O SERMÃO DA MONTANHA - Parte 2

O SERMÃO DA MONTANHA - Parte 2

HUBERTO ROHDEN

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“Bem-Aventurados os Pacificadores”

A palavra latina pacificare, da qual é derivada pacificus, é composta de dois

radicais (e o mesmo acontece em grego): pax e facere, isto é, “paz” e “fazer”. Pacificador (em latim: pacificus) é, pois, aquele que faz a paz, é um “fazedor de paz”, um homem que possui em si a força creadora de estabelecer ou restabelecer um estado ou uma atitude permanente de paz no meio de qualquer campo de batalha.

A tradução “pacíficos”, em vez de “pacificadores”, que se encontra em muitas versões portuguesas, não corresponde ao sentido do original grego eirenopoíí, nem ao latim pac~fici, porque ambos significam um processo ativo e dinâmico, e não apenas um estado passivo de paz.

Quem é, pois, verdadeiro pacificador?

Não é, em primeiro lugar, aquele que restabelece a paz entre pessoas ou grupos litigantes, mas sim aquele que estabelece e estabiliza a paz dentro de si mesmo. Aliás, ninguém pode ser verdadeiro pacificador de outros se não for pacificador de si mesmo. Só um autopacificador é que pode ser um alo-pacificador. A pior das discórdias, a mais trágica das guerras é o conflito que o homem traz dentro de si mesmo o conflito entre o ego físico-mental da sua humana personalidade e o Eu espiritual da sua divina individua¬lidade. Se não houvesse conflito interior, entre o seu Lúcifer e o seu Lógos, não haveria conflitos exteriores na família, na sociedade, nas nações, entre povos. Todos os conflitos externos são filhos de algum conflito interno não devidamente pacificado. Por isso, é absurdo querer abolir as guerras ou revoluções de fora as discórdias domésticas no lar ou no campo de batalha, enquanto o homem não abolir primeiro o conflito dentro da sua própria pessoa.

O grande tratado de paz tem de ser assinado no foro interno do Eu individual antes de poder ser ratificado no foro externo das relações sociais. Nunca haverá Nações Unidas, nunca haverá sociedade ou família unida enquanto não houver indivíduo unido. Pode, quando muito, haver um precário armistício (que quer dizer “repouso de armas”), mas não uma paz sólida e duradoura enquanto o individuo estiver em guerra consigo mesmo. Que é um armistício se não uma trégua, maior ou menor, entre duas guerras? Paz social, segura e estável, supõe paz individual, firme e sólida.

*

“Eu vos deixo a paz, eu vos dou a minha paz” — disse o Mestre, em vésperas da sua morte — não a dou assim como o mundo a dá; dou-vos a minha paz para que a minha alegria esteja em vós, e seja perfeita a vossa alegria, e ninguém mais vos tire a vossa alegria.

É este o grande tratado de paz, no santuário da alma. Não é um armistício precário de cuja

estabilidade se deva temer a cada momento, mas é uma paz firme e indestrutível, plena de alegria e

felicidade, porque alicerçada sobre a verdade, a “verdade libertadora”.

Essa paz segura e duradoura, porém, só pode existir no homem que ultrapassou todos os erros e todas as ilusões do velho ego e se identificou com a verdade do novo Eu, o homem que descobriu em si o Cristo e o fez triunfar sobre sua vida.

Esta bem-aventurança é, pois, a apoteose da auto-realização porque o homem que realiza o seu elemento divino, o seu Cristo interno, entra em um mundo de firmeza e paz, que se revela constantemente em forma de alegria e felicidade e se concretiza em benevolência e vontade de servir e de dar. O homem que encontrou Deus pela experiência mística é, naturalmente, bom e benévolo com todos os homens e com os seres infra-humanos. A felicidade interna tem a irresistível tendência de transbordar em benevolência externa e em uma vontade de servir e dar espontânea e jubilosamente. Quando o homem émau e desabrido com os outros é porque não tem paz interior e sente a necessidade de descarregar o exces¬so da sua infelicidade — “nervosismo”, na linguagem eufemística de cada dia — em alguém ou em alguma coisa, e os objetos mais próximos servem de párar¬raios para essa tensão do homem infeliz. Propriamen¬te, deveria esse homem ser áspero consigo mésmo, o principal culpado; mas, como o egoísmo não lhe permite semelhante sinceridade, são os inocentes ou os menos culpados não raro, até coisas e animais domésticos alvo dessa irritação do homem intima-mente desarmonizado consigo mesmo.

Quando o homem tolera a si mesmo, graças a uma profunda paz de consciência, todas as coisas e pessoas do mundo são toleráveis; mas, quando o homem, de consciência insatisfeita, não se tolera a si mesmo, nada lhe é tolerável.

O remédio não está em mudar os objetos, mas em corrigir o sujeito. Isto, porém, supõe uma sinceridade muito difícil e rara.

*

A verdadeira paz é um carisma divino, uma graça, uma dádiva de Deus, que é dada a todo homem que se tornar receptivo para receber esse tesouro.

A verdadeira paz não pode ser manufaturada pelo ego humano, porque esse ego é o autor de todas as discórdias que existem sobre a face da terra. Só quando esse pequeno ego humano se integrar no grande Eu divino é que pode surgir uma paz duradoura.

A paz de que fala o divino Mestre e que ele prometeu a seus discípulos não é algo inerte e passivo, como a não-resistência de uma ovelha em face do lobo. O amor é uma “violência” espiritual, disse Gandhi, que derrota todos aqueles que recorrem à violência material do ódio.

Verdade é que o creador da verdadeira paz prefere morrer a matar; mas isto é apenas uma conseqüência natural da sua atitude; não é a essência da paz. A verdadeira paz é algo essencialmente ativo e dinâmico; uma exuberante plenitude vital, e não uma agonizante vacuidade: é uma jubilosa afirmação, e não uma titubeante negação.

Quem tem firme consciência de possuir a plenitude do ser pode facilmente renunciar à abundância do ter. Quem é alguém na sua profunda qualidade vertical, necessita de bem pouco, no plano horizontal do algo, onde impera o ter. O seu ser e o seu ter estão em razão inversa, como as duas conchas duma balança, como o zênite e o nadir. Quanto maior é o ser de uma pessoa, menor é o seu desejo de ter; e, como toda a falta de paz nasce do desejo do ter, e ter cada vez mais, é lógico que o homem que reduziu ao mínimo o seu desejo de ter, não tem motivo para perder a paz.

A paz é, pois, um atributo do ser, é algo qualitativo, algo que tem afinidade com o EU SOU do homem. O homem que tem plena consciência do seu divino EU SOU não tem motivo para brigar ou declarar guerra a alguém por causa dos teres, que desunem os homens profanos. Mesmo que os outros o tratem com injustiça por causa dos teres, o homem espiritual sabe que todo esse mundo quantitativo do ter é pura ilusão: ninguém pode ter algo que ele não é só o nosso ser que é realmente nosso.

Por isso, em vez de brigar por causa da capa que alguém lhe roubou, esse milionário do ser oferece, tranqüilamente, ao ladrão, também a túnica, porque nem a capa nem a túnica fazem parte do seu verdadeiro ser. E, destarte, ele não sofre perda alguma real; perde dois zeros em vez de um zero, mas a perda de dois zeros (capa e túnica) não é perda maior que a perda de um zero (só a capa). O profano, precisamente por ser profano, isto é, analfabeto do real*, corre loucamente atrás do zero da capa que alguém lhe roubou, mas o iniciado, em vez de reclamar o zero da capa, cede ao amante desse zero mais o zero da túnica e não sofreu prejuízo algum, porque todos os objetos são desvalores, apenas o sujeito é que é valor.

Por isso, o homem que chegou ao conhecimento de si mesmo é invulnerável; ninguém pode prejudicá¬-lo, ninguém pode ofendê-lo, ninguém pode empobre¬cê-lo, ninguém lhe pode infligir perda de espécie alguma, uma vez que ninguém pode obrigá-lo a perder o que ele é, e aquilo que ele tem não o enriquece nem a sua perda o empobrece.

