Eric Hobsbawm, em artigo Foi-se o martelo, de Eurípedes Alcântara

Eric Hobsbawm escamoteou os crimes do comunismo.

SEXTA-FEIRA, 12 DE OUTUBRO DE 2012

Os ingleses são apaixonados por história. A Inglaterra deu ao mundo extraordinários historiadores. Edward Gibbon produziu no século XVIII a narrativa definitiva do declínio e queda do Império Romano. No século seguinte. Macaulay escreveu uma história da Inglaterra que ainda não foi superada. Muitos outros se ombrearam com esses em pesquisas e relatos rigorosos, originais.- honestos e sagazes da história contemporânea. Alan John Percivale Taylor. Hugh Redwald Trevor-Hoper, Amold Toynbee, para citar alguns poucos. Eric Hobsbawm, morto aos 95 anos na semana passada, não forma nesse time por ter deixado sua devoção religiosa ao marxismo embaçar sua visão do século XX.

O marxismo é um credo que tem profeta, textos sagrados e promete levar seus seguidores ao paraíso. Os poucos sistemas políticos erguidos sobre essa fé desapareceram. Sobraram umas ilhas de miséria insignificantes. Como todas as teocracias, os governos marxistas foram ditatoriais, intolerantes, rápidos no gatilho contra quem discordava deles — foram estados assassinos. O escritor inglês H.G. Wells, autor de A Guerra dos Mundos, descreveu o alemão Karl Marx (1818-1883) como "uma mente de terceira, postulador de uma tese de segunda, propagandeada por fanáticos de primeira".

Hobsbawm teve a chance de presenciar evidências concretas de seus equívocos. Ele testemunhou o desmoronamento do comunismo, com a implosão do sistema soviético no começo da década de 90. Só muitos anos mais tarde admitiu que, por ter sido tão completo o colapso da União Soviética, "parece agora óbvio que a falha estava embutida no empreendimento desde o começo". O encadeamento dedutivo lógico, racional, dessa constatação só podia ser o reconhecimento de que sua própria obra tinha uma falha estrutural de nascença - a cegueira aos crimes do comunismo. Mas fé e razão não andam juntas. Van Gogh foi um louco que pintava nos momentos de lucidez. Emest Hemingway era um porre quando bebía—e entornava —, mas escrevia sóbrio. Hobsbawm foi um comunista que fez coisas notáveis quando lúcido. Os filósofos Isaiah Berlin e Leszek Kolakowski demonstraram que o marxismo atua no mesmo nível mental da transcendência, área distante da que processa os pensamentos e atos racionais. Isso explicaria por que, mesmo morto e enterrado como teoria e prática, o marxismo sobrevive como igreja — ou igrejinha, quando instalado em círculos acadêmicos. Cardeal da seita. Hobsbawm tinha convicções impermeáveis aos fatos e à lógica.

Karl Marx se acreditava um observador científico da realidade cujas afirmações sobre a superação do capitalismo pela revolução comunista não eram meras previsões. Eram profecias. A classe operária ficaria tão numerosa e miserável que tomaria inevitável o confronto vitorioso final com a burguesia. Algo deu errado. Em vez de empobrecerem, os operários foram ficando mais ricos - muito mais ricos do que seus antepassados jamais sonharam. Os países europeus, alvo de Marx, aplacaram a radícalidade das massas com reformas e assistência social.

Marx recebeu uma carta de Friedrich Engels, o amigo que o sustentava com a mesada do pai, rico industrial alemão. A carta era um lamento desesperado: "Os proletários ingleses estão se tomando mais e mais burgueses, mais burgueses do que os de qualquer outra nação: nós temos agora uma burguesia aristocrata e também uma burguesia proletária". É desconhecida a reação de Marx ao choque dado por Engels, mas nas religiões a realidade não tem valor de convencimento. Os crimes cometidos por líderes e seu aparato de eliminação dos adversários (e dos aliados incômodos), a derrocada moral e material da seita? São eventos insignificantes para os convertidos.

A Igreja Católica encontrou uma saída para explicar um papa como Alexandre VI (1492-1503), nobre poderoso que comprou sua eleição e transformou o trono de Pedro em testemunha de esbór-nias, bacanais e crimes. Os pensadores católicos argumentam que ter sobrevivido a Alexandre VI é mais uma prova da origem divina da Igreja. Hobsbawm também sacralizou o comunismo para não enxergar seus erros. Seus livros que tratam da história contemporânea trazem uma coleção disciplinada, fervorosa e ardente de justificativas das atrocidades comunistas — missão a que ele se entregou valendo-se de omissões, evasões, contradições e circunavegações.

