ESTE BOCAGE

Por

Assis Machado

Num fim de tarde de Agosto do ano de 1790, vindo do Oriente, com bandeira portuguesa, entrava um navio na barra do Tejo indo ancorar frente ao cais da Ribeira. Nele viajou um famoso e esfuziante poeta que, ao longo de toda a viagem, alegrara toda a tripulação que maioritariamente era portuguesa. Todos se deleitavam com as suas cantilenas de tonalidade romântica, sarcástica, ironística e, por vezes, brejeira. A vida do mar a isso convidava.

Circulava então em Lisboa o eco trágico da Revolução Francesa que eclodira no ano anterior. A Liberdade era o hino que se cantava às escondidas por toda a parte, porque a polícia estava cada vez mais intransigente... não existisse em Portugal um férreo Regime Absolutista, como todos sabemos !

0 nosso desembarcado poeta – conhecido universalmente por Bocage – aproveitando a propícia onda que se enquadrava bem com o seu próprio temperamento instável e genicoso, começou cantando logo contra o Despotismo, chamando-lhe sanhudo, inexorável, monstro que em pranto, em sangue a fúria ceva, mas que não tiraniza do livre coração a independência, e compôs a partir daí muitos Sonetos em honra da Liberdade.

Eram estes os sentimentos políticos de Bocage e de todos os sócios da Nova Arcádia – centro poético por excelência naquela altura – salvas raras excepções. Nem escapava a este influxo o padre Agostinho de Macedo, ex-frade graciano, amigo do nosso Vate no seu regresso à pátria, mais tarde seu acérrimo adversário, e por fim reconciliado com ele no período curto da fatal doença que o vitimou para sempre.

A Nova Arcádia, honrava-se de constituir "uma sociedade de poetas", bem ao estilo da Europa daquela época. Para ela Bocage entrara em 1791, tomando o nome pastoril de Elmano Sadino, e contra a qual se indispôs em 1793. Em todo o tempo que durou esta polémica com os seus colegas, alimentada por veleidades de poetas e de literatos, trocaram-se as mais acerbas sátiras e vibraram-se epigramas os mais sórdidos de que há memória. Foi com Agostinho de Macedo que esta luta se tornou mais acesa. 0 implacável Despotismo da época não podia deixar de. perseguir a quem possuía sentimentos liberais, e Bocage era pouco acautelado na manifestação das suas crenças políticas e. religiosas. No ano de 1797 foram denunciados à intendência da polícia, como escritos pelo poeta, uns papeis ímpios, sediciosos e satíricos, que apareceram por todo o lado clandestinamente com o título de Verdades Duras, e continham entre outras coisas a epístola Pavorosa Ilusão da Eternidade. Bocage soube-o, e tentou refugiar-se, mas foi preso a 10 de Agosto desse ano, a bordo da corveta Aviso, que se destinava a partir para a Baía. Nas suas odes descreve o infeliz poeta os dissabores por que passou, a entrada no Limoeiro, como ali o molestaram, o segredo em que foi lançado, os inquéritos exaustivos e humilhantes que lhe fizeram. Finalmente, após tudo o que sofreu e sob as maiores privações foi transferido, por solicitação de amigos e protectores, em 7 de Novembro, para os cárceres da Inquisição. E tão rápido aí andaram com o processo, que a 17 de Fevereiro de 1798 dava entrada no mosteiro de S. Bento da Saúde, de Lisboa, e a 22 de Março passava ao hospício de Nossa Senhora das Necessidades dos clérigos de S. Filipe Nery. Os frades do Oratório com facilidade o doutrinaram, pois que em poucos meses Foi-lhe restituída novamente a liberdade, a qual alcançou por lhe não terem encontrado no processo motivos de condenação, e também devido à protecção do próprio ministro José de Seabra e Silva.

Em 1801 aceitou a proposta que lhe fez o naturalista brasileiro, o padre José da Conceição Veloso para, mediante o ordenado de 24$000 réis, fazer as traduções de vários poemas didácticos: os Jardins, de Delille; As Plantas, de Castel; A Agricultura, de Roset; 0 Consórcio das Flôres, epístola de Lacroix. Deste trabalho penosíssimo e da máxima responsabilidade, se saiu Bocage brilhantemente, sendo uma das coroas mais viçosas da sua glória de poeta.

Além dos poemas franceses, traduziu vários poetas latinos e italianos. Em 1791 publicou o 1.º volume das suas Rimas, os Queixumes do Pastor Elmano, e os Idílios Marítimos. Em 1799 publicou o 2.º tomo das Rimas, e em 1804, o 3º.