A paz nasce, portanto, de uma profunda sabedoria, do conhecimento da verdade sobre si mesmo. Quem conhece essa verdade é livre de todo o ódio, tristeza, rancor, senso de perda e frustração.

*

Uma pessoa profundamente harmonizada em si mesma irradia harmonia ao redor de si e satura dessa imponderável e benéfica radiação, todas as coisas.

As suas auras benéficas envolvem tudo em um halo de serenidade e bem-estar, de fascinante leveza e luminosidade, que atuam, imperceptível, porém, seguramente, sobre outras pessoas receptivas.

O homem que estabeleceu a paz de Deus em sua alma é um poderoso fator para restabelecer a paz em outros indivíduos, e, através destes, na sociedade. Não é necessário que fale muito em paz,

* Verdade, verdadeiro N. do E.

que aduza eruditos argumentos propace — basta que ele mesmo seja uma fonte abundante e um veemente foco de paz.

O filósofo místico norte-americano Émerson disse, certa vez, a um homem que falava muito em paz, mas não possuía paz dentro de si: “Não posso ouvir o que dizes, porque aquilo que és troveja muito alto.”

Quem não é pacificado dentro de si mesmo, não pode ser pacificador fora de si.

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A conquista definitiva e sólida da paz da alma é fruto de uma grande guerra, guerra que o homem declara a si mesmo, isto é, a seu velho ego. “O reino dos céus sofre violência, e os que usam de violência o tomam de assalto.

Isto é linguagem bélica! O homem tem de lutar arduamente para conquistar a paz. É necessário cruzar misteriosa fronteira dentro de nós para descobrirmos o “tesouro oculto” e a “pérola preciosa” do nosso verdadeiro Eu divino.

Deus”.

*

Os pacificadores serão chamados “filhos de Deus é a paz eterna, infinita, absoluta; não a paz da inércia, fraqueza e vacuidade mas a paz da dinâmica, da força, da plenitude. Nele não há discórdia, luta, conflito; e quanto mais o homem se aproxima de Deus, pela compreensão e pelo amor, tanto mais a sua vida se assemelha à vida divina pela paz e serenidade. O homem que fez definitivo tratado de paz consigo mesmo irradia uma atmosfera de calma e felicidade que contagia a todos os que forem suficientemente suscetíveis para perceber essas auras pacificantes.

Os primeiros discípulos de Jesus, referem os Atos dos Apóstolos, eram “todos um só coração e uma só alma”; viviam em paz e harmonia e tomavam as suas refeições em comum, na alegria e simplicidade do seu coração; nem havia entre eles um só indigente, porque os que possuíam demais davam do seu su¬pérfluo aos que tinham de menos.

Destarte, pela paz individual, estava soluciona¬do o problema da paz social.

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“Bem-Aventurados os Tristes”

Não parece estranho que Jesus tenha proclamado felizes os tristes? Ele que disse a seus discípulos: “Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz, para que minha alegria esteja em vós e seja perfeita a vossa alegria e ninguém mais tire de vós a vossa alegria”!

Antes de tudo, convém distinguir duas espécies de tristeza e alegria, uma tristeza central, permanente, por vezes circundada de alegrias periféricas, intermi¬tentes — e uma alegria central, permanente, que, por vezes se acha envolta em tristeza periférica, intermi¬tente.

Com outras palavras: pode haver uma tristeza¬atitude e uma alegria-atitude — como também pode haver uma tristeza-ato e uma alegria-ato. Pode alguém ser triste e estar alegre — como também pode ser alegre e estar triste, O que é decisivo é a atitude interna, permanente, negativa ou positiva. E essa atitude radica, em última análise, em um profundo substrato metafísico, a VERDADE, ou então o seu contrário. Quem tem a consciência reta e sincera de estar na Verdade é profundamente alegre, calmo, feliz, embora externamente lhe aconteçam coisas que o entristeçam — e quem , no íntimo da sua consciência, sabe que não está na Verdade é pro¬fundamente triste, ainda que externamente se distraia com toda a espécie de alegrias.

Quanto mais triste o homem é internamente, pela ausência de harmonia espiritual, tanto mais necessita ele de alegrias externas, geralmente ruidosas e violentas. Esse homem não tolera a solidão, que lhe traz consciência mais nítida da sua vacuidade ou desarmonia interior; por isso, evita quanto possível estar a sós consigo; procura companhia por toda a parte, e, quando não a pode ter em forma de pessoas, canaliza para dentro da sua insuportável solidão parte dos ruídos da rua, por meio do jornal, do rádio, da televisão. Alguns vão mais longe e recorrem a entorpecentes — maconha, cocaína, morfina, etc.

para camuflarem, por algum tempo, a sensação da sua triste solidão.

Quem teme a concentração necessita de toda a espécie de distrações para poder suportar-se a si mesmo. E, como essas distrações e prazeres, pouco a pouco, calejam a sensibilidade, necessita esse ho¬mem de intensificar progressivamente os seus estimulantes artificiais para que ainda produzam efeito sobre seus nervos cada vez mais embotados. Por fim, nem já os mais violentos estimulantes lhe causam mossa e então esse homem chega, não raro, a tal grau de tristeza, no meio de suas “alegrias” que põe termo à sua tragédia por meio do suicídio. Outros acabam no manicômio. É que nenhum homem pode viver sem uma certa dose de alegria.

Enquanto o homem não descobrir a bela tristeza da vida espiritual, tem de iludir a sua fome e sede de felicidade com essas horrorosas alegrias da vida material. Essas alegrias externas, porém, têm sobre ele o efeito da água do mar, que tanto maior sede dá quanto mais dela se bebe.

*

Mas, quando o homem acerta em descobrir a bela tristeza da vida com Deus, renuncia espontanea¬mente a essas horrorosas alegrias da vida sem Deus, ou então satura de espiritualidade todas as suas materialidades, transformando em oásis de vida abundante o seu velho deserto morto.

E então compreende ele o que o divino Mestre quis dizer com as palavras “não dou a minha paz assim como o mundo a dá”. O que o mundo dá não é paz real, é apenas uma trégua artificial, espécie de armistício temporário e precário entre duas guer¬ras, ou melhor, em um campo de batalha de guerra permanente. A paz do Cristo, porém, é uma paz pro¬funda e sólida, porque nascida da Verdade que liberta.

O homem cuja felicidade nasceu da verdade é calmo e sereno em todas as vicissitudes da vida, porque sabe que não precisaria mudar de direção fundamental se a morte o surpreendesse nesse instante. Perguntaram ao jovem estudante João Berchmans, que estava jogando bola, o que faria se soubesse que, daí a cinco minutos, tivesse de morrer; respondeu calmamente: “Continuaria a jogar.” Assim só pode falar quem tem plena certeza de que está no caminho certo, em linha reta ao seu destino, embora distante da meta final.

Ora, esse caminho não pode deixar de ser es¬treito e árduo, uma espécie de tristeza, como é toda a disciplina; mas no fundo dessa tristeza externa dormita uma grande alegria interior. É, todavia, uma alegria anônima, silenciosa, imponderável, como costumam ser os grandes abismos e as grandes alturas. Aos olhos dos profanos, leva o homem espiritual uma vida tristonha e descolorida; o seu ambiente parece monótono e cor de cinza como um vasto deserto. E talvez não seja possível dar ao profano uma idéia da profunda alegria e felicidade que o homem espiritual goza, porque esta felicidade jaz numa outra dimensão totalmente igno¬rada pelo profano. O homem habituado a certo grau de espiritualidade tem uma imensa vantagem sobre o homem não-espiritual; não necessita de estímulos violentos para sentir alegria, porque a sua alegria não vem de fora, e sim de dentro. Basta-lhe uma florzinha à beira da estrada; basta o sorriso de uma criança caminho à escola; basta o tanger de um sino ao longe; basta o cintilar de uma estrela através da escuridão — tudo enche de alegria, suave e pura, a alma desse homem, porque ela está afinada pelas vibrações delicadas que vêm das luminosas alturas de Deus. E as fontes da sua alegria brotam por toda a parte; nem é necessário que saia de casa para encontrar motivos de alegria, porque a sua alegria é de qualidade, que não está sujeita às categorias de tempo e espaço, como as alegrias ruidosas e grosseiras dos profanos. Um único grau de alegria-qualidade dá maior felicidade do que cem graus de alegria-quantidade.

