Ilusões, e Futilidades Essencializadas
“Existe uma só vida que não esteja impregnada dos erros que fazem viver? Existe uma só vida clara, transparente, sem raízes humilhantes, sem motivos inventados, sem os mitos surgidos dos desejos? Onde está o ato puro de toda utilidade: sol que abomine a incandescência, anjo em um universo sem fé, ou verme ocioso em um mundo abandonado à imortalidade?
Quis defender-me contra todos os homens, reagir contra sua loucura, descobrir sua origem; escutei, vi e tive medo: medo de agir pelos mesmos motivos ou por qualquer outro motivo, de crer nos mesmos fantasmas ou em qualquer outro fantasma, de deixar-me afogar pelas mesmas embriaguezes ou por qualquer outra embriaguez; medo, enfim, de delirar em comum e de expirar em uma multidão de êxtases. Eu sabia que ao separar-me de uma pessoa despojara-me de um erro, que estava pobre da ilusão que lhe deixava…
Suas palavras febris a revelavam prisioneira de uma evidência absoluta para ela e irrisória para mim; ao contato de seu absurdo, despojava-me aparentemente de minha gratuidade utilitarista, tão sofismável, burguesa, entediante, e ao mesmo tempo impronunciáveis até para todas as partes de meu corpo… A quem aderir sem o sentimento de enganar-se e sem enrubescer? Só pode justificar-se aquele que pratica, com plena consciência, o disparate necessário para qualquer ato, e que não embeleza com nenhum sonho a ficção a que se entrega, do mesmo modo que só se pode admirar um herói que morre sem convicção, tanto mais disposto ao sacrifício quanto entreviu seu fundo.
Quanto aos amantes, seriam odiosos se no meio de suas caretas o pressentimento da morte não os roçasse. É perturbador pensar que levamos para o túmulo nosso segredo — nossa ilusão —, que não sobrevivemos ao erro misterioso que vivificava nosso alento, que talvez excetuando as prostitutas e os céticos nos quais mascaramos não sermos, todos se perdem na mentira, por que não adivinham a equivalência, na nulidade das volúpias e das verdades. Quis suprimir em mim as razões que os homens invocam para existir e para agir.
Quis tornar-me indizivelmente normal: e eis-me aqui, no embrutecimento, no mesmo plano que os idiotas e tão vazio como eles.
Penso agora sobre a afirmação de Jean Paul Sartre de que “o homem está condenado a ser livre”. Que presunção utópica. O livre-arbítrio, segundo consta, continua um dogma essencial à maioria dos cristãos, religiosos em geral e para as pessoas que estão inseridas ao que denominam “civilização”. Sem ele, as crueldades de Deus esticariam a fé até um ponto de ruptura. Mas, fora do aprisco das ovelhas, parece estar caindo gradualmente em desuso. Os cientistas aplicaram-lhe golpes feios, e mesmo entre os leigos de mente mais inquisitiva o livre-arbítrio parece estar cedendo o lugar a uma apologética espécie de determinismo: um determinismo, pode-se dizer, temperado pela observação deficiente.
Um travesseiro para o livre-arbítrio descansar: só que recheado de tijolos espinhosos. Onde os ocupantes desta última trincheira do livre-arbítrio se equivocam é em sua suposição de que os safanões de seus impulsos antagônicos são exatamente iguais — que o indivíduo é absolutamente livre para escolher aquele a quem vai se submeter.
Tal liberdade, na prática, nunca é encontrada. Quando um indivíduo se confronta com alternativas, não é apenas a sua vontade que escolhe entre elas, mas também o seu ambiente, seus preconceitos hereditários, sua raça, sua cor, sua condição de servidão. Posso beijar uma garota e posso não beijá-la, mas seria absurdo de minha parte dizer que sou o único elemento ativo neste caso. O mundo até resumiu meu desamparo num provérbio que diz que tudo depende da hora e do lugar; e, até certo ponto, da garota.
Os exemplos podem ser multiplicados ao infinito. Não consigo me lembrar de ter desempenhado um único ato inteiramente voluntário. Toda a minha vida parece ser uma longa série de acidentes inexplicáveis. É a história das reações de minha personalidade ao meu ambiente, ou de meu comportamento diante de estímulos externos.
Não sou responsável nem pela personalidade, nem pelo ambiente. Dizer que posso modificar esta personalidade por um ato voluntário é tão ridículo quanto dizer que posso modificar a curvatura do cristalino de meus olhos, embora se possa tentar. Não sou o mesmo homem que era nesse século passado, mas as mudanças que aconteceram para melhor não devem ser creditadas a mim. Todas vieram de fora — ou de profundezas insondáveis e incontroláveis dentro de mim, ou de algo ainda incognoscível, mas que não devemos precipitadamente personificar.
Quanto mais se examina o assunto, mais o resíduo do livre-arbítrio parece encolher, até que, no fim, torna-se impossível seguir-lhe a pista. Muitos homens, naturalmente, ao se olharem no espelho, batem no peito, consideram-se donos de seu arbítrio e pedem a Deus que os recompense por sua virtude. Mas esses sujeitos são apenas egoístas privados de qualquer senso crítico. Confundem os atos de Deus com seus próprios atos. Não diferem muito da raposa que se gaba de ter posto os cães para correr.
