homem que se considera causa de um efeito espiritual, que julga poder merecer um dom divino, dá prova de profunda ignorância aliada a uma detestável arrogância. É a satanidade do ego que se arroga semelhante grandeza e poder.

Se alguém alega que não necessita de pedir nada a Deus, porque Deus já sabe perfeitamente de que o homem tem mister, mostra que não compre¬endeu a razão de ser desse “pedir”. Não pedimos para lembrar a Deus o que, porventura, tenha esque¬cido, mas sim para crear dentro de nós mesmos um ambiente tal que o espírito de Deus encontre a necessária afinidade por onde possa atuar sobre nós. O objeto do “pedir” não é Deus, mas o próprio homem. A graça de Deus está sempre presente ao homem, mas nem sempre o homem está em condições de receber essa graça. O pedir, procurar, bater faz com que também o homem se torne presente a Deus que sempre está presente ao homem. Quem se acha em plena luz solar, de olhos fechados, não 5º êaluz, embora presente; mas, se abrir os olhos, verá a luz solar que sempre estava presente. O pedir, procurar, bater é como que um abrir de olhos à luz de Deus. ‘Torna favorável a disposição desfavorável do homem – e onde quer que haja disposição favorável, a graça de Deus atua poderosamente.

*

Há três classes de homens: 1) os que não pedem, não procuram, não batem em portas fechadas, mas esperam que Deus faça tudo por eles, como a outros tantos autômatos passivos e inertes; esses nada recebem, acham, nem encontram portas abertas; 2) os que pedem, procuram, batem com impetuosidade, na convicção de que essa sua atividade humana possa produzir de si mesma o resultado desejado; são os auto-suficientes, os auto-complacentes, os que têm ilimitada confiança na onipotência do seu ego físico-mental-emocional; esses não recebem dons divinos, mas recebem, quando muito, os pequenos dons correspondentes à potência ou impotência desse seu ego humano; 3) há, finalmente, os que pedem, procuram, batem, creando destarte uma atitude de receptividade, esvaziando-se do seu pe¬ queno ego humano, produzindo em si uma espécie de “vórtice de sucção”, que atrai com silenciosa veemência a plenitude de Deus.

Neste sentido dizem os livros sacros: “Deus resiste aos soberbos (os da segunda classe), mas dá sua graça aos humildes”. Humilde, humildade, épalavra muito mal compreendida, como se fosse algo indigno de um homem de brio e senso de dignidade, quando, na realidade, não é senão a verdade sobre o próprio homem e a vivência em plena sintonia com essa verdade, O orgulho é sempre filho do erro, a humildade é sempre filha da verdade.

Quando Jesus diz de si “as obras que eu faço não sou eu quem as faz, mas sim o Pai que em mim está” — ou “a minha doutrina não é minha, mas sim a daquele que me enviou” enuncia ele esta grande verdade: Não é o meu pequeno ego humano, a minha pessoa (o meu Jesus humano) que produz esses efeitos espirituais, mas é o elemento divino em mim, o meu divino Cristo (meu Pai) que tal coisa produz. O seu humano ego é apenas o canal e veículo por onde fluem as águas divinas dos grandes efeitos realizados.

Em última análise, toda a santidade repousa num problema de compreensão da realidade. O pecador é, acima de tudo, um ignorante da realidade, que se deixa iludir por aparências e pseudo-realidades; é um “insipiente”, isto é, um “não sapiente”, o que equivale a dizer, um ignorante. “Disse o insipiente em seu coração: Não há Deus!” Isto diz o ignorante, não o sábio ou sapiente.

Todo o segredo da vida espiritual e auto-realização consiste em que o homem trabalhe intensamente, como se tudo dependesse do seu trabalho e ao mesmo tempo confie em Deus, como se tudo dependesse unicamente da graça divina. Se conseguir sintetizar numa perfeita harmonia esses dois elementos, aparentemente incompatÍveis, nada lhe será impossível, porque essa atitude o tornará onipotente por participação.

Quem lança mão de todas as previdências humanas — e ao mesmo tempo confia plenamente na providência de Deus, é inderrotável.

*

Este princípio, mutatís mutandís, vale, aliás, para todas as atividades humanas. Muitas vezes trabalhamos intensamente, estudando, pesquisando, torturando o corpo e a mente — sem solução alguma. Depois, desistimos e tratamos de outros assuntos —e eis que, subitamente, a solução aponta, como que por milagre, e todo de improviso, em nossa mente! Algo em nós continuou a trabalhar, subterrânea ou subconscientemente, enquanto o nosso consciente se ocupava com outras coisas. Isaac Newton, não raro, adormecia sem ter conseguido o resultado de um cálculo matemático ou a visão nítida de uma lei astronômica — mas, durante o sono, a solução se cristalizava com absoluta clareza, de maneira que, ao acordar, a podia lançar ao papel sem dificuldade.

O grande industrial norte-americano Roberto Le Tourneau voltou, altas horas da noite, de uma reunião da Sociedade Missionária a que pertencia, e tentou, embora exausto, terminar o desenho de uma peça de máquina que tinha de entregar na manhã seguinte; mas adormeceu sobre o papel, mal iniciara o desenho. Na manhã seguinte verificou, com grande surpresa, que o desenho estava pronto, e mais perfeito do que ele o poderia fazer em estado de consciência vígil.

Quando o povo atribui a Deus as palavras “Homem, ajuda-te — que eu te ajudarei!” —enuncia esta mesma verdade.

Crear em si mesmo uma atitude de intensa receptividade, sem, contudo, esperar o resultado dessa atitude — é esta a mais difícil de todas as artes. E poucos chegam a ser mestres nessa arte. Relativa¬mente fácil é alguém se convencer de que a sua contribuição humana não seja necessária para as obras divinas, um a vez que Deus é onipotente e não necessita de nenhuma das suas creaturas — esta atitude prevalece no oriente, O homem ocidental, essencialmente ativo e dinâmico, facilmente cai no erro contrário, julgando poder produzir o resultado total só com sua atuação, que ele considera não só necessária, mas, também, suficiente.

O Cristo, porém, se acha eqüidistante desta atitude ocidental e oriental; ele é universal, cósmico.

NOSLEN OLEBAR e HUBERTO ROHDEN
Enviado por NOSLEN OLEBAR em 26/04/2014
Código do texto: T4784324
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.