É discutível se alardear a própria desonestidade intelectual é uma atenuantes do vício, mas Hobsbawm nada fez para esconder que seus compromissos ideológicos estavam acima do dever de relatar a história com objetividade e rigor. Quando o fato é prejudicial a seu credo, azar do fato. Ele revela talento, capacidade de trabalho e domínio das fontes quando narra a história do século XIX. Essas qualidades desaparecem nos relatos posteriores. Na autobiografia, Tempos Interessantes: uma Vida no Século XX, ele faz uma única crítica contundente à União Soviética: lamenta que os interesses do estado soviético tenham atrapalhado a busca da utopia comunista. Há certa compostura em sua prosa. Mas proselitismo elegante continua sendo proselitismo. Para defender no livro A Era dos Extremos os massacres cometidos por seu santo de devoção, o ditador soviético Josef Stalin, ele se sai com esta: "Nas condições existentes nos anos 1930, o que Stalin fez na Rússia, por mais chocante, foi um problema russo, enquanto o que Hitler fez foi uma ameaça para todo o mundo". Isso é clássico Hobsbawm. Ele finge se chocar com as atrocidades de Stalin, mas põe todo o foco sobre os crimes de outro facínora, Hitler. Se Hitler foi pior do que Stalin é uma discussão que eles mesmos devem estar travando até hoje no anel interior do sétimo círculo do inferno de Dante. (Quem sabe Hobsbawm não se encontra com Marx na quarta cova do oitavo círculo.)

O fato é que Stalin se aliou a Hitler em 1939 para juntos saquearem e dividirem a Polônia entre eles. Quem se informar sobre o episódio pelo catecismo de Hobsbawm não vai saber que a aliança nazicomunista se deu com o objetivo geo-político de pilhar a Polônia e dominá-la para sempre, com a eliminação de sua elite militar. Essa diretiva macabra foi levada a cabo no que se conhece hoje como o Massacre da Floresta de Katyn. Ali, a mando de Stalin, um a um, 20000 oficiais poloneses foram mortos com tiros de pistola. Na falta de munição os carrascos soviéticos os estrangulavam com torniquete. Cúmplice, Hobsbawm diz apenas que "a União Soviética se recusou a continuar se opondo a Hitler".

Hobsbawm fingiu que não eram com ele a censura, as execuções sumárias da polícia política, os gulags, silêncio sobre a operação planejada de matar de fome, por vingança, duas dezenas de milhões de habitantes da Ucrânia, um dos mais odiosos processos conduzidos por Stalin. Tal barbaridade seria repetida mais tarde por Mao Tsé-tung na China e Pol Pot no Camboja, genocidas que ele também bajulou.

No ardil mais tosco de que se tem notícia de alguém com reputação de grande intelectual, ele pôs a culpa dos crimes comunistas... em quem? Ora, no capitalismo: "Como resultado da quebra da economia do Ocidente (a depressão dos anos 30), nós ficamos com a ilusão de que até mesmo aquele sistema brutal, experimental, funcionaria melhor do que o adotado no Ocidente. Era aquilo ou nada". Poderia ser uma opinião razoável na década de 30. Continuar propagando-a durante cinco décadas é fraude. Quando Nikita Kruschev revelou, em 1956, a real extensão da loucura assassina do stalinismo, Hobsbawm correu a condenar... quem? Kruschev, ora!

Em certos momentos ele chegou ao nível da loucura. Conta o escritor inglês David Pryce-Jones que, na mesa de jantar de um amigo comum, Hobsbawm, que era judeu, sugeriu acabar com a tensão no Oriente Médio "jogando uma bomba atômica em Israel". Em uma notória entrevista televisiva, o canadense Michael Ignatieff perguntou-lhe se o assassinato de 20 milhões de pessoas por Stalin e os 55 milhões a 65 milhões de vítimas de Mao Tsé-tung na China teriam sido justificados caso a utopia comunista tivesse se concretizado. Hobsbawm respondeu: "Sim".

Deus expulsou Adão e Eva do paraíso, mas o comunismo prometia nada menos que a reconquista do éden. Nos textos sagrados, a descrição do paraíso é sempre nublada, misteriosa. Com o marxismo não foi diferente. Como seria o paraíso comunista? Marx, escritor prolixo, descreveu-o brevemente uma única vez: "Na sociedade comunista, onde ninguém tem uma esfera exclusiva de atividades, a sociedade regula a produção em geral e isso toma possível à pessoa fazer uma coisa hoje e outra amanhã, caçar de manhã, pescar à tarde, criar gado de noite, escrever críticas literárias depois do jantar, exatamente o que eu pretendo fazer, sem nunca me tomar caçador, vaqueiro ou crítico". Não se sabe por que no paraíso comunista a caça&pesca é vital e o gado é albino, já que deve ser criado no escuro.

Mas será que, em nome dessa fantasia. teria sido mesmo necessário produzir um himalaia de cadáveres de inocentes? Que motivos levam gente até bastante ilustrada a acreditar nessa es-catologia pueril? A fé. O fanatismo com que encampam dogmas comunistas tais como "a moralidade é uma ilusão" ou "a ética é uma arma da elite dominante". (Isso lembra algo e alguém no Brasil de agora?) Tantas mortes, tanta miséria intelectual e moral para quê? Para podermos pescar, caçar e criar gado à noite, ora!

REVISTA VEJA, 08/10/2012