Por isso a vida do homem espiritual é uma bela tristeza, ao passo que a vida do homem profano é uma pavorosa alegria. Mas o homem espiritual prefere a sua bela tristeza à pavorosa alegria do profano, que ele compreende perfeitamente, porque também ele já passou por esse estágio infeliz — ao passo que o profano não compreende a felicidade anônima do iniciado, porque nunca passou por essa experiência.

*

O homem espiritual da bela tristeza é proclamado “bem-aventurado”, e tem a certeza de ser consolado. Um dia, a sua bela tristeza de hoje se converterá em uma jubilosa alegria de amanhã. E isto pode acontecer mesmo antes de ele morrer fisicamente. Quando ple¬namente realizado no Cristo, pode dizer como este, em vésperas de sua morte: “Dou-vos a paz, deixo-vos a minha paz para que minha alegria esteja em vós e seja perfeita a vossa alegria. Pode dizer, também, com um dos homens mais cristificados que a humanidade conhece: “Transborde de júbilo em todas as minhas tribulações.

Para a maior parte dos homens, a vida presente não é ainda uma Páscoa em toda a sua plenitude; é antes um sábado de soledade, misto de alegria e tristeza, de gozo e sofrimento, de sorrisos e de lá¬grimas, espécie de luminoso arco-íris sobre as águas escúras de um dilúvio.

Mas, nesse misto de luz e de trevas, há um quê de inefável poesia, porque toda a poesia profunda e real é polarizada de suavidade e amargura, de alegria e sofrimento, de certeza e incerteza, devido às condições da vida presente. O certo é que nenhum homem espiritual estaria disposto a trocar sua silenciosa felicidade pelas ruidosas alegrias dos profanos.

Geralmente, os homens mais felizes são ignorados pela humanidade que escreve e lê livros e jornais, que fala do alto dos púlpitos e das tribunas, que perde tempo com rádio e televisão ou procura salvar o gênero humano pela política, Os milionários da felicidade são, quase sempre, os grandes anônimos da história, os “não-existentes”. Os poucos homens que aparecem em público são raras exceções da regra. O grande exército dos “bem-aventurados” não aparece em catálogos e cadastros estatísticos. São os irmãos anônimos da “fraternidade branca” que estão presentes em toda a parte onde haja serviços a prestar, mas ninguém lhes percebe a presença, porque sempre desaparecem por detrás das suas obras. Os muitos e os ruidosos que se servem das suas obras como de fogo de artifício e deslumbramento pirotécnico para iluminar a sua personalidade não fazem parte da “fraternidade branca”, porque não se eclipsaram no anonimato da benevolência universal.

Os verdadeiros redentores da humanidade são tão felizes no cumprimento da sua missão que nunca esperam pelos aplausos de platéias, mas desaparecem por detrás dos bastidores do esquecimento, no mesmo tempo em que terminam a sua tarefa. São igualmente indiferentes a vivas como a vaias, a aplausos como a apupos, a louvores como a vitupérios, porque eles vivem no mundo da silenciosa e profunda verticalidade invisível, incompreendidos pelos habitantes da ruidosa horizontalidade visível.

“Bem-aventurados os que estão tristes — porque eles serão consolados.”

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“Bem-Aventurados os que Sofrem Perseguição por Causa da Justiça”

“Justiça”, como já dissemos, significa a atitude justa e reta do homem para com Deus. O homem “justo”, nos livros sacros, é o homem santo, o homem crístico, o homem que realizou em alto grau o seu Eu divino pela experiência mística manifestada na ética. O homem “justo” é o homem que se guia, invariavelmente, pelos dois grandes mandamentos, o amor de Deus e a caridade do próximo.

Mas, será possível que alguém sofra perseguição por causa dessa justiça, por causa da sua santidade?

O Evangelho de Jesus está repleto de afirmações dessa natureza, e a experiência multissecular o con¬firma. “Por causa do meu nome sereis odiados de todos, e chegará a hora em que todo aquele que vos matar julgará prestar um serviço a Deus. “Arrastar¬vos-ão perante reis e governadores e sinagogas; mas não vos perturbeis! Porque o servo não está acima de seu senhor; se a mim me perseguiram também vos hão de perseguir a vós. “Os inimigos do homem são os seus companheiros de casa.”

Estamos habituados a pensar e a dizer que esses perseguidores dos justos são homens maus, perversos, de má-fé; e, de fato, assim acontece muitas vezes. Entretanto, as mais cruéis perseguições que a história humana conhece foram perpetradas por homens sinceros e subjetivamente bons, em nome da verdade e do bem, em nome de Deus e do Cristo. Sobretudo as igrejas e sociedades religiosas organi¬zadas têm empreendido, e empreendem ainda, cruzadas e “guerras santas”, trucidando infiéis, queimando hereges, torturando homens de elevada espirituali¬dade, excomungando como apóstatas e perversos muitos dos homens mais puros e santos que o mundo conhece. A maior parte desses perseguidores não tem má intenção nem consciência pecadora; agem por um sentimento de dever.

Há duas razões fundamentais por que o homem justo é perseguido por outros homens individuais ou por sociedades humanas.

1 — Um indivíduo persegue outro indivíduo, não só porque este seja mau, mas, também, pelo fato de ser bom.

Por quê?

Porque o homem justo aparece como elemento hostil a outro homem menos justo. A simples presença de um homem mais santo do que eu é, para mim, uma declaração de guerra, ou, pelo menos, uma permanente ofensa. O homem espiritual, pelo simples fato de existir, diz silenciosamente a outros: “Vós devíeis ser como eu, mas não sois, e isto é culpa vossa. “Nenhum homem espiritual, é claro, diz isto; mas os profanos interpretam deste modo a presença do homem justo, e atribuem a este a ingrata censura. Ora, ninguém tolera, por largo tempo, a consciência da sua inferioridade. Enquanto não aparece outro homem de elevada espiritualidade, pode o homem menos espiritual viver tranqüilo na sua inferiorida¬de, porque esta não é nitidamente percebida senão quando polarizada pelo contrário ou por uma espiritualidade superior. Quando o homem pouco espiritual encontra outro ainda menos espiritual, sente-se ele relativamente seguro do seu plano, e tem mesmo a tendência instintiva de fechar os olhos para as virtudes do outro, a fim de poder brilhar mais intensamente, ele só, como aquele fariseu, no templo em face do publicano. E que o homem profano mede o seu valor pelo relativo desvalor dos outros. Quando então a sua luz é, ou parece ser, mais forte que as luzes dos outros, o homem profano ou de escassa espiritualidade experimenta um senso de segurança e tranqüilidade; não tem remorsos da sua pouca espiritualidade nem se julga obrigado a um esforço especial para subir. Entre cegos, diz o provérbio, quem tem um olho é rei.

Mas ai desse homem complacentemente satisfeito consigo mesmo, se lhe aparecer alguém de maior espiritualidade! Logo começa ele a sentir-se inseguro e inquieto. Em face dessa inquietação, duas atitudes seriam possíveis: a) o vivo desejo de ser tão espiritual como o outro e o esforço correspondente a esse desejo; b) uma atitude de despeito e agressividade.

A primeira atitude é a dos homens humildes e sinceros; a segunda é a dos homens orgulhosos e insinceros consigo mesmos. Os primeiros se tornam discípulos do homem espiritual, os últimos se tornam seus adversários.

É doloroso para um pigmeu ver-se eclipsado por um gigante.

É desagradável para um impuro ter a seu lado um homem puro.

Se o pigmeu não sente em si a capacidade de crescer; se o impuro não dispõe da força de se tornar puro, declarará guerra ao gigante e ao puro.

Essa guerra nem sempre se desenrola no plano físico; muitas vezes se trava no campo moral: o homem menos espiritual descobre no mais espiritual numerosas manchas, e, esquecido da muita luz que ele irradia, só enxerga, o despeitado, os pontos escuros que encontra no sol — e acha que não convém tomar banho de sol, porque há tantas e tão grandes manchas no globo solar.

