Quando Alunos Viram Fuscas
Quando Alunos Viram Fuscas
por: Leandro Villela de Azevedo
Confesso com muita sinceridade que não faço a menor idéia se os meus textos despertarão interesse nos professores e público em geral. Digo isso pois, hoje em dia, há muita gente falando sobre educação, especialmente gente que nunca entrou em uma sala de aula para lecionar, ou a última vez que o fez foi em épocas dinossauricas, o que o faz ter um conhecimento completamente deturpado da realidade das escolas brasileiras da atualidade.
Entretanto, um texto de um certo "teórico" da educação, famoso na modernidade, me despertou mais interesse do que outros. Infelizmente, entretanto, um interesse negativo.
Este homem, com diversas publicações na área educacional, de livros que ficam entre auto-ajuda e conto de fadas estilo Esopo, com intenso pedantismo e apelo a um falso emocionalismo, serviu para muitas pessoas se irarem contra os professores e fazer com que muitos colegas meus desanimassem e se sentissem péssimos, enquanto eu vendo de fora sabia o valor fantástico do trabalho deles.
Em um de seus textos, com versão inclusive em audio-livro, lido pelo próprio autor, ele conta a história de uma velha professorinha e seu fusquinha velho. Nesta história o fusquinha da professora dá problemas e ela o leva ao mecânico, este desmonta todo o motor e não para de buscar a causa do problema até o encontrar em uma análise minuciosa de cada peça. Ao invés de apenas desistir por poder achar que se tratava de um caso "sem solução" o mecânico não desiste, dedicando-se a semana inteira buscando o problema.
Então, utilizando esse critério comparativo, esse autor compara o mecânico dedicado aos professores, como que com um tapa doloroso, dizendo que, se ao invés deles reclamarem dos alunos realmente se dedicassem por completo em achar a causa do problema e dar a solução, eles conseguiriam resolver o problema.
Mas o caro colega (de escrita) cometeu terrível sacrilégio nesse texto. Primeiramente seu mecânico dedicado, que pode dedicar-se uma semana a desmontar e remontar um motor e consertar qualquer defeito, é um personagem lendário. Duvido que haja mais do que um ou dois que ainda em suas oficinas possam se dedicar uma semana inteira a um ato como esse, tendo tal proficiência e podendo sustentar a si e a família apenas com consertos como este.
Ainda que tal mecânico existisse, gostaria de saber se tal “gênio” dos motores seria capaz de montar e desmontar 600 motores diferentes, com problemas diferentes, tendo apenas 45 minutos por semana com grupos de 40 fuscas diferentes por vez.
Antes de haver a resposta, complico mais o desafio, imagine que os fuscas fossem muito carentes e quisessem chamar a atenção para si a cada momento, que deixados de lado por um instante quando a atenção fosse dada a um ou outro automóvel em especial, eles começassem a bater um no outro ou colocar papéizinhos no escapamento do fusca ao lado, e além disso o coordenador da mecânica viesse cobrar outros tantos itens burocráticos necessários.
Ainda que tal proeza fosse possível para um misto de Super-homem com visão de raio-x, inteligência do Batman e rapidez do Flash, ainda assim tal autor teria cometido um erro terrível. Crianças, jovens, adolescentes, não são fuscas. Não são puramente peças mecânicas. Um bom cirurgião saberia explicar melhor do que eu as infitinas diferenças entre querer trocar todo óleo do motor de um carro ou todo o sangue do corpo de uma pessoa, e porque trocar o óleo seria eficiente para um problema do motor e trocar o sangue não traria a cura da AIDS, mas o problema é ainda mais complexo. Transplantes são complexos e tem risco de rejeição, mas o conhecimento não é algo físico.
Talvez algum dia seja possível operacionalizar sinapses nos neurônios e gravar conhecimento em um cérebro (sinceramente espero que não, imagine esse poder sendo usado para o mal) mas nesta impossibilidade, temos que tratar o conhecimento de forma muito mais complexa. O processo de cognição leva em conta apectos psicológicos, emocionais, da fé, da estruturação prévia de raciocínios e conceitos, estes que por sua vez não podem ser visualizados materialmente por qualquer desmontagem física, e que por sua vez, dependem de vários outros fatores, como estrutura familiar, cultura na qual está inserida, etc.
Sendo assim, de tudo o que é preciso a um professor, o que me parece menos necessário é "desmontar" um aluno, pelo contrário, o conhecer "como um todo" vê interações que não podem ser percebidas na compartimentalização das matérias, e que só fazem sentido no todo.
É claro que todo professor com um pouco de consciência sabe que ele é insuficiente, sabe que o seu trabalho é muito pequeno perto do que seria necessário para auxiliar o aluno a resolver todos os seus problemas internos e permitir, assim, que ele tivesse uma interação saudável com seus objetos de estudo, havendo aprendizagem de boa qualidade. E igualmente sabe que por mais que se esforce, as condições da educação, o tempo com o aluno, a relação-professor-aluno-família-escola, podem ser empecilhos complexos.
Agora, o que muitos professores não se dão conta, mas é indispensável para nós termos em conta, é a nossa capacidade de, mesmo não sanando "o defeito" do indivíduo, pois sempre há infinitas coisas a se trabalhar, temos a incrível capacidade de transformar as pessoas, de ajudá-las a repensar suas atitudes, sua relação com o saber, causar nelas uma paixão pela vida, de conhecimento ... é claro que é impossivel chegar a todos, dependendo da conjuntura é impossível chegar mesmo a poucos, mas se cada professor puder trazer esperança, paixão por viver e por saber e vontade, construir um mundo melhor a um único aluno que seja em cada classe, teremos conquistado centenas deles no decorrer de nossa carreira (ou dezenas no caso de professores de fund I) e certamente podemos olhar pra trás e sabendo que mesmo não sendo capazes de ser mecânicos super-heróis, pudemos ajudar a criar um mundo mais humano, onde cada vez mais as relações maquinais é que estão imperando.