Do Angola ao Djumbay: imprensa negra 03
As pesquisas de Bastide, Ferrara e Moura, que abordam a imprensa negra paulista, buscam respostas para as seguintes questões, aqui organizadas emforma interrogativa: Quais os objetivos centrais que impulsionam a publicação? Qual a importância dada à educação na
ascensão social e/ou fortalecimento político? Quais os conteúdos tratados? Como se deu a regularidade e a longevidade? Como o jornal se mantém? Qual a formação educacional e financeira de seus editores?
E como tais publicações tratam as demais temáticas sociais? Sem desmerecernem escapar às questões dos autores acima que abordaram a imprensa negra paulista, Pinto (2006), que aborda a imprensa negra no século XIX a partir de jornais produzidos nas cidades do Rio de
Janeiro, Recife, São Paulo e Porto Alegre, e Souza (2006), que trata do Jornal do Movimento Negro Unificado e do Cadernos Negros, lançam outras questões. A]dissertação de Pinto visa a “apresentar um panorama dos jornais da imprensa negra no século XIX [... ] e a veiculação [nesses jornais] de fragmentos de representações forjadas por homens negros livres ou até mesmo libertos acerca de questões caras ao seu cotidiano”7. À Souza interessa compreender como os periódicos por ela analisados “(...) ilustram, de modo exemplar, as estratégias empreendidas pelos negros brasileiros para produzir e]divulgar um discurso identitário que almeja interferir na estrutura e no exercício do poder político-cultural.” (SOUZA, 2006:11).
As pesquisas de Bastide (1951:51-8), Ferrara (1986:23-87), Moura
7 Idem, p.XIII. (1988:204-217), Pinto (2006) e Souza (2006) revelam a diversidade da imprensa negra. Ao adotar essas pesquisas como referências, este artigo visa mapear a imprensa negra na cidade do Recife a partir da década de 1980, concebendo-a como uma prática discursiva,8 com páginas reveladoras de processos tecidos pela
militância negra, primordiais à construção de significados, percepções e representações acerca da identidade negra e da luta contra o racismo. Almeja-se contribuir para redução da lacuna de pesquisas sobre jornais negros no Nordeste brasileiro, área de estudo ainda pouco explorada.
Foram analisados cinco jornais publicados entre os anos de 1981 a 2007, de distintos formatos, representando diferentes tendências e diferenciados objetivos de atuação. São eles: Angola, do Centro de Cultura Afro-Brasileira; Negritude, do Movimento Negro Unificado de Pernambuco/MNU-PE; Omnira, do Grupo de Mulheres do MNU-PE; NegrAção, do Afoxé Alafin Oyó e Djumbay, da Djumbay - Organização pelo Desenvolvimento da Comunidade Negra.9
A intenção é olhar esses periódicos 8 Conforme Chartier: “práticas discursivas como produtoras de ordenamento, de afirmação de
distâncias, daí o reconhecimento das práticas de apropriação cultural como formas diferenciadas de interpretação”. CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, .28. 9 Durante a escrita do presente artigo, a escritora Inaldete Pinheiro de Andrade nos cedeu o número inaugural do Bate Livre, informativo cultural do Maracatu Nação Pernambuco, publicado em
fevereiro de 1996. Em outros textos, trataremos desse periódico. Cad Pesq Cdhis v24_n2.indd 533 01/06/2012 14:27:16 534 Cad. Pesq.Cdhis, Uberlândia, v.24, n.2, jul./dez. 2011 como um caleidoscópio que auxilie no exercício de observar e registrar a atuação do Movimento Negro/MN na cidade do Recife no citado período, percebendo linhas de atuações, temáticas, atividades, alianças, dificuldades, posicionamentos frente à conjuntura nacional e internacional e, principalmente, estratégias
empreendidas pela comunidade negra recifense no enfrentamento ao racismo.