*

2 — No terreno social das organizações eclesi¬ásticas acresce ao primeiro, outro fator, aparentemente mais justificável: o homem altamente espiritualizado é sempre uma espécie de exceção da regra, é um pioneiro que abandonou as velhas estradas conhecidas e batidas pela turbamulta dos crentes e rasga caminhos novos, “por mares nunca dantes navegados”, por ignotas florestas, por ínvios desertos que poucos conhecem. Esse homem ultrapassa, quase sempre, os caminhos tradicionais do passado, e até do presente, e abre novas rotas para o futuro. Toda e qualquer inovação, por mais verdadeira, é, no principio, considerada como erro, e até como perigo social.

Ora, é sabido que, no mundo espiritual, todo homem se sente grandemente inseguro, porque esse mundo lhe é desconhecido, como tudo que apenas se crê, sem dele ter experiência imediata. Nenhum crente sabe o que é o reino de Deus assim como um cego de nascença não sabe o que é a luz, o que são cores, embora tenha decorado as mais verdadeiras teorias sobre esses assuntos. A única coisa que nos dá certa segurança ao homem inexperiente é o fato de que milhares e milhões de outros homens trilham esses mesmos caminhos, já por séculos e milênios, e muitos deles são bons e relativamente felizes.

De maneira que o fator “massa” e o fator “tradição” nos dão uma espécie de segurança e firmeza, no meio da insegurança e incerteza que, naturalmente, experimentamos por entre as trevas ou penumbras da vida espiritual. E isto nos faz bem.

Quando então aparece um homem que parece não necessitar desses elementos de segurança garan¬tidos pela massa e tradição, dá-se uma espécie de terremoto que abala as instituições antigas. E os que ainda necessitam dos elementos massa e tradição começam a afastar-se desse revolucionário iconoclaste, a fim de não perderem o seu senso de segurança. Mesmo na hipótese de que esse iconoclasta possua verdadeira segurança interior, graças à sua experiên¬cia direta, essa segurança não é transferível aos ou¬tros, e assim é compreensÍvel que estes, não tendo a mesma experiência, prefiram apegar-se firmemente às tradições antigas que a massa professa.

E o arrojado bandeirante do Infinito fica só, ou faz parte de uma pequenina elite, que não representa 1% da humanidade. Em caso algum pode esse homem apelar para uma longa tradição no passado; nunca houve grande massa de homens espirituais que fizesse tradição estratificada, e os poucos que houve ou há são praticamente desconhecidos da parte da humanidade-massa, que decide pela tradição.

Por isso , as sociedades religiosas organizadas, que contam sempre com o fator massa e tradição, dão grito de alerta e de alarme, e previnem seus filhos contra o perigoso inovador, o herege, o demo¬lidor, o apóstata. Quando as sociedades religiosas possuem suficiente poder físico, eliminam do número dos vivos o perigoso demolidor das tradições, e isto “pela maior glória de Deus e salvação das almas”. Quando não possuem esse poder, procuram neutra¬lizar a ação do herege matando-o moralmente, isolando-o por meio de campanhas sistemáticas de difamação e calúnia. E como, segundo eles, o fim justifica os meios, e como o fim é (ou parece ser) bom, todos os meios são considerados lícitos e bons, mesmo os maiores atentados à verdade, à justiça, à caridade.

Donde se segue que o homem espiritual vive em uma relativa solidão. A massa não simpatiza com ele se não lhe é positivamente antipático, mantém pelo menos uma atitude de apatia e desconfiança em face dele.

Para o homem espiritual, porém, o fator “massa” é sobejamente compensado pelo fator “elite” ou mesmo pelo simples testemunho da sua consciência em plena solidão.

Existe, aqui na terra, e por toda a parte, a “comunhão dos santos”, isto é, a misteriosa união de todos os que conhecem e amam a Deus, a fra¬ternidade branca dos irmãos anônimos formada pelos solitários pioneiros do Infinito. E eles sabem qué éprofundamente verdadeiro o que o grande Mestre disse: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali estou eu no meio deles

Dois ou três — porque nunca serão muitos no mesmo lugar e tempo, os homens cristificados. E mesmo que sejam mais, nunca deixará de imperar a misteriosa lei da polaridade ou da trindade; dentro de um grupo maior haverá sempre essa constelação interna de dois ou três. A grande experiência crística circulará sempre entre dois ou três, e só mediante essa pequena constelação é que ela se comunicará ao resto do céu estrelado e às galáxias do universo espiritual.

No tempo de Jesus eram Pedro, Tiago e João essa tríade espiritual, que presenciaram o Mestre no seu sofrimento e na sua glória. O total dos discípulos era doze, quatro vezes três; e, quando um deles falhou, se apressaram os restantes onze a preencher a lacuna; mas quem designou o substituto de Iscariotes não foram eles, mas foi o “Espírito Santo”, como referem os livros sacros. Nenhum homem podia restabelecer o número sagrado quatro vezes três; só o espírito de Deus. O homem, quando canal puro e veículo idôneo, serve de intermediário para canalizar as águas vivas que jorram para a vida eterna.

Já o grande Pitágoras sabia que três é o número da sacralidade vertical, e que quatro é o número das realizações horizontais, O número três é a mística do primeiro mandamento; quatro é a ética do segundo mandamento.

O homem justo é perseguido por causa da sua espiritualidade, tanto pelos indivíduos menos espirituais, como também pelas sociedades organizadas que necessitam de massa e tradição para sua sobrevivência; mas, apesar de tudo, ele vive num ambiente de paz e felicidade, porque está na “comunhão dos santos”.

“Bem-aventurado... dele é o reino dos céus”. O reino dos céus, porém, “está dentro de

vos”...

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“Vós Sois a Luz do Mundo”

É constante, em todos os livros sacros da humanidade, a afirmação de que Deus é luz. Antigamente, essa comparação parecia ser apenas um• arroubo poético, e não uma verdade filosófica; porqüanto é sabido que a luz enche de vida, beleza e alegria o universo inteiro.

Hoje em dia, porém, na alvorada da Era Atômica, entrou essa verdade em uma nova fase de significa¬ção; ultrapassou as fronteiras da beleza poética e invadiu os domínios da ciência física e da verdade metafísica.

Sabemos, em nossos dias, que a luz cósmica, não focalizada — o “c” da conhecida fórmula einsteiniana, E = mc2 — é a base e, por assim dizer, a matéria-prima de todas as coisas do mundo material e astral. Os 92 elementos da química, desde o mais simples ou Hidrogênio) até ao mais complexo ou Urânio), são filhos da luz invisível, a qual quando condensada em diversos graus, produz os elementos, e destes são feitas todas as coisas do mundo.

Quer dizer que, no plano físico, a luz é a causa e origem de todas as matérias e forças do universo.

Ora, o que a luz é no plano físico, isto é Deus na ordem metafísica ou espiritual do cosmos. A luz física é o grande símbolo desse simbolizado metafísico.

Deus, segundo Aristóteles, é actuspurus(pura atividade); nele não há passividade, ou, no dizer de João Evangelista, “Deus é luz, e nele não há trevas”.

Ora, afirma o divino Mestre que ele é a luz do mundo, e que também seus discípulos são a luz do mundo — quer dizer que a essência de Deus está nele e neles.

A luz é a única coisa incapaz de ser contaminada, porque a sua vibração é máxima, que não é afetada por nenhuma vibração inferior.

Todas as coisas do mundo são lucigênitas, e sua íntima essencia é luz ou lucidez. E tanto mais incontaminável é uma coisa quanto mais lúcida.

A afirmação de que os discípulos do Cristo são luz, a mesma luz divina do Cristo, é um veemente convite, quase um desafio, para a completa lucificaçào da existência humana pela essência divina. A mente do homem é como que um invólucro semitranslúcido, e o corpo um invólucro totalmente opaco; no interior desses invólucros, porém, está a luz integral da divindade, que se individualizou no homem como seu Eu central.

Toda a tarefa da espiritualização do homem consiste em que ele faça a sua existência humana tão pura e luminosa como a sua essência divina —que essencialize toda a sua existencia.