A inutilidade do livre-arbítrio é comumente denunciada como capaz de subverter a moral e fazer a religião de palhaça. Tais objeções tão pias não têm um pingo de lógica, mas vamos abrir uma exceção neste caso e dar uma olhada nelas. Elas se baseiam na capciosa hipótese de que o determinista foge ou tenta fugir às conseqüências dos seus atos. Nada poderia ser mais falso. As conseqüências se seguem aos fatos, implacavelmente, sejam eles voluntários ou involuntários. Se assalto um banco por minha livre decisão ou em resposta a alguma necessidade interior insondável, não importa: vou para a mesma cadeia. Na guerra, morrem tanto os soldados convocados à força quanto os voluntários.
Mesmo do ponto de vista espiritual, o determinismo não provoca tanto estrago na teologia. Não é mais difícil acreditar que um homem será punido por seus atos involuntários do que acreditar que ele será punido por seus atos voluntários, pois mesmo a suposição de que ele é completamente livre não anula o fato de que Deus o fez como ele é — e que Deus poderia ter feito dele um santo, se quisesse. Negar isto é tratar com desprezo o Onipotente — um crime do qual me eximo. Mas agora começo a pensar que chapinhei longe demais na água benta das ciências sagradas, e que é melhor dar o fora antes que me esfolem. Esta prudente retirada é puramente determinística. Não a atribuo à minha própria sagacidade; atribuo-a inteiramente àquela singular gentileza que o destino sempre me reserva. Se eu fosse livre, provavelmente continuaria a escrever — e depois me arrependeria.
Na tradição racionalista, o “nem tudo o que é parece” dá lugar a tese radical de que “nada parece o que realmente é”. Foi esse passo decisivo esboçado originalmente pelos atomistas pré-socráticos e elaborado pela filosofia cartesiana a partir dos avanços e conquistas do século XVII, que revolucionou as bases da concepção científica da objetividade. O que é real? Na filosofia atomista de Demócrito, o mundo tal como o apreendemos pelos sentidos não é o mundo tal como ele é. A análise da básica física das percepções mostra que nossos sentidos, não importam quão disciplinados, são como bárbaros, isto é, excitáveis e enganadores, e que subjacentes as informações que eles nos trazem está à realidade objetiva dos átomos em movimento. Embora diferindo entre si quanto ao tamanho e ao formato, os átomos de que o mundo e nossos corpos são feitos são destituídos de qualidades sensíveis, tais como cores, sons, cheiros, texturas, etc. Quão nos auto-enganamos e somos enganadores concomitantemente.
Logo, por que não acabar com esta teatralidade insana, absurda e enlouquecedora de uma vez por todas? O que poderia ser mais lógico do que o suicídio? O que poderia ser mais despropositado do que continuar vivo? No entanto, todos nos agarramos à vida com desesperada devoção, mesmo quando o que resta dela é palpavelmente frágil e cheio de agonia. Metade do tempo dos médicos é desperdiçado bombeando vida em cacos humanos, que não têm nenhuma razão inteligível para continuar vivendo, assim como uma vaca tem para continuar dando leite.
Em parte, este frenesi absurdo tem suas origens na imaginação humana ou, como poderia ser chamada mais poeticamente, na “razão humana”. O homem, tendo adquirido a alta capacidade de visualizar a morte, visualiza-a como algo doloroso e horrível. Claro que ela é raramente assim. Os estágios anteriores a ela podem até ser dolorosos (embora nem sempre), mas a morte em si parece desprovida de sensação, seja física ou psíquica. O candidato, finalmente defrontando-a, simplesmente perde suas faculdades. Não lhe dói mais do que doeria num micróbio. O horrível, assim como o doloroso, não fazem parte dela. É até mais provável que ela revele elementos do grotesco. Falo, é claro, da morte natural. Já o suicídio é nitidamente mais desagradável, até porque há alguma incerteza a seu respeito. O candidato hesita em se matar com um tiro porque teme, com alguma razão, errar o tiro e apenas se ferir. O tiro, além disso, juntamente com outras formas de produzir o êxodo artificial, envolve uma espécie de afronta à sua dignidade: certamente vai provocar um remorso antecipado. Mas parece-me que aquela objeção tende a desaparecer com o progresso da ciência.
Passo por cima das objeções teológicas à autodestruição por serem muito sofísticas para merecerem resposta séria. Desde o começo, o cristianismo pintou a vida na terra como algo tão triste e vazio que seu valor tornou-se indistinguível do de uma merdinha. Então, para que aferrar-se a ela? Simplesmente porque sua inutilidade e dissabores são partes da vontade do Criador, cujo amor por Suas criaturas consiste curiosamente em torturá-las.
Se elas se revoltam neste mundo, serão torturadas um milhão de vezes mais no próximo. Apresento este argumento como um típico espécime de raciocínio teológico e passo a outros temas mais importantes.
