Discurso de desposse - CAAC
Boa noite a todas e todos aqui presentes.
Para falar, nesta noite, um pouco sobre o Centro Acadêmico Amaro Cavalcanti preciso, primeiramente, recorrer às palavras de Darcy Ribeiro sobre a realidade e o “amanhã possível”. Sociólogo mineiro, em sua obra e durante toda sua trajetória de vida pensou o Brasil como problema - e a Universidade como instituição essencial para superação das desigualdades e mazelas sociais, através de um conhecimento produzido em favor da transformação do cotidiano dos brasileiros e das brasileiras mais vulneráveis socioeconomicamente.
Em certa etapa de sua vida, Darcy Ribeiro afirmou que a realidade em que vivemos está grávida, grávida de um “amanhã possível”. Esta expressão denota a aspiração pelo surgimento de uma nova sociedade, de uma nova forma de se organizar e se estruturar, a surgir da insatisfação e da indignação daqueles excluídos do discurso de ordem e progresso hegemônico.
Além disto, esta expressão provém da observação de que a realidade atual estabelece um padrão de ordem que, em seu berço, traz consigo intrínseca a desordem, a ausência, a negação e o caos. Esta realidade vigente é incapaz de saciar todas as fomes – de comida, de justiça e de abraços -, pois os lírios não nascem das leis, nem de cima para baixo.
Em muitos vem brotando a consciência de que a realidade não deve ser uma sentença condenatória de sobrevivência e de subnutrição para todas e todos aqueles tidos como “ninguéns”, tal qual suscita Eduardo Galeano, lembrando sujeitos que “valem menos que as balas que os mata”, para quem está no poder.
O “amanhã possível” remete, então, à feitura de um Futuro que não é dado, predeterminado, fatalista e impositivo, mas um Futuro em que se requer a participação de cada pessoa – com seus interesses, seus sonhos, suas lágrimas, seus sorrisos e projetos de vida e de persecução de felicidade.
O “amanhã possível” é, portanto, um projeto de realidade em que compete a cada um de nós se apropriar da caneta da História e construí-la com as mesmas mãos que, jamais mudas, em silêncio gritavam “nunca mais!”. Para tanto, é preciso compreender que não se trata apenas de um projeto de realidade, mas também de um processo - histórico, cultural, social e econômico, em que estamos inseridos.
Processo em que muitas forças disputam a feitura de seus projetos de vida e buscam anular ou negar os projetos dos outros, fazendo uso da força bruta quando se pede por sensibilidade. Nesta arena, sozinhos os sujeitos não têm força pra sonhar. É preciso mobilização e organização. Pois, como Gonzaguinha escreveu, “da unidade vai nascer a nova idade, da unidade vai nascer a novidade”.
É nesta conjuntura que o Centro Acadêmico Amaro Cavalcanti se insurge. Inserida em um processo, em sua História recente reacendeu a chama de esperança e reafirmou o compromisso histórico de que “da luta não se retira”. Vive – e porque vive, é militante. Reafirmou a opção de quem é protagonista de seu tempo – e que, por isso, odeia os indiferentes, odeia quem não toma partido.
Na busca pela concretização do projeto de “amanhã possível”, entendeu que é preciso união e integração – dentro e fora da universidade. Pois o Direito é Achado nas Ruas. De mãos dadas, em poderosos cordões, há sempre um refrão que lembra a quem quiser ouvir que “a gente tem o sol na mão” e que “o brilho das pessoas é bem maior e irá iluminar nossas manhãs”.
Há quem diga que até hoje, na Câmara Municipal de Natal, é possível ouvir ecoar o grito de que “até que tudo cesse, nós não cessaremos”, ouvido desde os passos dos primeiros pés que ocuparam a Câmara, com a faixa do CAAC em punho.
Mas, para esta chama continuar acesa, é preciso ousadia. Ousar pensar, ousar dizer e ousar agir. É preciso defender, acima de tudo e apesar dos pesares, os direitos de sonhar e de sorrir, neste processo de conscientização e denúncia e anúncio do mundo.
E, para entender o mundo, foi preciso estar descalço e estar “de pé no chão”. Sentir as pedras deste piso frio e as lágrimas silenciosas dos que nele se deitam diariamente. Foi preciso chamar para dentro da Universidade aqueles que vivem a negação do direito à moradia, para entender que este não deve ser apenas uma frase sem força normativa na Constituição, mas uma garantia na vida de todos e todas.
Constatar apenas, contudo, não bastou. Foi preciso mais, foi preciso pôr o chão nos pés, como cantou Chico Buarque. Pôr o chão nos pés para sentir que as veias da América Latina continuam abertas – e a sangrar. Para entender que as almas dos índios não valeram, ao fim, um milhão. Para entender que ainda choram Marias e Clarices – e os porões da ditadura continuam fechados, precisando que as luzes se entremeiem e atinjam o âmago da verdade. É preciso reafirmar os gritos de “nunca mais”.
Olhando para dentro e para fora, o Centro Acadêmico buscou uma postura de sensibilidade e de firmeza, de diálogo e de ação, dando o nome de uma de suas mais caras flores à Gestão anterior, Ubirajara de Holanda. Reconheceu, neste simbolismo, a necessidade de prestigiar aquele que buscou ser um homem de valor, cujas qualidades caracterizam o Centro Acadêmico e cuja partida deixou saudade e carinho.
É neste projeto e processo recente que o Centro Acadêmico Amaro Cavalcanti hoje dá início a uma nova gestão. Não tenho dúvida de que, honrando os quase cinqüenta anos de história e de tradição como espaço de discussão, de problematização e de pensar o Brasil como problema, este novo grupo irá honrar o compromisso de alcançar o “amanhã possível”.
Para honrar a lembrança de Darcy Ribeiro, concluo com o trecho do discurso que proferiu em 1978, quando recebeu o título de doutor honoris causa em Sorbonne. Na oportunidade, ele afirmou que se propôs a salvar os índios – e fracassou; almejou um programa educacional capaz de escolarizar todas as crianças brasileiras – e fracassou; intentou realizar a reforma agrária – e novamente fracassou.
Concluiu, então, afirmando que todos “esses fracassos” de sua vida inteira eram “os únicos orgulhos que tinha”. Entretanto, de nenhuma maneira isso tudo foi em vão. Pois hoje, trinta e cinco anos depois desta fala ser proferida, a chama destas lutas permanece acesa – e assim nenhuma luta é fracassada, pois
A chama vencerá a escuridão,
Iluminará a rua e o porão,
E todos que julgaram inatingível
Verão nascer o “amanhã possível”
Enfim a noite irá cessar
E todos juntos ouviremos
Aqui de perto alguém gritar
“Até que tudo cesse,
Nós não cessaremos”
Até o dia clarear!
Muito obrigado!