A lucidez ou luminosidade consiste na intensi¬dade da nossa consciência divina. No plano da ideologia dualista, em que se move quase toda a teologia e filosofia do ocidente cristão, é difícil o homem convencer-se definitivamente de que a íntima essência do seu próprio ser seja idêntica à essência divina.

A verdade, porém, é esta: o homem não está separado de Deus, como não é idêntico a Deus, mas é distinto de Deus. Esse “ser distinto”, é por assim dizer, equidistante do “ser separado” e do “ser idên¬tico”, equidistante do dualismo transcendentista e do panteismo imanentista. Esse “ser distinto” de Deus, baseado no “ser idêntico” pela essência e no “ser diferente” pela existência faculta ao homem a divini¬zação da sua vida, sem o levar ao absurdo da dei¬ficação, garantindo-lhe assim, a responsabilidade ética dos seus atos conscientes e livres. Se o homem é moralmente bom, virtuoso, não é Deus que é bom nele, mas ele mesmo; se o homem é moralmente mau, pecador, não é Deus que é mau nele, mas éo homem. Quem pratica virtude ou comete pecado é o homem existencial, e não o homem essencial, é o elemento humano nele e não o elemento divino.

*

Diz, pois, o divino Mestre:

“Vós sois a luz do mundo... Não pode permanecer oculta uma cidade edificada sobre um monte; nem se acende uma lampada e se põe debaixo do alqueire, mas sim sobre o candelabro para que alumie a todos os que estão na casa. Assim brilhe a vossa luz perante os homens para que vejam as vossas boas obras —e glorifiquem a vosso Pai que está nos céus.

O homem realmente cristificado não deve o cultar-se debaixo do alqueire do anonimato, mas brilhar no candelabro da mais larga publicidade —deve ser até como uma cidade ou um farol no alto de um monte, para que o mundo inteiro veja os fulgores dessa luz e por ela oriente a sua vida.

A comparação, tanto com o candelabro como com o monte, diz visibilidade, publicidade, porque o arauto do reino de Deus não é um “ocultista”, mas sim um emissário da luz cósmica, ele mesmo é a “luz do mundo”, que é expansiva por sua própria natureza.

É opinião assaz comum entre os inexperientes que o homem espiritual deva evitar a publicidade e procurar o mais possível a obscuridade da solidão e do anonimato, a fim de não perder a sua sacralidade e cair vítima da profanidade. E, de fato, essa solidão e esse anonimato são necessários, embora num sen¬tido diferente daquele que os profanos supõem.

O ego físico-mental do homem comum deve desaparecer no anonimato, e o seu Eu divino deve viver em profunda solidão. O homem espiritual deve ser profundamente solitário com Deus, para que possa ser vastamente solidário com todas as creaturas de Deus: assim não há perigo de profanação.

Ai daquele que perder a sua silenciosa sacrali¬dade em Deus! De nada lhe servirá a sua ruidosa sociabilidade com os homens e o mundo. A profana sociedade tem de ser fecundada pela mística sacrali¬dade para que resulte em fecunda solidariedade.

Em suas relações com Deus é todo homem profundamente só e solitário; ninguém o pode acom¬panhar a essas alturas e profundezas, envoltas em eterno silêncio. Ninguém poderá saber jamais o que se passou entre a alma e Deus, nas silenciosas alturas do Himalaia ou na taciturna vastidão do Saara onde se dá esse encontro entre Deus e a alma humana. A experiência mística se dá para além das barreiras do tempo e do espaço, no anonimato do “terceiro céu”, e por isso é essencialmente intransferível e incomunicável; o que é dito à alma, nessa luminosa escuridão, são “ditos indizíveis”.

Essa solidão vertical é necessária e não pode jamais ser substituida pela sociedade horizontal. Esse santuário íntimo do homem é indevassável; nem as relações mais íntimas, de pai a filho, de mãe e filha, de esposo a esposa, de amigo a amigo, podem desvendar esse mistério. Onde não existe e persiste essa solidão cósmica, esse profundo silêncio metafísico , esse indevassável anonimato místico entre a alma e Deus, toda a publicidade é um perigo e uma profanação, é uma apostasia e uma infidelidade cometida contra a sacralidade do Eu divino. O homem que não possua suficiente fidelidade a seu Eu divino não deve arriscar-se à publicidade; não deve colocar-se no alto do candelabro ou no cume do monte; é preferível que fique debaixo do alqueire ou no fundo do vale, onde não há perigo de quedas catastróficas. Quanto mais alto o homem está, mais profundamente poderá cair , se essa altura lhe der vertigens.

O perigo da vertigem vem da ilusão de que essa sublime posição seja obra do seu ego personal, vem do erro fatal de que a pessoa humana tenha creado essa glória no alto do candelabro ou no cume do monte.

Duas vezes, diz um grande iniciado oriental, Brahman se sorri do homem, da primeira vez quando o homem afirma: “Eu faço isto, eu faço aquilo”, e da segunda vez quando o homem diz: “Eu vou morrer.

Ambas às vezes o homem confunde o seu verdadeiro Eu com o seu pseudo-eu. Quando o homem pensa que é ele — seu ego personal — que fez isto ou aquilo, e não o “pai dos céus” — o seu Eu divino; quando o homem pensa que o seu eterno e imortal Eu divino vai morrer — então se revela totalmente analfabeto no conhecimento de si mesmo.

Onde há ilusão há possibilidade de queda. Só quando a totalidade da ilusão cedeu à totalidade da verdade é que há segurança absoluta.

Tem-se dito que a experiência mística torna o homem orgulhoso e desprezador de seus semelhantes, os “profanos” lá embaixo. Quem assim pensa e fala não sabe o que quer dizer experiência mística. Esse orgulho é possível no caso da pseudomística, quando o homem atribui a sua espiritualidade ao mérito de seu ego personal, ignorando que “todo o dom perfeito vem de cima, do Pai das luzes”, e que a iluminação espiritual é obra da graça divina. Mas, ninguém pode orgulhar-se daquilo que é de Deus, só se pode envaidecer de algo que seja do seu ego.

Um jovem ocultista britânico perguntou a um grande místico da Índia se achava que ele, o ocultista, poderia, um dia, chegar a fazer as “obras de poder”, chamadas “milagres”, que Jesus fazia; ao que o iniciado lhe respondeu calmamente: “Pode, sim, contanto que você não creia que é você que fez essas obras.”

Quem atribui a seu pequeno ego humano qualquer obra espiritual está no erro; o erro gera o orgulho, e o orgulho prepara a queda. Mas quem compreendeu definitivamente que nenhum efeito espiritual pode provir de uma causa material ou mental, esse está na verdade, e a verdade o libertará de qualquer ilusão e perigo de queda.

Quando Jesus diz a seus discípulos que devem colocar a sua luz no candelabro ou no alto do monte supõe ele que esses homens possam ultrapassar o estágio da Ilusão sobre si mesmos e adquirir plena clareza e certeza sobre a causa real de todos os efeitos espirituais.

Neste sentido, acrescenta ele: “assim brilhe a Vossa luz perante os homens para que vejam as Vossas boas obras e glorifiquem a VOSSO Pai que está nos céus” — que vejam os efeitos visíveis e glorifiquem a causa invisível O ego humano, sendo apenas uma função do Eu divino, nada fez por si mesmo, assim Como uma ferramenta não produz nada se não for usada pelo homem.

Não existe, no mundo físico, nenhum elemento incontaminável exceto a luz. Todas as outras coisas aceitam impureza. Quando, por exemplo lavamos com água pura um objeto impuro, a água se torna impura na mesma razão em que purifica o objeto impuro; não pode neutralizar senão apenas transferir para si as impurezas do Outro. A água é sumamente contaminável, ou “vulnerável” Só a luz é incontaminável invulnerável; pode penetrar em todas as impurezas do mundo sem se tornar impura.

É esta, sem dúvida a mais pura glória do homem crístíco, poder ser puro no meio dos impuros e das impurezas em derredor; purificar as impurezas sem se contaminar com essas impurezas É o máximo de invulnerabilidade.