Especificamente, à minha tese original: a de que é difícil, senão impossível, descobrir qualquer razão lógica ou probatória, que não se desmascare instantaneamente como cheia de falácias, para se continuar vivo. A sabedoria universal do mundo já concluiu há muito tempo que a vida é uma maldição. Consulte um filósofo proverbial de qualquer raça e você o verá falando da futilidade da batalha mundana. A antecipação é melhor do que a realização. O desapontamento é o quinhão da humanidade. Nascemos na dor e morremos no sofrimento. O homem feliz morreu quarta-feira. Fulano finalmente descansou. Etc., etc. Eu poderia estender esta lista por páginas e páginas. Se você despreza a sabedoria popular, dê uma espiada no seu Shakespeare: suas peças escorrem um pessimismo de ponta a ponta. Se há uma ideia geral nelas, é a de que a existência humana é uma penosa futilidade, apagável como uma vela.
No entanto, nos atrelamos a ela de uma maneira atabalhoadamente fisiológica, ou para ser mais preciso, patológica — e até tentamos recheá-la com pomposas cantilenas. Todos os homens verdadeiramente sensíveis lutam poderosamente pela distinção e pelo poder, pelo respeito e inveja de seus semelhantes, pela admiração de uma interminável série de carcaças, portando aminoácidos em rápida desintegração. E para quê? Bem, quase sempre irão encontrar respostas, finalidades que não passam de embustes para argumentar, explicar e convencer esses “para quês”, esses “ por quês” para si mesmos, e para quem os interroga... Embora o mistério central permaneça, talvez seja possível investigar os sintomas mais superficiais de algum lucro. Ofereço-me, por exemplo, como um animal de laboratório. Para que trabalhei tanto, durante anos e anos, buscando desesperadamente chegar a alguma coisa que continua impenetrável para mim até hoje? Será por que desejo dinheiro, comodidade, estabilidade, conquistas? Asneiras! Será então porque estou à busca da nata decadente da notoriedade? Mais uma vez, a resposta é não. Não gosto que estranhos me dêem atenção e evito-os o mais que posso. Então, será uma vontade irresistível de fazer o bem?
Houve tempo em que imaginei que os homens trabalhavam em resposta a uma vaga necessidade interior de se exprimir. Mas aquela era provavelmente uma teoria capenga, porque muitos dos homens que mais trabalhavam não têm nada a dizer. Uma hipótese mais plausível começa a brotar agora: os homens trabalham apenas para escapar à deprimente agonia de contemplar a vida, e seu trabalho, assim como o seu ócio, é uma comédia-pastelão, que só lhes serve para que eles escapem da realidade. Tanto o trabalho como o ócio, normalmente, são ilusões. Nenhum deles serve a qualquer propósito sólido e permanente. Mas a vida, despida dessas ilusões, torna-se logo insuportável. O homem não consegue ficar de mãos abanando, contemplando o seu destino neste mundo, sem ficar desvairado. Por isto inventa formas de tirar sua mente deste horror. Trabalha, diverte-se. Acumula aquele grotesco nada, chamado propriedade. Persegue aquela piscadela esquiva da fama. Constitui uma família e dissemina a sua maldição sobre ela. E, todo o tempo, a coisa que o move é o desejo de se perder de si mesmo, de se esquecer de si mesmo e de escapar à tragicomédia que é ele próprio.
Fundamentalmente, a vida não vale a pena ser vivida. Assim, ele cria artificialidades para fazê-la parecer que vale. E também por isto erige uma espalhafatosa estrutura para esconder o fato de que ela não vale. Talvez esta conversa de agonias e tragicomédias possa desviar a atenção do leitor. O fato básico sobre a existência humana não é o de que seja uma tragédia, mas o de que é uma chatice. Não é tanto uma guerra, mas uma permanente posição de sentido. A objeção a ela não é a de que seja predominantemente penosa, mas a de que lhe falta sentido em si. O que a espécie terá pela frente? Os próprios teólogos não conseguem ver nada, exceto um vazio cinzento com alguns fogos de artifício irracionais no fim. Mas existe uma coisa chamada progresso humano. É verdade. É o progresso que permite a um homicida sair da casa de detenção para a cadeia, e da cadeia para a cela da morte. Toda geração experimenta o mesmo intolerável fastio. Falo como um daqueles de quem se poderia dizer, estatisticamente, que levou uma vida feliz e sempre insatisfeita, pois sempre falta alguma coisa. Mas fico firme em minha conclusão que tudo não passa de uma grandiosa futilidade e que nem ao menos é divertida. O fim é sempre a vanglória, geralmente sórdida e sem o mínimo toque de nobreza do patético.
Os medíocres, que também são “conquistadores de algo”, continuam a caminhar. Neles repousa o segredo do que se chama contentamento, a capacidade de deixar o suicídio para o dia seguinte. Eles próprios não têm significado, mas, pelo menos, oferecem uma saída para escapar da paralisante e disforme realidade interna e externa.
Sou essencialmente e lucidamentre pessimista, ou qualquer –ista demais? Já disse o genial poeta português: “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.”
Que seja assim: brindemos as nossas ilusões, mentiras e futilidades tão essenciais para as nossas reles e substituíveis existências.”
Gilliard Alves