Em 1805 declarou-se-lhe a doença, a que havia de sucumbir. Mesmo assim, ainda nesse ano publicou Os Improvisos e os Novos Improvisos, escritos já durante a enfermidade. Os últimos cinco anos, que precederam a sua morte, foram bem dolorosos para o infeliz poeta, agitado de terrores e ansiedades, vendo-se pobre e doente. Tinha um grande amigo, o dono do café das Parras, no Rossio, José Pedro da Silva, conhecido pela alcunha do José das Luminárias, que tinha por ele uma quase veneração, e que na sua doença muito o auxiliou com donativos pecuniários e promovendo-lhe a venda de livros, participando também nas despesas do funeral. Aquele café tornara-se notável, por se reunirem ali habitualmente os poetas, pelas discussões e distúrbios, num gabinete reservado, que intitulavam o Agulheiro dos Sábios. Fora este o período mais buliçoso da vida de Bocage, improvisando em outeiros, em saraus, em patuscadas, com uma desenvoltura de costumes que muito concorreram, talvez, para lhe abreviar a existência.

Quando o pai do poeta falecera, veio para Lisboa sua irmã, Maria Francisca e uma sua sobrinha. Com eles viveu numa pobre casa da travessa de André Valente, até que a morte chegou. Alguns dos seus inimigos se reconciliaram com ele, assistindo-lhe aos últimos momentos. O próprio José Agostinho de Macedo, que era quem mais o agredira com o seu génio maldizente e invejoso.

Em 15 de Setembro de 1865, quando se completava o centenário do nascimento do popular poeta foi apresentado nas salas do Clube Fluminense do Rio de Janeiro, uma proposta, por José Feliciano de Castilho para que se lhe erigisse um monumento. Abriu-se logo uma subscrição para esse fim, sendo as quantias recebidas depositadas numa casa comercial. Pouco depois, deu-se na praça do Rio de Janeiro, uma violenta crise, e perdeu-se grande parte do dinheiro, salvando-se apenas uma pequena parte. José Feliciano de Castilho, apesar dessa contrariedade, não desanimou, e vindo a Portugal, conseguiu realizar o seu patriótico pensamento. A 22 de Novembro de 1871 a câmara municipal de Setúbal colocava a primeira pedra no monumento, que foi inaugurado a 21 de Dezembro seguinte.

Postas estas considerações biográficas - grande parte delas já bastante conhecidas de todos nós - poderemos estabelecer uma série de questões com as quais termino esta minha intervenção:

- Qual a razão pela qual Bocage teimou em seguir as metas existenciais percorridas por Luís de Camões ?

- O que fez estabelecer entre estes dois poetas um tal destino humano ?

- Porque é que Bocage, do mesmo modo que Camões, foi perseguido pelos poderes instituídos, os mais diversos, desde poderes privados até aos poderes de Estado ?

- Qual a diferença de identidade mais carismática que poderemos traçar entre estes dois lídimos poetas ?

- Porque é que não há Português nenhum que não tenha uma ideia, pelo menos ténue, de que Bocage foi um grande poeta e fale dele com um empenho de que mais nenhum outro se pode orgulhar ?

- E porque será que quase sempre todas as conversas acerca de Bocage tendem a privilegiar um teor acentuadamente brejeiro?

- Genericamente Bocage é considerado como um dos nossos melhores poetas. Alguns dos nossos melhores escritores e intelectuais desde sempre, e mesmo agora, têm-no considerado ao nível de Luís Vaz de Camões, nomeadamente nos seus Sonetos, considerados a maioria deles tecnicamente inegualáveis. Sendo assim, porque é que nas Escolas saiu dos Programas ?

- Porque é que Bocage é considerado, em termos de realização humana, um verdadeiro modelo do homem lutador contra tudo e contra todos ?

Em memória de Bocage :

A NOBREZA É ESTA

Ser prole de varões assinalados,

que nas asas da fama e da vitória

ao templo foram da imortal Memória

pendurar mil trofeus ensanguentados.

Ler seus nomes nas páginas gravados

d' alta epopeia, d' elegante história,

não, não vos serve de esplendor,

de glória, almas soberbas, corações inchados!

Ouvir com dor o miserável grito

de inocentes que um bárbaro molesta,

prezar o sábio, consolar o aflito;

Prender teus voos, ambição funesta,

ter amor à virtude, ódio ao delito,

"das almas grandes, a nobreza é esta"!

Barbosa Du Bocage

FRASSINO MACHADO
Enviado por FRASSINO MACHADO em 01/12/2006
Código do texto: T306991
Classificação de conteúdo: seguro