Literatura e Educação (Texto para palestra proferida no 1º Salão Internacional do Livro da Paraíba)
“As únicas palavras que merecem existir são as palavras melhores que o silêncio”. Juan Carlos Onetti (romancista e contista uruguaio)
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Uma piada conta que, em plena pré-história, um homo-sapiens chegou junto de outro e tentou comunicar: “Acabei de inventar a linguagem!”, afirmação a que seu companheiro ouvinte retrucou: “Uhg?!”, sem naturalmente ainda entender bulhufas do que o outro lhe dissera.
Daquele momento para cá, desenvolvemos a capacidade de nos comunicar com as palavras faladas e escritas, apreender os códigos verbais fonéticos inventados antes de, segundo histórias bíblicas, Deus resolver confundir aqueles ingênuos construtores da Torre de Babel fazendo-os falar em línguas diferentes a torná-los incapazes de se comunicar uns com os outros a revelarem mais rapidamente suas supostas descobertas sobre os grandes mistérios da existência.
Falando sobre Deus, dizem, “princípio e fim de tudo”, será interessante mencionar que no Novo Testamento – para os judeus considerado o “Segundo Testamento” – em João 1.1 está escrito: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”. Mais adiante, em João 1.14, ficamos sabendo que “o Verbo se fez carne e habitou entre nós”.
No Dicionário, dois dos primeiros significados da palavra “Verbo” é “Palavra” e “Vocábulo”, sendo a palavra a “unidade mínima com som e significado que pode sozinha constituir um enunciado”, e “Vocábulo” a palavra caracterizada pela cultura onde surge.
Há alguns anos, conversava com um pastor sobre os significados de certas passagens bíblicas e lhe perguntei se ele sabia o sentido da expressão que diz ser Jesus Cristo “o Verbo tornado carne”. Ele me respondeu como qualquer um formado pastor responderia: sem pensar, repetindo o que aprendeu no seminário. Ele me disse que a expressão “o Verbo tornado carne”, segundo o que aprendeu, atesta a divindade de Jesus, “uma vez que, sendo uma expressão do Verbo tornado carne, ele é Deus”. Porém, quando lhe revelei o que compreendi sobre a frase, graças a algumas outras esclarecedoras leituras além da Bíblia sobre o assunto – como a filosofia de Platão, por exemplo, entre outras – seu rosto se iluminou de repente num sorriso de satisfação, tendo ele me dito depois que nunca havia pensado naquela simples verdade que o enunciado revelava. Porque a expressão “Jesus é o Verbo tornado carne” quer nos dizer que ele foi o exemplo vivo de um homem disposto a por em prática – ou seja, tornar carne – suas amorosas teorias – ou seus verbos – sobre como devemos proceder em nossos relacionamentos à construção do reino do Amor, primeiro, sobre a Terra, reino também conhecido como “o Reino dos Céus”.
Assim, como tantas outras teorias não cristãs, todas se processam primeiro no pensamento, primeiro na forma de imagens e, depois de inventada a linguagem verbal, na forma de verbos, palavras, vocábulos, a fim de que, enfim, possam ser expressas na prática – embora as melhores teorias sobre como e porque devemos expressar o Amor, por razões diversas, quase nunca sejam “tornadas carne”.
Entre os muitos significados e valores da palavra “Palavra” há “Palavra de Honra”, um protesto verbal que afirma a realização de uma promessa, e a “Palavra de Rei”, que diz respeito a uma promessa que deverá ser seguramente cumprida, sendo o mesmo que “ter palavra” a definir o que é ser um “homem de palavra” – em nossos dias, cada vez mais difícil de encontrar, embora tenhamos alimentado a esperança de que, hoje, com a completa emancipação feminina, possamos encontrar, senão um homem de palavra, pelo menos uma mulher de palavra.
Entre as muitas palavras que dizemos, há também palavras vazias, ou aquelas ditas pela maioria dos políticos que conhecemos que, sem pudores ou respeito à Ética, aos seres humanos, a qualquer outro ser vivo ou ao planeta, em seus discursos pré-eleitorais não medem as palavras que substancializam suas mentiras, dando-nos o direito de pegá-los na palavra, ou seja, exigir deles que meçam suas palavras e cumpram suas promessas sobre trabalhar em benefício daqueles que os elegeram seus representantes.