Essa invulnerabilidade interior é pureza, pureza de coração.

Essa pureza da invulnerabilidade nasce Unica¬mente da experiência clara e nítida da verdadeira natureza humana, que é essencialmente divina, e, como Deus é puro e invulnerável, deve também a essência divina do homem participar dessa pureza e invulnerabilidade.

A impureza consiste na ilusão de que o pequeno ego humano realize coisas espirituais e possa produzir a redenção do homem, como pensava aquele ego luciférico que tentou ao Cristo, no deserto. Egoísmo é impureza, e tanto mais vulnerável é o homem quanto mais impuro, e tanto menos vulnerável quanto mais puro de coração.

Essa pureza do coração nasce do conhecimento da verdade, ao passo que a impureza nasce da ilusão.

Nenhum homem purificado pelo conhecimento da verdade sobre si mesmo se orgulha da sua espi¬ritualidade, mas agradece humildemente a Deus por essa dádiva, porque sabe que não foi ele, seu ego físico-mental, que produziu esse efeito, mas que foi a graça de Deus.

Nenhum homem purificado pelo conhecimento da verdade sobre si mesmo se sente ofendido por atos, palavras ou opiniões injustas dos outros, porque sabe que essas ofensas não atingem o seu verdadeiro Eu divino, senão apenas o seu falso eu humano. Sabe que nenhum mal que outros lhe fazem lhe faz mal, porque não o faz mau.

Se alguém ofende o paletó ou a blusa que visto, não ofende a mim, porque eu não sou o paletó nem a blusa; isto é meu, mas não sou eu; é algo que eu tenho, mas não o que eu sou. Da mesma forma, quem ofende o ego da minha persona — que quer dizer “mascara” não ofende a mim, porque eu não sou essa máscara da personalidade. Eu sou a minha divina individualidade, que é absolutamente invul¬nerável pelo lado de fora, pelas adversidades da natureza ou pelas perversidades dos homens! Quem me pode ofender é só aquele que está do lado de dentro, isto é, o meu ego humano. Quem vulnera o Eu é o ego; quem peca Contra a divina individualidade do Eu é a humana personalidade do ego —Lúcifer versus Lógos!

Esta luz divina que em mim está deve ser colo¬cada no candelabro Como uma lâmpada, no alto do monte como um farol. Quem é remido do seu falso eu pode ajudar outros para se redimirem também. Por isso, deve ele fazer brilhar a sua luz, porque essa luz é a luz de Deus que brilha através do homem, como através de um límpido cristal, no caso que o homem renuncie à opacidade do seu egoísmo e aceite a transparência do amor.

*

O homem profano é impuro no meio dos impuros. O homem místico é puro longe dos impuros.

O homem crístico é puro no meio dos impuros, assim como a luz é pura no meio das impurezas.

O impuro no meio dos impuros é, geralmente, ruidosamente social.

O puro longe dos impuros é silencíosamente Solitário.

O puro no meio dos impuros é serenamente solidário.

Por via de regra, para que o homem possa ser serenamente solidário com toda a humanidade, solidamente crístico, é necessário que tenha passado pelo estágio da solidão silenciosa, profundamente mística, longe da sociedade dos impuros, ruidosamente profanos. E nesse período da mística solitária que o homem lança os alicerces inabaláveis para o seu edifício crístico de solidariedade universal. Uma vez que o homem ultrapassou certa fronteira interna de experiência de Deus em si mesmo, está definitivamen¬te imunizado contra as velhas enfermidades do ho¬mem profano — cobiça, luxúria, vanglória, egoísmo, desejo de aplausos e admiração, expectativa de resul-tados palpáveis, medo de castigo ou esperança de prêmio — de todas essas doenças convalesceu para sempre o homem que chegou ao conhecimento da verdade sobre si mesmo, seu verdadeiro Eu divino, e não mais corre perigo de recair nessas misérias, por¬que a verdade o libertou de toda a ilusão e escravidão. Ele é livre e puro como a luz.

Mas, também, é suave e benévolo como a luz solar, em pleno dia, e não violento e destruidor como a veemência de um raio em plena noite.

Só depois que o homem aprendeu por experi¬ência íntima, no silencioso abismo da mística, o que é Deus e o que é ele mesmo, é que ele pode atrever-se a ser de todas as creaturas de Deus sem deixar de ser de Deus, pode andar por todos os mundos de Deus sem deixar de ser do Deus do mundo.

Ai do homem que quiser ser solidário com os homens antes de ser solitário com Deus!

Ai do homem que se derramar pelas ruidosas periferias das creaturas antes de estar firmemente alicerçado no silencioso centro do Creador!

Nenhum homem pode ser, por fora, de todas as creaturas de Deus sem que seja, por dentro, só de Deus.

Nenhum homem pode ser plenamente crístico sem que seja profundamente místico.

Só o contato direto com o Infinito é que torna o homem invulnerável no meio dos finitos.

E essa invulnerabilidade crística nada tem de lúgubre, de pessimista, de negativo, de triste — ela é toda leve e luminosa,amável e sorridente como sua irmã gêmea, no mundo físico, a luz, que ésuavemente poderosa e poderosamente suave.

Pela mística solidão com Deus adquire a alma uma espécie de castidade, de intensa virgindade espiritual, que, depois, na Crística solidariedade com os homens, se revela em fecunda maternidade, mãe de numerosos filhos de Deus. Essas núpcias espirituais da alma crÍstica supÕem a pura virgindade da alma mística.

No início de toda a vida nova está o sentimento natural do pudor. A vida é um mistério tão sagrado que a sua transmissão deve ser velada em profunda escuridão, oculta pelo véu invisível do pudor, tanto no plano biológico como no plano espiritual da humanidade. A experiência mística é uma concepção espiritual, que deve ser velada em mistério. É que se passa, na solidão anônima, entre uma alma e Deus nunca ninguém o saberá, nem deve saber; está envolto em impenetrável pudor; só as conseqüências desse encontro místico da alma com Deus é que podem ser reveladas, na vida diária do homem cristificado.

A vida do homem cósmico é pura como a luz, na sua solidão mística — e é fecunda como a luz, na sua solidariedade crística...

“Vós sois a luz do mundo”...

“Brilhe diante dos homens a vossa luz!”...

10

“Contemplai os Lírios do Campo Como Crescem...”

Do meio da trepidante lufa-lufa dos esfalfantes cuidados do homem egoísta e sempre inquieto pelo dia de amanhã, chama o divino Mestre a atenção de seus discípulos para a serena quietude e beleza da natureza em derredor. E sua profunda filosofia espiritual atinge as excelsitudes de uma fascinante poesia mística.

“Contemplai as aves do céu! Não semeiam nem ceifam nem recolhem em celeiros — vosso Pai dos céus é que lhes dá de comer... Quem de vós pode, com todos os seus cuidados, prolongar a sua vida por um palmo sequer? Contemplai os lírios do campo como crescem! Não trabalham nem fiam, e, no entanto, digo-vos eu que nem Salomão, em toda a sua glória, se vestiu jamais como um deles. Se, pois, Deus veste assim a erva do campo, quanto mais a vós, homens de pouca fé. Buscai, pois, em primeiro lugar, o reino de Deus e sua justiça — e todas as outras coisas vos serão dadas de acréscimo!”

Existe uma profunda afinidade entre o homem espiritual e a natureza.

Entre o subconsciente desta e o superconsciente daquele.

A natureza está em perfeita harmonia com o Creador, embora essa harmonia seja automática, instintiva, por falta de um ego consciente. Ora, o que a natureza possui desde o início, por obra e mercê de Deus, isto pode e deve o homem conseguir por iniciativa própria, estabelecendo entre si e Deus uma paz e harmonia consciente ou superconsciente.

Para que, pois, todos esses cuidados supérfluos, engendrados pelo ego consciente do intelecto, da personalidade?

Quando o ego consciente se opôs ao Eu super-consciente — que é o Deus oniconsciente no homem — a natureza subconsciente declarou guerra ao homem. E até hoje o homem profano está entre dois fogos, hostilizando o mundo divino acima dele e o mundo natural abaixo dele. Nem fará as pazes com este enquanto não fizer o tratado de paz com aquele.

