Do Angola ao Djumbay: imprensa negra 06
a candidatura avulsa, porque com ela
qualquer movimento representativo de
setores sociais poderá eleger seus representantes”
A posição política do MNU/PE frente
a diferentes temas enche as páginas
do Negritude e sinaliza as temáticas em
debate. Desde sua fundação, em 1982, o
MNU-PE era uma importante referência
da negrada recifense. Às reuniões realizadas
sempre nas tardes de sábado no
centro da cidade (Diretório Central dos
Estudantes/DCE e Livraria Síntese),
compareciam mesmo os que não militavam,
a fim de se atualizarem e compor
a ‘agenda negra’. Assim, as temáticas do
jornal refletiam as demandas do MNU
e das pessoas e instituições voltadas ao
combate ao racismo no Recife.33 Com o
Negritude, o MNU/PE reforçou a posição
de enfrentamento do racismo, principalmente
no campo das ideias. Essa postura
foi mantida durante toda a trajetória do
jornal, a despeito de gerar a imagem de
um grupo distante da grande maioria negra
e pobre. Ao divulgar o relançamento
do Negritude em julho de 1993, assim se
33 Sobre as reuniões do MNU-PE nas tardes de
sábados no antigo DCE/UFPE como um contra-
-espaço negro ver: QUEIROZ, Martha Rosa F.
Onde cultura é política: Movimento Negro, afoxés e
maracatus no carnaval do Recife (1979-1995). Brasília,
Universidade de Brasília, 2010. Tese de
Doutorado (História). Conforme Muniz Sodré
(1988:141) “Igualmente coincidente é o fenômeno
de um ‘contra-espaço’ negro, ou seja, a idéia
de um território simbólico onde ex-escravos e
seus filhos se reúnem, ao abrigo das repressões,
das recriminações ou de olhares perturbadores.
O contra-espaço é um lugar de não-poder branco,
mas que admite o contato, o acerto, desde que não
implicasse alguma forma de poder direto sobre a
comunidade negra”.
expressou o jornal Djumbay:
(...) Tendo ficando dois anos fora de circulação,
o “Negritude” era dirigido especificamente
a militantes negros. Agora,
volta a ser veiculado com uma nova
proposta: atingir, também, a massa da
negra. Por isso, procura apresentar uma
linguagem mais fácil ao alcance dos leitores
em geral.34
O editorial do número 1 reafirma
o estilo MNU de escrever e sua posição
quanto ao mito da democracia racial,
quanto ao objetivo de ser um veículo de
toda a comunidade negra e da imprensa
negra, também como um laboratório
para formulação de discursos.
(...) Apesar de tantos esforços feitos, o
Negritude demorou muito tempo para
ser publicado. Esse fato vem comprovar
a situação de pobreza em que vive a
população, mesmo depois de quase cem
anos e uma falsa abolição da escravatura.
[...] É nesse contexto que o Movimento
Negro Unificado/PE lança para a comunidade
negra nosso primeiro boletim
informativo. Um meio de comunicação
que falará das nossas coisas, contará as
nossas histórias, divulgará nossos eventos
festivos e políticos. É com essa perspectiva
que surge Negritude, com toda
garra e disposto a estreitar cada vez mais
as relações entre os membros da comunidade
negra com os outros setores da
sociedade, no sentido de engajar cada
vez mais pessoas na luta contra o racismo.
Estamos na frente de batalha para
34 Djumbay, n° 10, jun/jul/93, p.2. Debate sobre as representações
acerca do MNU-PE em QUEIROZ,
2010.
Cad Pesq Cdhis v24_n2.indd 542 01/06/2012 14:27:17
Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.24, n.2, jul./dez. 2011 543
que um dia possamos viver em plena democracia
racial.35
A crítica à existência de harmonia
nas relações raciais, eixo do pensamento
Freyreano, foi uma constante no jornal,
não se admitindo o 13 de maio como
marco do fim do escravismo. Conforme a
matéria “13 de maio: dia da traição”:
(...) Nós do MNU não vemos qualquer
motivo para comemorações neste dia.
(...) O MNU foi buscar nos nossos antepassados
exemplos de luta contra a
escravidão e opressão. E foi nos Quilombos,
ao contrário do que continuam nos
“ensinando” os atuais senhores de engenho,
que encontramos a nossa referência
de luta36.