Em relação aos tais citados sentidos das palavras, o ator carioca Eduardo Tornagih – a quem agradeço a colaboração – me enviou via Facebook uma indicação de seu Blog “Papo Poético” (http://papopoetico.blogspot.com/), onde apresenta um programa sobre poesia e poetas. Lá ele diz que seu movimento chama-se “Pelada Poética”, porque quer “difundir o prazer da expressão pela palavra. Escrita, lida ou falada. Nosso lema vem de Oswald (de Andrade)”, esclarece ele, lema que reza que “A alegria é a prova dos nove – Quanto mais gente brincando, melhor fica (vide o ex. do futebol)”, sendo a Poesia, segundo Eduardo, uma “espécie de carnaval pra ser jogado como futebol e vivenciado com a delicadeza que se deve ao sexo. Inteligência da beleza, revelação”. E nos pergunta: “Você acrescentaria alguma coisa”?
Num de seus vídeos lá postados, Eduardo Tornagih recita alguns poemas do poeta carioca Augusto Sérgio Bastos, entre eles o poema “Outras palavras”, que diz assim:
"Pede a palavra; mede as palavras
Palavra doce, dócil, palavra fácil
Palavras-chave abrindo portas...
Outras palavras
"Palavra dura, dúbia, palavra-cruzada
Palavra de ordem, sem sentido
Palavra de rei que volta atrás
"Sem palavra, sem censura
Não dá a palavra...
"Palavra de honra?
Meia palavra basta"
Num outro vídeo, ele fala sobre as poesias do poeta, letrista e roteirista brasileiro Geraldo Carneiro. Entre seus poemas, transcrevi do vídeo o poema “A flor da língua”, que diz assim:
"Uma palavra não é uma flor
Uma flor é sue perfume e seu emblema
O signo convertido em coisa-imã
Imanência em flor: inflorescência
"Uma flor é uma flor é uma flor
(de onde talvez decorra
o prestígio poético das flores
com seus latins latifoliados
Na boca do botânico amador)
"A palavra não: é só florilégio
Ficção pura, crime contra a natura
"Por exemplo, a palavra amor"
Hoje, desde que a palavra foi inventada, tudo o que foi desenvolvido em termos de estruturas verbais nos tornou capazes de exercer certas comunicações, mesmo quando ainda muitos teem apenas pouco mais de um ano de vida.
Apesar de o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) dizer que, antes de aprenderemos a pensar, os pensamentos nos vieram à mente, não se pode dizer exatamente quando a linguagem verbal foi desenvolvida, nem como. Como a maioria, sou mesmo incapaz de imaginar com precisão quanto tempo transcorreu entre o primeiro grunhido e a primeira palavra. Provavelmente alguns milênios.
Claro que, quando ainda dando os primeiros passos no desenvolvimento de conversações, a partir de dois anos de idade ainda não sabemos o significado da maior parte das palavrinhas, palavras e palavrões que ouvimos e dizemos. E cada criança tem seu próprio tempo à apreensão de qualquer coisa. Mesmo assim, aos dois anos, a maioria é já capaz de falar muitas palavras, formar frases, quando não gritar e chorar a transmitir muitas alegrias, tristezas e necessidades.
Entre quatro e cinco anos, entretanto, quando já sabemos falar um considerável número de palavras, começamos a mergulhar no aprendizado das regras do jogo da escrita e da leitura, embora não necessariamente nesta ordem. Porque uma coisa é nos expressarmos espontaneamente entre nossos amigos e familiares usando todos os vícios de linguagem que aprendemos no dia a dia, suas gírias e outras, conhecidas como expressões idiomáticas; outra bem diferente é aprendermos quais as formas corretas da comunicação verbal escrita através do estudo da Gramática e suas regras.
Mas será interessante notar que, mesmo que todos os que estão a aprender a escrever tenham que se submeter a elas, alguns grandes artistas escritores nutrem certo desprezo pelo conhecimento das regras da Gramática, tendo alguns deles, como o irlandês James Joyce e o brasileiro João Guimarães Rosa, por exemplos, ganhado reconhecimento artístico e prêmios literários paradoxalmente por tê-las contrariado.