Mas o homem espiritual, em harmonia com o Deus do mundo, entra na grande harmonia com o mundo de Deus. E então contemplará ele as aves do céu e os lírios do campo, arautos de Deus e veículos duma grande paz divina.

Enquanto o homem hostiliza a Deus é ele hostilizado pela natureza, que lhe nega até o necessário para a vida, e o homem tem de lutar a fim de ganhar o seu “pão, no suor do seu rosto”, porque a terra se lhe cobriu de “espinhos e abrolhos”. Quando, porém, o homem fizer as pazes definitivas com o Deus do mundo, então o mundo de Deus fará as pazes com o homem e lhe oferecerá, gratuitamente, tudo de que ele necessitar para uma vida dignamente humana.

“A vida é luta renhida, Viver é lutar”...

Estas palavras do poeta são do homem ainda profano, que, de fato, tem de lutar duramente para poder viver, porque a sua vida está em permanente Conflito com as fontes da subsistência, e, além disso o seu ego personal deseja possuir o supérfluo, em vez de se contentar com o necessário e suficiente porque não crê nos tesouros do reino de Deus, procura acumular enormes quantidades dos pseudotesouros deste mundo.

“Nem Salomão se vestiu jamais como um deles... Estava o Nazareno sentado à beira de um cami¬nho, onde floriam numerosos lírios vermelhos como púrpura, muito comuns na Palestina, e o divino poeta cósmico, apontando para esse grupo de filhas gentis da Flora, fez ver a seus ouvintes que a inteligência humana, com toda a sua Ciência e técnica, é incapaz de produzir um tecido tão perfeito e delicado como a inteligência divina produz, todos os dias, em grande quantidade, nos domínios da natureza, onde impera o espírito do Creador.

A pequena inteligência humana produz certos artefatos que, quando vistos à distância, parecem, sofrívelmente belos; mas, quando examinados pela objetiva de um microscópio, se revelam grosseira obra de fancaria, sem arte nem delicadeza. Na natureza, porém, acontece precisamente o contrário: quanto mais poderoso for o microscópio, tanto mais estupenda se revela a perfeição de um tecido orgânico; qualquer célula de planta, qualquer asa de mosquito, qualquer teia de aranha é uma obra de arte perfeitíssima nos seus menores detalhes que nenhuma inteligência humana jamais conseguirá produzir algo semelhante. É que na natureza subconsciente opera direta-mente a grande Inteligência Cósmica da Divindade, ao passo que no consciente humano opera apenas a pequena inteligência telúrica.

A natureza, reflexo direto do espírito divino, não revela vestígio de cuidados, de afobação, de nervosismo’ não visa determinados resultados, mas procura realizar com a máxima perfeição cada uma das suas obras, sem se interessar pelas conseqüências, sem esperar louvores nem recear censuras. Em nossas selvas tropicais desabrocham, cada dia, milhões e miríades de flores, prodígios de formas e cores —e morrem pouco depois, para serem substituídas por outras maravilhas, sempre novas e louçãs, através de milhões de séculos e milenios.

Quem é que as vê? Quem as admira? Quem as aplaude?

Ninguém!

As maravilhas da natureza não nascem para serem elogiadas; não são belas para serem vistas — mas por causa da própria beleza. Toda a sua razão de ser é intrínseca, não tem finalidade extrínseca.

Se os lírios das nossas várzeas e as orquídeas das nossas vitrinas pudessem ouvir certas banalidades estéticas que algum admirador humano profira diante delas, sentir-se-iam ofendidas e revoltadas...

Como se elas fossem belas para serem admiradas!

Como se elas se revestissem de louçanias por algum motivo externo, diferente dessa própria louçania!

Quando o homem produz alguma obra de arte, ou uma peça de mobilia, essa obra é, em geral, sofrívelmente acabada nas faces visíveis ao observador, mas na face invisível —como num armário encostado na parede — há sarrafos brutos, porque o móvel é destinado a ser visto...

As filhas da natureza, porém, ignoram semelhante camuflagem e hipocrisia; são integralmente perfei¬tas e belas, pela frente e por detrás, à direita e àesquerda, em cima e embaixo, por fora e por dentro, no visível e no invisível, no conjunto harmônico de formas e cores e em cada um dos seus mais pequeninos pormenores, em cada célula, molécula e átomo...

Quando o homem ultrapassa a zona da sua inteligência egoísta e interesseira e entra no universo do seu espírito cósmico e desinteressado, então realiza ele, conscientemente, o que a natureza fez incons¬cientemente

Não necessita de rótulos externos e elogios de terceiros quem traz dentro de si mesmo a suprema apologia dos seus atos.

Não espera louvores nem teme censuras quem de elogios e Vitupérios não tem mister...

O testemunho da consciência pura e desinteres¬sada é suficiente para o homem crístico; que realiza com amor e entusiasmo, as tarefas que tem de realizar, sem esperar por resultados palpáveis.

Contemplai as aves do céu...

Contemplai os lírios do campo...

Buscai, em primeiro lugar, o reino de Deus...

*

Estranhas parecem, a muitos, as palavras “e todas as outras coisas vos serão dadas de acréscimo”.

Essas “outras coisas” são as coisas necessárias para a vida material.

O homem profano tem de dar caça incessante a essas “outras coisas”, lutar por elas, dia e noite - por quê?

Porque não buscou ainda, devidamente, o reino de Deus e sua verdade.

Vigora, entre o homem profano e a natureza, uma espécie de “magnetismo de repulsão”; mas, entre o homem espiritual e a natureza, há um “magnetismo de atração”. Quanto mais o homem profano se esforça por se apoderar das coisas do mundo objeti¬vo, tanto mais essas coisas fogem dele, repelidas por um pólo invisível nele existente; não adianta redo¬brar de esforços, porque, com esse redobramento, redobra também o magnetismo repulsivo, e o homem ambicioso tem de aumentar as suas lutas numa progressão geométrica, para arrancar à natureza rebelde mais algum dos cobiçados farrapos. O remé¬dio está em mudar o “prefixo”, em desistir da desenfreada lufa-lufa das coisas externas e devotar-se totalmente à realização das coisas internas, que o divino Mestre chama “o reino de Deus e sua justiça” — e o homem verá, com jubilosa surpresa, que, depois de mudado o “prefixo” de atitude interesseira para a atitude desinteressada, todas aquelas coisas que antes fugiam começam a correr atrás dele. E que o misterioso teotropismo de todas as coisas adivinha no homem espiritual um “irmão mais velho” e um guia seguro para o centro comum, origem e fim de todas as creaturas, e querem com ele chegar a Deus. A antipatia de ontem se transformou na simpatia de hoje.

Esse homem não necessita mais de lutar pelas coisas necessárias, porque a natureza, amiga e aliada, lhe abre o tesouro das suas forças secretas e lhe fornece, espontânea e jubilosamente, todas as coisas de que ele tem mister, a fim de poder dedicar o melhor do seu tempo e das suas energias à causa magna do reino de Deus e sua justiça.

E, pela primeira vez, verifica o homem que o Evangelho de Jesus Cristo não é apenas um caminho seguro para o reino de Deus que não é deste mundo mas, também, uma norma segura para a obtenção de todas as outras coisas necessárias para uma vida dignamente humana aqui na terra.

11

“Vós Sois o Sal da Terra...”

O sal, como é sabido, tem diversas aplicações na vida humana. Serve para preservar da corrupção as substâncias alimentí¬cias; serve, também, para dar sabor aos alimentos; com um pouco de sal, a comida se torna saborosa, com muito sal se torna intragável. Há pessoas que, por excesso de espiritualidade, tornam a vida espiri¬tual antipática e impossível; se a sua atuação fosse mais comedida, tornariam a vida agradável e saborosa.

“Mas, se o sal se desvirtuar? — prossegue o divino Mestre — com que se há de restituir-lhe a virtude? Não serve mais para nada; é lançado fora e pisado aos pés pela gente.”

Aqui temos um paralelo entre o símbolo do sal material e o simbolizado do sal espiritual. Afirma o Mestre que seus discípulos devem ser no mundo espiritual o que o sal é no mundo material: fatores de preservação moral e de sabor espiritual.