Se o 13 de maio representava o “dia
da traição” ou a “ falsa abolição”37, o 20 de
novembro sistematicamente era afirmado
como a data símbolo da resistência,
de acordo com o texto acima transcrito.
O Negritude, como os demais periódicos,
fazia um trabalho pedagógico ao buscar
divulgar personagens tidos como heróis
e heroínas da luta internacional contra
o racismo. No n05, edição especial de
maio/1988, a capa é dedicada a Zumbi e as
páginas centrais trazem matéria intitulada
“Heróis da resistência”, composta por pequenas
biografias de oito personalidades.
35 Negritude nº 1, ano I, out/nov/1986.
36 Matéria de capa do n.3. Maio\junho\julho de
1987.
37 Essa expressão aparece no editorial do n. 1 e em
outros trechos, também a palavra abolição vem
quase sempre entre aspas. A matéria de capa do n.
4, novembro\dezembro de 1987 é intitulada “somos
contra a falsa abolição”.
Tal qual os heróis negros, outros
conteúdos elencados no Negritude,
como já frisamos, compõem e alimentam
o universo discursivo e político do
movimento negro em geral. A África e
suas histórias nos chegavam mediante
convites para reuniões do Comitê
anti-Apartheid,38 referência a um ano
de morte de Samora Machel,39 visita
do bispo sul-africano Desmond Tutu
ao Recife40, matérias sobre a guerra na
Somália,41 o massacre em Shaperville,
África do Sul42, e outros. A matéria sobre
a guerra da Somália exemplifica a tônica
das referências ao continente africano.
Buscava-se ressaltar a importância da
ancestralidade africana ao mesmo tempo
em que se buscava combater a postura
dos meios de comunicação em associar a
África a mazelas em geral. No n06, a matéria
de Josafá Mota, militante do MNU/
PE, sintetiza esse pensamento:
Imprensa esta [imprensa ocidental]
que sempre esteve atenta para mostrar
esse lado negativo do continente africano,
sempre disposto a mostrar que é o
negro (no caso o governante) que mata
seus iguais e não mais os europeus, pois
já “não estão” mais nos países por eles
colonizados. Veja estas semelhanças: na
década de 60, quando se falava em fome,
logo apareciam cenas de Biafra; na década
de 70, foi a vez da Eritréia; na década
de 80, Moçambique e Etiópia; agora na
década de 90, é a vez da Somália. A te-
38 Negritude, nº 1, ano I, out/nov/1986.
39 Id., n° 2, fev/mar/abr/1987.
40 Id., n° 3, mai/jun/jul/1987.
41 Id., n°6, jul/ago/1993.
42 Id., n° 7, mar/abr/1994.
Cad Pesq Cdhis v24_n2.indd 543 01/06/2012 14:27:17
544 Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.24, n.2, jul./dez. 2011
levisão ocidental mostra os efeitos, mas,
maliciosa, esconde as causas que levaram
esses países a tamanha tragédia43.
Era, portanto, o Negritude um
propagador do pensamento do MNU-
-PE, em meio ao (quase) total silenciamento
da voz negra na imprensa
local. O Negritude, como enfatizou
o editorial do n0 6 “(...) não é apenas
o Boletim do MNU. Ele é de todos os
negros que estão irmanados na luta
por uma sociedade onde Racismo seja
coisa do passado”. Fato é que todos os
jornais refletem a postura política dos
seus promotores. O destaque para essa
postura no Negritude resulta do fato de
que a instituição que o promove concebe
o campo discursivo como lócus
privilegiado da construção e desmontagem
do mito da democracia racial e
de suas implicações nas relações raciais
no Brasil. A pauta do Negritude refletia
a agenda de atividades, temáticas e
análise conjuntural nas quais o MNU
estava envolvido.
Foi assim no acompanhamento
dos encontros de negros do Norte e Nordeste,
da articulação com as comunidades
remanescentes de quilombos, Conceição
das Crioulas; da atuação junto
ao Maracatu Leão Coroado; da participação
no Afoxé Alafin Oyó; dos eventos
nacionais do MNU, como o Seminário
Nacional de Planejamento realizado
em Olinda, em abril de 1989. A história
do próprio MNU também foi enfatiza-
43 Id., n°6, jul/ago/1993.
da, como parte da luta presente contra
o racismo. Nesse sentido, o jornal
publicou entrevista com os integrantes
da CEN – Comissão Executiva Nacional,
Marcos Pereira e Adelaide Mota,
ambos do MNU-PE;44 artigo “História
do MNU”;45 artigo “MNU – 15 anos:
análise e perspectivas”.46 A conjuntura
nacional e internacional estava sempre
na pauta, na perspectiva da articulação
com o racismo. Foi assim nas matérias
sobre a Assembleia Constituinte e “o
racismo na Nova República”47; a violência
policial cotidiana; o rap como
expressão da juventude e o carnaval.