Na contra capa do livro “O ofício de escrever”, do crítico literário mexicano Ramón Nieto, publicado pela Editora Angra – sobre o qual falarei mais adiante – está escrito: “A literatura, com tanta frequência considerada domínio do inefável (sendo o significado de “inefável” paradoxalmente aquilo que não se pode exprimir por palavras), é feita por homens e mulheres que sofrem, gozam, vivem e morrem em um mundo que ora os despreza, ora os enaltece. A criação não é apenas o anseio de criar, nem a posteridade de um exercício de voluntarismo. Tudo que circunda a literatura, da vocação ao sucesso ou ao fracasso, concentra-se na figura do escritor como espelho, tanto de seu tempo como de si mesmo”.
Quanto ao termo “comunicação verbal” às vezes soar um tanto redundante para muitos – uma vez que, pensam, “toda comunicação é verbal, quer falada ou escrita” – devo esclarecer aos aqui presentes que os processos de comunicação acontecem bem antes que aprendamos a proferir um único ai. Porque “O corpo fala”, como reconheceu o psicólogo parisiense Pierre Weil (1924-2008), doutor em Psicologia pela Universidade de Paris, em seu livro com este título (“O corpo fala”), livro que ele bem poderia ter intitulado “Os corpos falam”. Porque, considerando os muitos corpos com os quais se revestiu a Vida em Sua infinita criatividade para Se manifestar no vazio universal, toda Natureza anda sempre a parecer nos comunicar algo. Por exemplo: nuvens escuras que se aproximam “dizem” que logo estaremos sob a chuva. Um cachorro que rosna para nós nos “diz” que não devemos nos aproximar dele, enquanto ao nos abanar sua calda um outro parece estar a nos dizer que gosta de nós e quer fazer amizade conosco.
Entre os que atribuem maiores significados a qualquer movimento do mundo, o poeta inglês Thomas De Quincey (...-...) é um deles. Num de seus textos, ele escreveu que “Até os sons irracionais do globo devem ser outras tantas álgebras e linguagens que, de algum modo, têm suas chaves correspondentes, sua severa gramática e sua sintaxe, e assim as mínimas coisas do universo podem ser espelhos secretos das maiores”.
Apesar de talvez o referido poeta ter reconhecido formas de tentativas do Universo de nos comunicar algo, tais tentativas são, como ele mesmo reconheceu, “irracionais”.
Assim, será fácil constatar que, na verdade, somos nós que muitas vezes atribuímos sentidos e/ou significados àquilo com que ou àqueles com quem interagimos, quer seja uma nuvem onde imaginamos ver um rosto, castelos, animais, paisagens, quer quando vimos uma folha seca cair de uma árvore a parecer nos dizer sobre a brevidade das nossas e da vida de tudo, sendo, portanto, talvez exclusivamente de responsabilidade de nossa subjetividade as leituras que fazemos dos movimentos do mundo e, a partir delas, os significados, os sentidos ou, melhor dizendo, os valores que lhe atribuímos, como também à Vida, a nossos semelhantes e a nós mesmos em nossas interações com eles.
A respeito disso, quando era ainda adolescente, em meus primeiros exercícios de escrita, mantive um diário onde a noite narrava como tinha sido o meu dia. Apesar das críticas que, por muitas razões e irracionalidades, são feitas à manutenção de diários – na maioria, secretos – compreendo como um bom exercício literário a feitura de um diário, assim como redigir cartas e fazer relatórios. Mesmo que, a despeito de seus redatores terem se submetido a exercícios de escrita em escolas fundamentais e universidades, a maioria deles, escrita por engenheiros, advogados, médicos e, entre muitos outros profissionais, professores, seja quase sempre mal escrita e dificulte o entendimento dos ocorridos, muitas vezes prejudicando aqueles a quem certas redações fizeram referências.
Como ia dizendo, depois de ter sido visto assim e assado por outros e outras, quer familiares, amigos ou inimigos – porque, mesmo secretamente, todos os temos – em meu diário escrevi que, aos olhos dos outros, somos tudo, e então pus numa de suas páginas uma lista de adjetivos e, ao lado deles, seus contrários. Por que, por muitas razões e muita irracionalidade, somos momentaneamente ótimas pessoas para uns, enquanto para outros somos péssimos; estamos magros para uns, enquanto outros, no mesmo dia, nos acham mais gordos, sendo a magreza para naturalistas vegetarianos sinal de saúde e, para robustos consumidores de massas, sinal de desnutrição; somos bonitos para uns e feios para outros; inteligentes e burros; simpáticos e antipáticos, e assim por diante.
CONTINUA