MEU GRITO

Deixem-me sonhar o sonho infantil da igualdade universal. Não me despertem desse estado etéreo e também tão prazeroso. Não me tirem as minhas possibilidades irreais de não mais andar as ruas e deparar com o flagelo humano, quero o real e sua dureza. Peço, de joelhos se for preciso, que me esqueçam nessa louca utopia de olhar ao redor e não ver o perigo incrustado nas cidades como a fuligem liberada pelos carros que avançam o farol e deixam outro corpo no chão. Não me venham com receitas senhores, doutos farfalhando às costas as minhas sonâmbulas ideias. Ó zombeteiros e apostadores no cassino da vida consignada ao vil metal. Deixem-me, letárgicamente, frente ao quadro Retirante para que eu possa me reconhecer nos meus ancestrais. Não matem minha parca lucidez, me entupindo de ciência e esquecendo o humano. Deixe-me só. Deixe-me à sombra da árvore para que eu possa ouvir o colibri, e o fruto colhido colocado à mesa de outro irmão. Peço, sapientíssimas cabeças, me larguem ao relento para que eu sinta o cheiro da noite e me aqueça na luz da lua.

Nada mais quero, imperiosos senhores. Soltem-me aos cães, mas não me venham com dogmas. Ah, suas vidas não me causam inveja, me causam nojo. Bem sei das artimanhas com que conquistam os mais altos salários. Sois a decadência bípede e com sangue às mãos saciam suas sede de vingança. Maquinam em grupos os golpes milionários, e a miséria atinge a massa que ficará sem o leite e o pão para o amanhã na padaria da esquina. Ó párias, misantropos de sorrisos brilhantes e almas plúmbeas. Não! Não me dobrarão com suas falsas promessas. Já os conheço e sinto nojo. Exijo distância. Não se aproximem, seus corpos exalam o fedor carnificínio da opulência saqueadora de vidas e sonhos. Me esqueçam! Exijo o esquecimento. Quero estar no meu tempo o tempo que quiser. Às favas com suas regras e ritos igualmente nefandos, e suas vidas debilitadas de companhia sincera. Sois os abutres do povo e suas vidas. Ó vermes. Sois a razão e causa da decomposição social. O crime cresce graças a seus planos. O menor abandonado o deleite com que às suas macias camas arquitetarão novos planos. Assassinos, assassinos é o que são. Digo e repito, assassinos. Um milhão de vezes, assassinos! Não me calarão, minha voz não cessará, ainda que com uma bala no peito ou na cabeça, não cessará. Outros, antes já fizeram e outros farão. Não desistiremos mesmo que nos mandem às cadeias, é só isso que sabem fazer, construir cadeias em lugar de casas. Armas, em vez de jardins, é o que lhes dá prazer. Sois os ardilosos do inferno humano, o brilho do sol ofusca suas vistas, só as trevas é a trilha que conhecem bem. Então, eu sonho e grito, e meus pulmões débeis pela nicotina acumulada e fragilizado pelo avanço da idade, já não puxa o ar outrora mais puro, mas mesmo assim eu grito. E nada, doutos senhores, absolutamente nada, me impedirá. Então eu grito o grito dos injustiçados, das mães abandonadas, dos velhos esquecidos, dos delinquentes fabricados. Eu grito pela igualdade negada, eu grito pela escola sucateada, eu grito pela saúde mercantilizada. Eu grito. Tapem os ouvidos, ó vermes senhores da guerra, apocalípticos doutos habitantes de fortalezas compradas a custas da fome, da miséria, das doenças e de vidas condenadas antes do nascimento. Sois a morte a rondar populações mundo a fora. A ciência, a ciência a serviço do lucro. Sois o gigolô da ciência estuprada dia a dia; negam-na ao progresso e desenvolvimento do humano. Transformaram o alimento em mercadoria e se comprazem disso. Párias, vermes e párias, é isso que são. Sinto vergonha da desumanidade com que tratam o ar, a água e todos os seres, como nós, habitantes deste planeta. Sois, a besta fera nos gabinetes, nos ministérios, nos bancos. Sois os ladrões institucionalizado. Vão à missa, ó seres ignóbeis. Rezam o terço e confessem seus pecados e saiam risonhos e de alma lavada. Ó hipócritas defensores da moral e cumpridores de regras, suas regras. O mendigo, o abjeto mendigo é sua cria. Sois o criador do mendigo, da prostituta, do delinquente e de tudo que se tornou “normal” Ah, a minha lucidez. Ela se manifesta na minha loucura, é esse o diagnóstico com que me apresento a vós, mentecaptos normatizados em códigos e artigos frios como seus corações débeis e doentes e gélidos mais que a Antártida. Então eu grito. Enquanto eu viver, gritarei o grito sufocado pela mídia complacente e conivente com os desmandos rotineiramente reproduzidos e comemorados. Então eu grito.