Além dos temas conjunturais, a luta de
classe, a questão de gênero e outros temas
estavam presentes no Negritude.
As intervenções do MNU no carnaval
e sua relação com outras instituições
aparecem em diferentes edições,
bem como notas convidando
para eventos e matérias assinadas por
integrantes do MNU e das instituições
afins. Portanto, as páginas do Negritude
retratam muitas histórias do Movimento
Negro recifense. Não só por ser
o boletim de uma instituição de grande
referência na luta negra no Brasil e no
Recife, mas porque é possível traçar
uma análise das relações raciais sob a
óptica da comunidade afrorrecifense,
bem como as múltiplas respostas dadas
por essa comunidade ao racismo.
44 Id., n° 1, out/nov/1986.
45 Id., n° 1, out/nov/1986.
46 Id., n°6, jul/ago/1993.
47 Id., n° 1, out/nov/1986.
Cad Pesq Cdhis v24_n2.indd 544 01/06/2012 14:27:17
Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.24, n.2, jul./dez. 2011 545
NegrAção
NegrAção foi o boletim do Afoxé
Alafin Oyó, instituição fundada em 1986
na cidade de Olinda. O Alafin Oyó é o
quarto afoxé fundado em Pernambuco,
porém goza de um carinho todo especial
dentre os admiradores desse gênero musical.
Isso se deve ao fato de seus ensaios
serem realizados, desde a fundação, em
local de fácil acesso, na cidade de Olinda,
tornando-se um ponto de encontro festivo
da negrada da cidade. Foi assim por
muito tempo: ensaio de afoxé era o sinônimo
de ensaio do Alafin. Apesar de existir
hoje no Recife em torno de 30 Afoxés,
o Alafin Oyó ainda tem seu charme, apesar
de não ser o mais antigo em atuação.
O Boletim NegrAção destaca-se como
o primeiro boletim com oito páginas48 e
tamanho tablóide, uma das distinções do
projeto editorial, que inova também com
um expediente mais detalhado. O NegrAção
teve uma história editorial muito
semelhante ao Negritude, tendo em vista
que a Diretoria de Imprensa, responsável
pela edição do jornal, era composta
por três mulheres, das quais duas eram
militantes do MNU: Alzenide Simões e a
autora deste artigo. A outra era Márcia
Diniz, pessoa muito próxima ao MNU e
ex-integrante do Grupo de Teatro Abibimam.
Assim, similar à primeira fase
do Negritude, eram assinadas apenas
as matérias escritas por pessoas não integrantes
da diretoria de imprensa. No
expediente essa metodologia era explici-
48 Somente o n0 5 do Negritude teve 8 páginas.
tada: “as matérias assinadas são de responsabilidade
dos autores e as demais
da diretoria de imprensa.”49 Por meio do
NegrAção, é possível localizar trânsitos
de participação e alianças estabelecidas
pelo Movimento Negro, a exemplo das
integrantes da comissão de imprensa do
Alafin Oyó, que participaram da redação
dos dois boletins do MNU, o Negritude
e o Omnira; a colaboração da ETAPAS/
Equipe Técnica de Assessoria, Pesquisa
e Ação Social50 e das criações de Lepê
Correia51. Em outro texto, abordamos o
processo de circularidade horizontal52 vivenciada
no Movimento Negro recifense.
Essa circularidade de discursos garantiu
que desde os primeiros passos, o MN vivenciasse
a indissociabilidade entre ação
política e linguagens artísticas, daí um
grupo de afoxé (um dos pioneiros) priorizar
a edição de um jornal.
O conteúdo do NegrAção seguia o
roteiro do Movimento Negro: as revoltas
negras, análise conjuntural da situação
do negro no Brasil e no mundo, enfrentamento
do mito da democracia racial,
denúncias de casos de racismo, divulgação
de eventos do Alafin Oyó e outras
entidades, poesias, indicação de leituras,
49 NegrAção, n° 1, nov/dez/1988.
50 Organização Não-Governamental (ONG) de apoio
ao movimento popular.
