Povos Indígenas no Mundo Contemporâneo
Quando eu falo "índio", qual é a primeira imagem que vem na cabeça de vocês? Selvagem? Um homem de tanga? Vivendo no mato, dormindo na rede?
Eu pensava o mesmo antes. Mesmo possuindo parentes descendentes de índios, eu pouco sabia sobre eles. Aliás, eu não fazia questão de saber algo sobre eles. Para mim, os índios tinham ficado no passado.
Sabe o que eu descobri depois que entrei para a faculdade, depois que estudei e pesquisei mais sobre a história do Brasil e do Amazonas? Que isso tudo não é verdade. Sim, é tudo parte de um discurso.
Começando pelo nome: "índio" foi como Colombo chamou o povo que achou naquilo que ele pensava ser a Índia. Desde então, todo povo nativo da América, ao invés de ser chamado de ameríndio, é chamado de índio. Só continuarei a usá-lo aqui, para efeito didático. Qual o problema? Ora, esses povos não são todos iguais. Os "índios" do oeste dos EUA não são os mesmos do sul do Brasil. Aqui mesmo, na Amazônia, existiam, numa mesma região, povos muito diferentes um do outro.
Vou dar um exemplo: os Omágua. Esse povo vivia aqui perto, nas duas margens do rio Amazonas, andavam vestidos e achatavam sua cabeça, deixando ela oval - daí o apelido deles de Cambeba (cabeça chata). Os Omágua comercializavam com os povos do Peru e tinham o que a gente chama de cacicado complexo, ou seja, quando existe um cacique supremo que domina outros caciques de uma área que, por sua vez, dominam outros povos.
Existiam também os Ashaninca, lá na fronteira do Acre com o Peru, que viviam em pequenas aldeias na selva, mas eram aliados dos incas. Os Ashaninca tinham um código: eles não poderiam brigar entre si. A guerra entre as aldeias Ashaninca era proibida. Quando alguém se desentendia com outra pessoa, o chefe os separava, deixava um longe do outro por um tempo, fazia de tudo para não ter briga. A guerra com povos que os ameaçassem, no entanto, não é proibida.
Os Ashaninca são totalmente diferente dos Tupinambá: enquanto aqueles cultivam a paz, esse adoram a guerra. A vida do povo Tupinambá girava em torno da guerra: na guerra, as mortes controlavam o aumento populacional, as batalhas definiam os próximos líderes, etc. A guerra não podia acabar, ela era sempre ressuscitada pela vingança. Era dever de um guerreiro vingar um de seus matando alguém da tribo inimiga que, por sua vez, fazia o mesmo. A guerra não tinha fim e esse ritual de vingança culminava no canibalismo.
Os Tupinambá viviam na região do Sudeste, mas foram emigrando, subindo o litoral brasileiro, fugindo dos colonizadores, até chegarem ao Maranhão. Lá surgiu um profeta Tupinambá que os convenceu de que a Terra Sem Mal (o Paraíso) estava no meio da floresta amazônica. Assim, eles foram subindo o rio até chegarem numa ilha onde passaram a viver, dominando seus moradores originais. Essa ilha passou a se chamar Tupinambarana e hoje vocês conhecem ela como Parintins.
Vocês devem ter percebido como um povo era diferente do outro - e olha que só falei de alguns! - e que eles tinham história, antes do colonizador chegar. O que vai acontecer com a colonização? Alguns vão sumir, outros vão ser escravizados. Os Omágua são atacados, quase somem com as epidemias trazidas pelos europeus. Os Ashaninca tentaram ser catequisados, mas conseguiram resistir até os tempos do boom da borracha quando foram escravizados e um aventureiro alemão que se dizia um profeta (Fitzcarraldo) os fez guerrear entre si, acabando com sua cultura de paz.
Mas nem todos foram vítimas: era comum os portugueses, para expulsar invasores como os franceses no Maranhão, fazerem alianças com alguns povos. Prometiam á eles liberdade e um título de nobreza. Na colônia, existiam aqueles caciques que eram reconhecidos como súditos do rei, uma espécie de governador dos índios de sua aldeia, eles eram chamados de Principais e eram os aliados dos colonos, principalmente nas guerras.
Além disso, existiam povos que viviam em guerra há décadas. Os portugueses souberam aproveitar isso, se aliando á alguns para poder acabar com outros e escravizá-los. Essa era uma forma de se conseguir índios, outra era através das tropas de resgate. Elas eram expedições que diziam proteger seus aliados índios presos por seus rivais, mas na verdade apenas queria os prisioneiros de guerra para escravizá-los. Outra maneira era o descimento, quando um missionário convencia uma aldeia toda á descer para um aldeamento religioso. Geralmente nesse aldeamento existiam vários povos diferentes juntos e eles tinham de ser catequisados e disciplinados para se tornarem bons trabalhadores e bons cristãos. Isso tudo na teoria, porque na prática quase sempre foram usados como escravos pelos colonos.