Angola
No período aqui abordado, as duas últimas décadas do século XX, o primeiro jornal da “Imprensa Negra” foi o Angola, cujas particularidades que o envolvem são muitas. Quando a imprensa ainda não tinha se constituído na cidadecomo manifestação da militância negra como um todo, o jornal Angola já expressava um segmento especifico desta militância: a militância que tem como foco as questões vinculadas ao universo religioso de origem africana e afro-brasileira, daí o sub-título do jornal “nosso jornal de umbanda e candomblé”. Além da specificidade
da temática religiosa, o jornal apresentava algumas curiosidades. No expediente do número inaugural, em maio de 1981, o jornal era assim identificado: “Angola. Um boletim da Boca do Povo Serviços Ltda – Praça Coronel João Lapa, 94 - Varadouro Olinda- CEP 53.000 Conselho Editorial: Edvaldo Ramos e Jorge Morais.” No expediente da edição que foi às ruas nos meses de outubro e novembro de 198610, portanto cinco anos após a circulação do primeiro número, a “Boca do Povo Serviços Ltda” não foi citada. A seção era composta apenas pelos nomes dos editores responsáveis, Edvaldo Ramos e Jorge de Morais, e
trazia como endereço a Rua do Riachuelo, 105 - 10º andar - sala 1017, logradouro conhecido da comunidade negra por ser o escritório do Advogado Edvaldo Ramos até a presente data. É no expediente do
número 4, de abril de 1989, que o Angola aparece como “um informativo do Centro de Cultura Afro-Brasileira” (CCAB). O CCAB foi fundado como uma alternativa ao fechamento da Frente Negra Pernambucana. Assim se expressou um dos seus fundadores, José Vicente Lima, por ocasião do cinqüentenário do CCAB, co- 10 Essa edição não tem numeração. No período aqui abordado, as duas últimas décadas do século XX, o primeiro jornal da “Imprensa Negra” foi o Angola, cujas particularidades que o envolvem são muitas. Quando a imprensa ainda não tinha se constituído na cidade Angola nº 1. Recife, maio de 1981. Fonte: Acervo particular Martha rosa
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memorado em 198611 no Teatro de Santa
Isabel:
A Frente Negra Pernambucana, transformada
no Centro da Cultura Afro-Brasileiro,
se projetara juntos das outras
Associações co-irmãs de todo País. Se
não construímos patrimônios materiais,
construímos entretanto um patrimônio
muito maior, - Patrimônio Cultural
que legamos aos nossos sucessores. Ideal
que nos animou nesses 50 anos que
hoje aqui se comemora nesta brilhante
APOTEOSE.”12
Será, portanto, essa identificação que marcará o Angola: um boletim do CCAB, tendo Edvaldo Ramos e Jorge Morais como editores e a sala 1017 do Edifício Círculo Católico, situado na Rua do Riachuelo número 105, como referência geográfica. Mas o Angola não se resume
ao seu expediente, apesar desse falar muito do próprio Jornal e do Movimento Negro, pois, Edvaldo Ramos e Jorge Morais são pessoas que transitaram em quase todos os espaços sociais, sempre com a bandeira da luta contra o racismo, e o CCAB é a mais antiga entidade negra em
funcionamento naquela cidade. Jorge Morais era biomédico13 e participou das reuniões iniciais do Movimento Negro no Recife. Homem com vasto conheci- 11 Apesar de comemorar 50 anos em 1986, o CCAB
surgiu após o fechamento da Frente Negra Pernambucana, fundada em 1937. Segundo o jornal Djumbay (n° 10, p. 8), o CCAB foi fundado em
1943. 12 Discurso do Sr. José Vicente Lima, publicado pelo CCAB com o título “Divulgação do Cinquentenário do Centro de Cultura Afro- sileiro”, Recife, 1987, p.s/n . Destaque do original. 13 Faleceu em 2005. mento em diversas áreas, notabilizou-se por seus conhecimentos na área da religiosidade afro-brasileira, sendo autor do livro Obi14.
Jorge Morais participou ativamente do processo de fundação dos primeiros afoxés em Pernambuco, foi o primeiro presidente do Afoxé Alafin Oyó, fundado em 1986, além de ter sido militante do Movimento Negro do Recife, do Movimento Negro Unificado/PE e membro do erreiro de Tata Raminho de Oxóssi, em Olinda, e do Ilê Axé Opô Afonjá, em Salvador. Edvaldo Ramos também tem atuação em diversas áreas. Foi presidente da União das Escolas de Samba de Pernambuco, é ganizador do Baile Perfumado, sócio benemérito de várias agremiações
carnavalescas e presidente do Centro de Cultura Afro-Brasileira (CCAB) e do Espaço Cultural Badia.
As atuações de Edvaldo Ramos e Jorge Morais na imprensa não se restringiram ao Angola. Antes da fundação desse periódico, a dupla era responsável pelas colunas “Umbanda e Movimento Negro” publicada no Diário da Noite.15 Segundo o editorial do n° 4, de abril de 1989, a experiência no Diário da Noite “durou pouco tempo. Quando mudou a
direção do Jornal e saiu a excelente equipe que possibilitou esta bertura (Ivan 14 BARBOSA, Jorge de Morais. Obi. Oráculos e oferendas.
Recife: ODCN, 1993. Realização: Djumbay – Organização pelo Desenvolvimento da Comunidade Negra. 15 Sobre essa experiência, ver: QUEIROZ, Martha Rosa F. Os primeiros passos da imprensa negra
recifense do século XX. Trabalho apresentado no XI Congresso Luso-Afro-Brasileiro/CONLAB realizado em Salvador (Bahia), em agosto de 11.
Cad Pesq Cdhis v24_n2.indd 535 01/06/2012 14:27:16 536 Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.24, n.2, jul./dez. 2011 Mauricio, Paulo Cunha, Pancho e outros) perdemos este espaço”16. Segundo o jornal, a razão para a vida efêmera da coluna “Movimento Negro” está no preconceito,
pois foram “(...) as forças declaradas do preconceito e do poder econômico, [que] fizeram parar logo nos seus primeiros anos de atividade”17. No ano de 1989, concomitantemente à edição do Angola,
a dupla assinava a coluna “Orixás. Coisas de Umbanda e Candomblé”, publicadas todas as sextas-feiras no jornal Folha de Pernambuco. Portanto a militância política negra, o carnaval e os meios afro-religiosos conhecem bem esses dois nomes. Com essas informações biográficas dos editores, fica compreensível o foco do Angola nas questões relativas ao universo litúrgico afro-brasileiro.
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