Deus na visão de um homem comum (última Parte)
Apesar da presença de certa comicidade em minha resposta, ela não foi apenas formulada com o intuito de divertir-nos, de descontrair-nos diante de questões consideradas de solução “impossível”. Ela foi formulada com base numa teoria ou, dito mais simplesmente, numa forma de ver e interpretar as especificidades de nosso mundo – substancialmente diferente do mundo natural que, como arremedos do Criador (ou mais apropriadamente da Vida criadora), não nos cansamos de tentar modificar. Porque a palavra “Deus” é, como a palavra “Coca-Cola”, e todas outras palavras que inventamos às tentativas de comunicação de nossos pensamentos, um símbolo da eterna força criativa a que também chamamos “Vida”.
É interessante notar que, ao redor do mundo, “Deus” tem várias outras expressões que o representam. Por exemplo, em inglês “Deus” é “God”, em árabe é “Alá”, em sânscrito é “Brahma”, em hebraico “Anoki”, que significa “Eu Sou” etc.
No que diz respeito ao aspecto formal da divindade, Ramayana, místico hindu, questionado sobre se acreditava mais em “Deus” com forma ou sem forma, disse: “Deus com forma é meu pai; Deus sem forma é minha mãe; a quem amarei? A quem desprezarei?”
Em relação à “pura-forma” da divindade, em muitos livros sacros foi-nos dito que “Deus fez o homem a Sua própria imagem e semelhança”. Contudo, outros me alertaram para o fato de que, se a palavra “Deus” é também sinônimo de “Amor”, não lhe seria possível aparecer, no dizer de Gandhi, como o monstruoso colérico-vingativo “Deus” do Velho Testamento (ou, como dizem os judeus, o “Deus” do Primeiro Testamento), também severa e justamente observado e criticado no livro Da Bíblia aos Múltiplos Universos, do Sociólogo e escritor paraibano Gilson Gondim.
No capítulo 15, onde Gilson discorre sobre os problemas concernentes às razões para a salvação, capítulo intitulado “Salvação: obras, fé ou escolha divina?”, ele escreveu: “... é válido assinalar – com referência à salvação pelas obras – que a grande maioria das pessoas numa sociedade como a nossa não é particularmente merecedora quer da salvação quer da danação eterna. Somos parte de uma massa anódina que não é especialmente boa nem má. Estamos longe de ser cruéis como o Deus do Velho Testamento ou bons como Cristo nos exortou a ser. Isto vale para os cristãos fervorosos, para os cristãos nominais, para os que seguem outras religiões e para os que não têm religião”.
“Estamos longe de ser cruéis como o Deus do Velho Testamento”, observou Gilson em seu livro. E por que ele teve a ousadia, inequivocamente herética, de classificar o “Deus” do Velho Testamento como um ser “cruel”? Porque cólera, ira, ódio e vingança não nos parecem atributos dignos de um “Deus” considerado essencial e absolutamente amoroso, como tantas vezes ouvimos Dele – embora alguns filósofos cristãos, entre outros, tenham-nos alertado para o fato de que não nos é possível compreender os propósitos de um Ser absoluto e Seus atos absolutos (em essência, nem amorosos, nem odientos), para quem a morte de crianças inocentes, por exemplo, quer nas cidades bíblicas de Sodoma e Gomorra, nos campos de concentração nazistas durante a Segunda Guerra Mundial ou em quaisquer outras épocas ou lugares de nosso violento mundo desumano nada representam – como sequer representou escândalo para Si mesmo Sua própria violenta morte no Gólgota, quando fora assassinado enquanto manifestara-Se como “Jesus”.
Assim, apesar das opiniões do crente Santo Agostinho quanto aos limites de nossa capacidade de entendimento das dimensões e propósitos divinos, devemos considerar o poder da razão e da lógica – como queria outro filósofo cristão, Tomás de Aquino (1225-1274) – necessários recursos à conclusão de que seria mais sensato se considerássemos a feitura das imagens que temos desse “Deus”, já que são muitas, forjadas a partir das impressões que tiveram Dele todos os que as conceberam, sempre de acordo com as especificidades de suas culturas e idiossincrasias.