Os colonos do Norte não podiam contar com escravos africanos, esses iam todos para a colônia ao sul, o Brasil. A colônia do Grão-Pará e Maranhão teve que se virar, conseguir mão-de-obra no indígena que vivia aqui. Os índios fugiam, entravam cada vez mais na selva. No século XVIII, por exemplo, os antigos moradores das margens do Amazonas ou já tinham morrido ou fugido para os afluentes mais distantes. O que havia aqui eram apenas os descimentos, com povos mais acessíveis.
O que os colonos queriam dos índios? O seu trabalho e sua terra. Por que logo o índio? Porque ele era de uma raça inferior, ele era um gentio, uma criatura sem alma que deveria se "civilizar", seja pelo trabalho ou pela evangelização. Essa idéia foi sobrevivendo com o tempo, mas mudando em certos pontos. No século XIX, por exemplo, se dizia que o índio atrapalhava o progresso, assim como ele atrapalhava os negócios da Coroa.
Esse é o discurso que eu falei no começo. Isso é uma imagem construída com os anos que foi sendo repassada para a gente nas escolas e na nossa família mesmo. Assim nós aceitamos a violência do colonizador com eles e aceitamos também a sua extinção. Por isso muita gente não liga para a questão indígena. Por isso, no começo, vocês me disseram que viam o índio como uma coisa do passado, um homem que vive no mato, não tem história e é preguiçoso...
Gente, o índio não é nada disso. O índio, como eu mostrei para vocês tem uma história sim, ele tem uma forte ligação com a natureza sim. Agora, ele não é preguiçoso - ele tem um ritmo de trabalho diferente daquele do colonizador, ele vivia da caça e da coleta, para que fazer algo mais? Aliás, eu pergunto á vocês se esses colonos tinham direito de dizer isso: afina, quem trabalhava na terra era eles ou os povos que eles escravizaram? Outra coisa, o índio não é coisa do passado, ele não é contra o progresso. Os povos indígenas são, como todo povo, uma comunidade que tem passado, presente e um futuro.
E esse progresso de que nós tanto falamos? É um progresso baseado na força, na dominação da natureza, na destruição de povos que não entende. É como um rolo compressor, quando na verdade sabemos que ele pode muito bem não ser assim. Podemos ter um progresso mais humano, que respeite as outras culturas e a natureza. E os índios podem nos ensinar como. Antes de inventarmos essa idéia de "desenvolvimento sustentável", eles já faziam isso.
"Beleza, mas naquele tempo eles podiam ser sustentável: eles eram poucos, não tinham toda essa tecnologia. E hoje como fazemos?", você me pergunta. Quem disse que eles eram poucos? Sítios arqueológicos aqui perto, em Iranduba, demonstram que existiam povoados imensos, quase cidades, nas margens do rio. E eles sabiam como fazer manejo ambiental: preservavam algumas áreas para sua roça ou simplesmente para atrair animais para sua caça.
Além disso, sua ocupação deixou o solo fértil. Sim, é o que os pesquisadores chamam de terra preta de índio. É um solo feito com os restos desses povoados, com sua cerâmica, suas casas, seus corpos, seus alimentos, que até hoje não perdeu sua fertilidade. Se os cientistas descobrirem o que tornou esse solo tão fértil então nossa tecnologia poderia muito bem nos ajudar a transformar outros lugares em "sustentáveis".
Recapitulando: os povos indígenas não são únicos, possuem uma história, uma especificidade e conhecimentos que podem nos ajudar hoje. São povos que nossa história colocou sempre á margem de tudo. Por isso, muitos estão nessa situação lamentável em que se encontram hoje: desnutridos, tentando conseguir suas terras nas lutas contra invasores e fazendeiros. Nós também somos responsáveis por isso, pois não nos dedicamos a pensar nesse assunto, não propomos soluções, nem nos preocupamos com eles. Nem pensamos neles. "Povos Indígenas no Mundo Contemporâneo", esse é o tema da nossa palestra. Logo de cara, percebemos que não pensamos no índio no presente, muito menos no futuro. E isso é preocupante. Espero que com essas minhas palavras, com o que expus aqui, vocês possam pelo menos pensar um pouco mais nessa questão.
(Partes de meu discurso no colégio Recanto da Criança [Cidade Nova, Manaus}, por ocasião do Quinto Fórum Indígena, no dia 15 de Abril de 2011).