51 Muitas das logomarcas utilizadas pelos movimentos
negros recifenses são de autoria de Lepê
Correia, a exemplo das logomarcas dos jornais
NegrAção e do Negritude.
52 Noção tomada de Rachel Soihet, que a construiu
sob a inspiração de Bakhtin, e que se refere ao
entrelaçamento de “elementos de grupos analogamente
situados na estrutura social”. SOIHET,
Rachel. A subversão pelo riso. Estudos sobre o carnaval
carioca, da Belle Époque ao tempo de Vargas.
Uberlândia: EDUFU, 2008, p.237.
Cad Pesq Cdhis v24_n2.indd 545 01/06/2012 14:27:17
546 Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.24, n.2, jul./dez. 2011
destaques para ações das mulheres, das
lideranças negras do passado e do presente.
A capa do 1º número do NegrAção
trouxe chamada para a matéria sobre
Zumbi dos Palmares intitulada “renasce
Zumbi”. O texto reforçava a tática discursiva
do Movimento Negro de (re)afirmar,
sistematicamente, a experiência quilombola,
e, em especial, a palmarina como
modelo de luta.53 A matéria encerra com
um trecho poético: “RENASCE ZUMBI,
desta luta nossa, deste povo teu, deste
universo fértil, desta sociedade racista.
RENASCE ZUMBI NA VOZ E NO
GESTO DE CADA QUILOMBOLA QUE
SOMOS”54. O debate entre o 13 de maio
e o 20 de novembro também se faz presente.
O editorial é elucidativo, ao fazer
a reflexão sobre a comemoração dos 100
anos da abolição. Para as redatoras do
NegrAção, o ano de 1988 se notabilizou
como um ano “marcado pela confirmação
do racismo brasileiro e [...] também
um ano de REFLEXÃO para a comunidade
negra organizada [...]”55
Essa polaridade vivenciada em
1988 se deve às críticas feitas pelo MN às
ações comemorativas do treze de maio,
entendendo que o rompimento com a
condição de subalternidade ainda não
tinha ocorrido para o negro brasileiro.
Ainda no editorial de lançamento, as re-
53 Sobre o lugar de Zumbi e da luta palmarina na
formação discursiva do MN, ver: SOUZA, Pedro
de. A boa nova da memória anunciada: o discurso
fundador da afirmação do negro no Brasil. In: ORLANDI,
Eni Puccinelli (Org.). Discurso fundador. A
formação do país e a construção da identidade nacional.
3. ed. Campinas,SP: Pontes, 2003, p. 60.
54 NegrAção, n° 1, nov/dez/1988.
55 Idem.
datoras expõem uma posição que foi praticamente
“majoritária dentre os movimentos
negros em 1988”:
(...) Nós recusamos a ouvir passivamente
o ‘axé para todo mundo axé’56, que representa
a tentativa, por parte dos meios
de comunicações burgueses, que sempre
estão a serviço da classe dominante, de
cooptação de nossos valores culturais e
respaldando as mentiras oficiais, como
no caso do 13 de maio57.
O lançamento do NegrAção é significativo
por vários motivos. Ele representa
a continuação de uma linha editorial,
por meio de um novo boletim, representando
outra entidade. Daí, algumas questões
foram explicitadas já na primeira
edição. Foi o caso da inclusão do preço de
venda na capa, da autoria do logotipo 58,
da definição da periodicidade bimensal,
embora não cumprida.
O NegrAção além de divulgar as
ações do próprio Afoxé, difundia reflexões
da editoria do jornal sobre alguns
temas específicos e tratava de temas diversos
articulados com a temática racial.
As abordagens vinham em forma de entrevistas,
matérias ou notas. Apesar de
não ter a questão de gênero como eixo, o
fato de o jornal ser formatado majoritariamente
por mulheres, leva-nos a compreender
o grande espaço dedicado ao
56 Jingle utilizado pela Rede Globo de Televisão
para comemorar os 100 anos da abolição.
57 NegrAção, n° 1, nov/dez/1988.
58 O Negritude só colocou o preço nos número 3, 4
e 5. O crédito do logotipo só aparece no número 5.
Como já frisado, as logos do Negritude e do NegrAção
são de autoria de Lepê Correia.
Cad Pesq Cdhis v24_n2.indd 546 01/06/2012 14:27:17
546