Quanto a isso, Xenófanes de Colófon (c. 570-475 a.C.), filósofo grego, escreveu: “Se os bois e os cavalos tivessem mãos e pudessem pintar e produzir obras de arte similares às do homem, os cavalos pintariam os deuses sob forma de cavalos e os bois pitariam os deuses sob forma de bois”.
Aristóteles, concordando que as interpretações da divindade são frutos da tendência humana para as representações de si mesmas, ou antropomórficas, justifica a religião positiva, tradicional, mítica, também como obra política para moralizar o povo.
Entretanto, é exatamente a transferência daquilo que consideramos “moralmente válido” ou “imoral”, para o julgamento divino, o que nos impossibilita de compreender as razões da “ira e violência de Deus”. Porque tais sentimentos aquilo que reconhecemos como um “Deus amoroso” não pode desenvolver.
Graças a tudo isso, em nossos dias crer na existência de um “Deus” se torna, infelizmente, menos eficiente a cada dia. Graças à vã repetição de um de Seus vários nomes conhecidos no ocidente, a Coca-Cola – e, mais drasticamente, a cocaína – têm sido bem mais desejadas e seus efeitos melhor degustados do que aqueles proporcionados por nossa pretendida comunhão espiritual com “Deus”.
Para a maioria das mais antigas culturas do extremo Oriente, registrada de acordo com as experiências existenciais de gerações nos escritos védicos, Aquilo a que nos habituamos a chamar “Deus” é a força-motriz de todas as coisas.
Digo sempre que a palavra “Deus” pode ser outro nome da Vida, mas que a Vida, em si mesma, pode não ser nenhum “Deus”, embora presença fundamental inevitável no interior dos micro e macro-organismos que, num movimento cósmico perpétuo, sem começo e sem fim (já que, como nos mostra a razão, não há algo que possa ter surgido de coisa alguma e, mesmo assim, tudo existe), também nos compõem em camadas e camadas de tecidos e idéias que, ao longo dos séculos, nos têm organizado e desenvolvido ao Seu bom funcionamento enquanto “nossos” corpos, e muito provavelmente também em outros, habitantes de outros mundos celestiais, nos quais apreende individualidades e outras idéias sobre os múltiplos eus de Si mesmo às invenções de Suas identidades individuais e, por tabela, de Sua consciência cidadã.
Epicuro (341-270 a.C.), para alguns, um dos menos substanciais filósofos gregos, questionou: “Deus deseja prevenir o mal, mas não é capaz? Então não é onipotente. É capaz, mas não deseja? Então é malevolente. É capaz e deseja? Então por que o mal existe? Não é capaz e nem deseja? Então por que lhe chamamos ‘Deus’?”.
Quando questionados sobre as “imperfeições” do mundo diante de “Deus”, na Verdade, como observei aqui, apenas outro nome para aquilo que também conhecemos como “Vida” (segundo a razão ocidental, “um contra-senso” – já que muitos dizem o mundo reflexo da perfeição divina), os orientais respondem que “tudo está como deve ser” com aquela tranqüilidade aparentemente apática que lhes é peculiar, convictos de que os séculos, capítulos com os quais nos habituamos a demarcar o Eterno, se encarregarão de nos revelar toda Verdade que queremos saber – e mesmo aquelas sobre que não queremos saber.
Depois de outras tantas sensações e leituras, nas reflexões sobre o valor essencial da Vida e Sua finalidade fundamental, penso que bastam determinados sentires particulares que se coadunam, também, às conclusões de certos filósofos, quer ocidentais ou orientais, antigos ou contemporâneos, sobre o objetivo primeiro e último da Vida: como nos fazer andar é o objetivo das pernas – sem que a elas importe para onde voluntariamente nos encaminhamos – viver, apenas viver é a finalidade essencial da Vida, embora interfiramos em Seu curso (e exclusivamente naquilo que nos diz respeito) quando Lhe atribuímos qualquer outra finalidade que, por este ou aquele motivo, particularmente nos felicite ou angustie.
Porque descobri que estamos aqui como fundamentos da plena Consciência que a Vida, eterna, essencialmente sem nome e seu forma, através das gerações que engendra e ainda engendrará a infinitas manifestações de Seu poder, deverá ter se Si mesma à realização total de Seus muitos sentidos.