Deus na visão de um homem comum (3ª Parte)

Voltando as perguntas de meu filho mais novo, uma vez que temos uma nova geração que (dizem) sabe e quer saber, hoje, mais do que sabia o velho filósofo grego Sócrates em seu tempo, outra pergunta sua foi: “se Deus nos criou, quais instrumentos usou para nos formar?”.

A despeito das conclusões de Rafael sobre o fato de que, para fazer-Se, “Deus teve que criar primeiro Suas próprias mãos”, como exercício de reflexão a obtenção de respostas que melhor o satisfizessem (e não apenas a ele, mas também a mim) comecei a relembrar todas as coisas que aprendi em escolas, igrejas, livros de várias culturas considerados “sagrados” e naqueles outros, escritos por filósofos laicos; quais sejam, aqueles que, ainda entre os chamados “iluministas”, ousaram começar a expressar argumentos independentes dos ditos de “reconhecida inspiração divina”.

Como resposta à questão sobre quais instrumentos “Deus” usou para nos realizar – na Realidade, Se realizar em nós – eu poderia ter-lhe dito como me disse um amigo poeta: “um poema e um violão”. Porque, a considerar que é fundamentalmente através dos movimentos materialistas da Arte que Aquilo a quem chamamos “Deus” tudo manifestou e manifesta, e a considerar que aqueles a quem precipitadamente reconhecemos “Homens” são frutos inacabados da Cultura (promotora daquilo que os sociólogos chamam de “processo civilizatório”), dizer que “Deus” usou um poema e um violão para nos realizar, ou Se realizar em nós, seria a revelação poética de uma considerável parte da Verdade que, infelizmente, assim como Rafael, muitos ainda não perceberam ou compreendem.

Falando em Arte, Aristóteles (384-322 a.C.), como Platão (428 ou 427- 348 ou 347 a.C.), considera as expressões da Arte como imitações. Não, porém, imitação de uma imitação, mas sim o que denominou de “entelequia”, ou o puro desdobramento da forma potencial numa imitação direta da própria idéia, do inteligível imanente no sensível.

Assim, com os recursos da Arte e a imaginação dos artistas apresentações e representações do inteligível universal são encarnadas, concretizadas num sensível, num particular, ou seja, são tornadas “reais”.

O apóstolo cristão João, nas palavras iniciais do que se atribui ser seu evangelho (também inequívoca expressão da Poesia), nos revela que “no princípio era o Verbo”, que “o Verbo estava com Deus e que, mais, “o Verbo era Deus” (João 1:1). E o que exatamente representa a expressão “Verbo” como outro nome da Potência divina senão o fato de que, para regozijo dos idealistas e irritação dos materialistas, mesmo um “Deus”, antes da materialização de qualquer de Seus impulsos criativos, precisou “dizê-los” em Sua mente monumental a trazê-los das idéias que constituem Seu espírito fecundo ao espaço infinito de Suas manifestações materiais?

Já agora começarei a lhes pedir desculpas.

Espero não ter sido demasiada e precipitadamente “prolixo” nesses argumentos iniciais de minhas visões de "Deus". Porque, a despeito do velho e pretensioso ditado popular ocidental, que nos instiga a crer que “para um bom entendedor, meia palavra basta”, será melhor considerarmos as sábias palavras do “Deus-brahma” sobre o poder limitado dos agrupamentos em suas funções elucidativas acerca do Sentido primeiro e último da existência: “para um homem tolo, dez mil palavras não serão suficientes para livrá-lo de sua tolice; mas, para um sábio, resta-lhe ainda ouvir duas mil e quinhentas” – adverte a mais completa personagem apresentada do divino na literatura sagrada.

Assim, para muitos de vocês inevitavelmente deverei ser “prolixo”, como também às vezes incomodamente provocante, ao longo dos minutos que me restam à tentativa de, pelo bem da Verdade, destruir-lhes, sim, destruir em vocês determinadas confortáveis ilusões cuja substância fundamenta-se naquelas primitivas superstições geradoras de todos os tipos de crenças ingênuas que, por sua vez, fundamentam preconceitos, muitos deles perversos e destrutivos, sobre o quê, de fato, deve ou não deve ser considerado valioso em nossas vidas – tudo na tentativa de convencer-lhes de que somos, ou de que podemos ser, menos potencialmente perversos e hipócritas do que nos apontam nossas tacanhas e egoístas necessidades, nossa ignorância, nossa arrogância, nossa vaidade, nossos medos, nossa violência, nossa sede e fome de devorar tudo e todos.

Com a transformação do que sinto na carne em palavras, substantivos, adjetivos, pronomes, verbos e outros recursos orais à difícil provocação do "bom entendimento", procuro aqui torná-los cônscios de que, enquanto responsáveis pelo desenvolvimento de nossa felicidade, de nossa paz, de nossa boa embora efêmera vida individual e coletiva, somos mais do que meros subprodutos virtuais dessa Vida infinita cuja origem, não importa quão “para trás” no tempo possamos ir, sempre, sempre desconheceremos.

Sobre esse assunto, Bertrand Russell (1872-1970), filósofo britânico, escreveu: “Afirma-se – não sei com quanta veracidade – que um certo pensador hindu acreditava que a Terra estava apoiada em um elefante. Quando lhe perguntaram no que o elefante de sustentava, respondeu que se sustentava numa tartaruga. Quando lhe perguntaram sobre o que a tartaruga se sustentava, ele disse: ‘Estou cansado disso. Vamos mudar de assunto’. Isso ilustra o caráter insatisfatório do argumento da Causa Primeira”.

Embora em nosso desenvolvimento pré-Humano tenhamos conquistado alguma sabedoria – e sobre o conceito de “pré-Humanidade” falarei a seguir – nossos medos remanescentes nos denunciam ainda como herdeiros ideológicos daqueles selvagens primeiros que, por instintivos medos ancestrais – e considerável nível de ignorância, que se estenderam para muito além da “Idade das Trevas” – consideraram o Sol, a Lua, toda Natureza, enfim, morada de temerárias divindades que determinavam o destino criativo ou destrutivo de suas precárias vidas.

Sobre o conceito de “pré-Humanidade”, no processo de nossa civilizada formação há distintos níveis observáveis de evolução entre a consciência animal, desumana, Humana e a divina, ou “cósmica”.

Quanto a isso, para o professor George Steiner, anteriormente citado, “nós nem começamos a avaliar os danos infringidos ao homem como espécie e, mais ainda, como espécie que se auto-intitula sapiens”.

Contudo, há quem compreenda que, se a autoconsciência for o critério para definição do ser Humano, a maioria representativa do grande grupo a quem chamamos “Humanidade” ainda se encontra bem próxima de uma consciência animal; isto é, não desenvolveu plenamente a "consciência de si".

CONTINUA