Mas, como ninguém dá o que não tem, e ninguém tem realmente senão aquilo que ele é, segue-se que o discípulo do Cristo deve ser, firme e abundantemente, aquilo que quer dar aos outros. A importância do ser, é decisiva para o fazer e o dizer.

Verdade é que os insipientes entendem que o efeito dos seus trabalhos dependa daquilo que eles fazem e dizem — dos recursos materiais que põem numa obra, do prestígio político e social que os bafeja, da facúndia com que sabem falar, da erudição ou dos diplomas que possam ostentar, etc.

É absolutamente impossível fazer prosperar, em caráter real e definitivo, algum empreendimento espiritual que esteja baseado em qualquer espécie de egoísmo ou desonestidade, mesmo que esse egoísmo navegue sob a bandeira do altruísmo. Existe uma Constituição Cósmica que tudo rege e governa, quer o homem saiba quer ignore esse fato. E essa Constituição é uma força onipresente, onipotente e onisciente; diante dela nada é secreto nem oculto. Por mais jeitosamente que o homem oculte o seu secreto egoísmo, a sua autocomplacência e vanglória, os seus interesses e suas ambições — é inútil! Aos olhos da lei eterna tudo é manifesto, e ela não coopera com nenhuma espécie de egoísmo. A sapi¬ência divina do Universo favorece tudo que sintoniza com ela, e desfavorece tudo que está em conflito com ela.

Se o íntimo “ser” do homem não é puro, sincero, divino, crístico, nenhum recurso externo pode garantir a permanente prosperidade das suas obras. É claro que pode haver vitórias iniciais, triunfos aparentes, prosperidade de fogo de palha, como o dinheiro e a política podem garantir; mas é matematicamente certo que não haverá durabilidade e solidez nesse empreendimento; se assim não fosse, as próprias leis eternas pactuariam com a fraude, as mentiras e deslealdades — e o cosmos cometeria suicídio, acabando em caos.

Pode o homem enganar a todos e a seu próprio ego — jamais poderá enganar a onisciência das leis cósmicas, que são o próprio espírito de Deus.

Por isso, é suprema sapiência Sintonizar o seu querer individual com o querer universal —e é insipiência fazer o contrário.

Ser bom é, em última análise, o único modo certo para fazer bem.

Ser sal incorrupto é o único meio para preservar os outros da corrupção.

Saborear intimamente as coisas espirituais é o caminho único para tornar saborosa a espiritualidade, para si e para os outros...

“Vós sois o sal da terra... Mas, se o sal se desvirtuar...

12

“Não Jureis de Forma Alguma!”

“Seja o vosso modo de falar um simples sim, um simples não — o que passa daí vem do mal.”

Quão profunda sabedoria em tão poucas palavras!

Aprendi no Catecismo que não se deve jurar falso nem em vão; mas que o juramento sério e verdadeiro é bom e pode até ser necessário. Tenho em meu poder uma Bíblia, publicada com a devida aprovação eclesiástica, que, depois das palavras “não jureis de forma alguma”, acrescenta em parênteses as seguintes palavras restritivas, do tradutor: “se não for necessário”, inutilizando assim a proibição categórica do Cristo e adulterando o Evangelho pela teologia.

Tudo que passa de um simples sim e de um simples não vem do mal, inclusive o juramento, tanto falso como verdadeiro, porque ele nunca é necessá¬rio. Em última análise, todo e qualquer juramento provém do mal, porque supõe algo mau. O juramento foi introduzido na vida social da humanidade por causa da desconfiança e inconfidência que, em geral, reinam entre os homens. Uns mentem aos outros. E, quando alguém fala a verdade, ninguém acredita, de tão geral que é o hábito de mentir. Por isso no intuito de corroborar a verdade de uma afirmação, exigem os homens, que ela seja consolidada por meio dum ju¬ramento. Quem jura invoca a Deus por testemunha, da verdade do que afirma , e, se a sua afirmação não representa a verdade, mas uma inverdade consciente, então invoca a Deus como testemunha da mentira, o que é uma blasfêmia, chamada “perjúrio”.

É verdade que o juramento oferece maior garan¬tia da verdade do que um simples sim ou não?

Absolutamente não!

Quem é capaz de mentir é capaz, também, de jurar falso. E quem não pode confiar em uma afirma¬ção simples como expressão da verdade, esse, tam¬bém, não pode confiar em uma afirmação juramentada.

O divino Mestre não está interessado em curar sintomas de doença, mas sim, a própria doença. A praxe de jurar é sintoma de um mal profundo, que é o hábito de desrespeitar a verdade. Quem reprime sintomas é charlatão — quem cura a raiz do mal émédico.

O caráter do Evangelho não é simplesmente corretivo, mas sim preventivo. Se a humanidade se habituasse a nunca mentir, nunca ninguém sentiria a necessidade de jurar, porque um simples sim ou um simples não dariam certeza absoluta.

O comerciante mente sobre o valor e os preços das mercadorias, a fim de acumular matéria morta.

A dona da casa manda a empregada mentir que a patroa não está em casa, para não receber visitas indesejáveis.

O político, o advogado, o diplomata mentem para prestigiar ou desprestigiar uma causa ou uma pessoa.

O estudante mente “colando” uma prova do vizinho em vez de estudar o assunto.

Até a criança mente para não ser castigada. Omnis homo mendax— afirma a Sagrada Escri¬tura — todo homem é mendaz.

Por isso , com o fito de fazerem crer aos outros que o que dizem é verdade, julgam os homens necessário jurar, invocando a Deus por testemunha.

O juramento é prole legítima da mendacidade — e como poderia ser puro o filho, se tão impura é a mãe?...

O verdadeiro discípulo do Cristo fez consigo esse pacto sacrossanto, de nunca faltar à verdade, por maiores que sejam as vantagens que a inverdade lhe dê, ou as desvantagens que lhe advenham do culto à verdade.

Quase 100% da nossa publicidade comercial, pela imprensa, pelo rádio, pela televisão, pelos cartazes, são mentira a serviço da cobiça. A alma da arte publicitária consiste em fazer crer ao homem que ele necessita de uma coisa que ele apenas deseja; e, quando ele identifica o seu desejo artificial com uma necessidade natural, então é dócil freguês e compra tudo de que julga necessitar. Torna-se freguês e enriquece os cofres dos publicitários e vendedores, graças a uma série de mentiras que ele aceitou como verdades.

Quem lê ou ouve diariamente esse dilúvio de mentiras veiculadas pelos citados canais de publicidade, dificilmente atingirá um grau de verdadeira pureza, necessária para a sua realização em Cristo. A nossa decantada civilização, quase inteiramente baseada na mentira e na ganância, é o maior impedimento para a auto-realização. Quem se expõe diariamente a esse impacto de profanidade e se identifica, aos poucos, com esse ambiente, não deve estranhar a sua falta de espiritualidade e paz interior. Quem não quer os meios não quer o fim

Mahatma Gandhi foi, durante toda a sua vida, após a conversão ao mundo de Deus, o grande cultor da verdade incondicional, mesmo à custa dos maiores sacrificios. Sabia ele que a verdade, e só ela, é que é libertadora.

A verdadeira felicidade não medra senão em um clima da veracidade absoluta e incondicional. Os sofrimentos que o culto inexorável da verdade acarreta, não raro, a seus fiéis discípulos, são necessários para que a verdade possa prosperar — assim como o adubo é necessário para a planta poder medrar devidamente.

Sendo que Deus é a própria Verdade, tanto mais divino é o homem quanto mais intransigente cultor da Verdade.

O verdadeiro discípulo do Cristo não pode reduzir-se à condição de ser um passivo refletor da opinião pública e dos vícios sociais, como se fosse um simples espelho — tem a missão sagrada de ser um diretor e orientador de seus semelhantes rumo à grande libertação, rumo às alturas do reino de Deus...

NOSLEN OLEBAR e HUBERTO ROHDEN
Enviado por NOSLEN OLEBAR em 26/04/2014
Código do texto: T4784317
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