Deus na visão de um homem comum (2ª Parte)
Continuando sobre os questionamentos de Rafael, perguntou ele outro dia: "Papai: Deus está morto?"
Admirei sua preocupação pensando mesmo que ele já houvera lido algo do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), para quem “Deus está morto”. Mas ele ainda não folheara as páginas onde estão expressos os argumentos algo perturbadores daquele falecido neófito anti-Cristo que, tanto quanto a muitos de nós, agradava ao demônio anti-semita Adolf Hitler (1889-1945), tendo-o mesmo influenciado nos anos em que efetivara seu macabro e, felizmente, breve império.
Voltando a pergunta de Rafael, na Verdade ela foi um seu questionamento baseado na informação catequética jesuína, recebida por velhos membros de nossa família cristã, reforçada na Escola – e vice-versa – de que “Deus e Seu reino está no céu”. Porque também quando éramos crianças foi-nos dito que os bons mortos “estão no céu”, foi apenas uma questão de efetivar um básico exercício de lógica para que meu filho supusesse que “Deus”, também reconhecido “bom” e “habitando o céu”, esteja morto.
Como reforço as nossas crenças, há ainda uma interpretação bíblica, entre outras, segundo a qual existem três dimensões celestiais, cuja idéia também inspirou o poeta italiano Dante Alighieri (1265-1321) à criação de sua obra A Divina Comédia: um dos três níveis celestiais divinos, o primeiro, é este que está “acima de nossas cabeças”.
Digo “acima” porque ainda, graças a nossos preconceitos geocêntricos medievais reinantes, muitos não sentem o planeta Terra um dos trilhões de bilhões de bilhões de corpos que vagam pelo infinito espaço sideral. Se todos assim considerassem não seria difícil reconhecer que, mesmo ainda rastejando sobre o planeta, astronomicamente falando, na Verdade todos nós e tudo estamos também no céu.
Continuando, no “Segundo Céu” já começam a situarem-se as “mais profundas regiões celestiais”, onde – dizem – acontecem as constantes batalhas espirituais entre os anjos de “Deus” e os do "diabo" – também inevitável personagem desta palestra.
Finalmente, o “Terceiro Céu” é aquele que a maioria de crentes situa como “o Céu de ‘Deus’”, onde se crê que o divino habita com Seus anjos e onde Dante situou também sua idolatrada Beatriz – ao contrário de certas autoridades eclesiásticas de seu tempo, as quais ele justamente situou no inferno.
Mas a mais provável razão para crermos que é “no céu” que está o “Reino de ‘Deus’” é o fato de que nossa visão astronômica do espaço sideral, mesmo a olho nu, é considerada uma “prova” da monumental obra daquilo que somente na condição de “Ser absoluto” um “Deus-Criador” poderia ter realizado.
Quanto à questão sobre a “morte de ‘Deus’” – cuja efetivação ou necessidade de reforço não diz respeito à intenção desta palestra – Seu deliberado “assassinato” é, segundo alguns, um delito irremediável. Porque se trata de reforçar a potência destrutiva do pecado que, como li certa vez num texto na Internet (não assinado), "enquanto supressão do Redentor, suprime toda graça e todo perdão. Depois deste terrível suposto 'assassinato' o mundo pode encontrar-se à deriva: diante deste trágico evento nossa cultura vacila, os valores supremos se desvalorizam e nossas convicções se revelam mentiras. Pode-se estar condenado a vagar através do nada infinito sentindo na pele o 'sopro do vazio' numa noite eterna"!
Falando da escuridão, na tentativa de esclarecer melhor a razão do questionamento de meu filho Rafael, devo recorrer a um de nossos mentores intelectuais, o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961), para quem a “morte de Deus”, ou seu desaparecimento, não constitui de modo algum um símbolo exclusivamente cristão, uma idéia “nietzcheana” ou “rafaelesca”. “A busca que se segue a morte de Deus”, nos esclarece Jung, “se repete ainda hoje quando morre um Dalai-lama. (...) A ampla difusão desse símbolo é uma prova da presença universal de um processo típico da alma: a perda do valor supremo, que dá vida e sentido as coisas. Tal processo constitui uma experiência típica muitas vezes repetida – continua Jung – por isso ela se acha expressa também num ponto central do misticismo cristão. Esta morte, ou perda, deve repetir-se: Cristo sempre morre e sempre torna a nascer. Comparada com a nossa condição de seres vinculados ao tempo, a vida do arquétipo é intemporal. Escapa ao meu conhecimento determinar as leis que regem a manifestação efetiva ora deste, ora daquele aspecto do arquétipo. Sei unicamente – e o que sabe um grande número de outras pessoas – que estamos numa época ou de morte ou de desaparecimento de Deus”, fato ao qual o professor parisiense George Steiner (1929 - ) em seu livro Gramáticas da Criação chamou de o “eclipse do messiânico”, messianismo que, se devidamente considerado em sua importância essencial, restauraria “o acesso humano à perfeição e a uma condição mais elevada, presumivelmente mais duradoura, de racionalidade e justiça”.
Para os aqui presentes que ainda não sabem o que são os arquétipos, esclareço que eles são resultados de um arcabouço genético-psicológico responsável pelo acúmulo e desenvolvimento das informações intra-genéticas, então ancestrais, que herdamos desde o primeiro Adão a abrir os olhos para o mundo e que, no ato sexual fecundo, temos também repassado até o pleno desenvolvimento do último de nós nascido, também responsáveis pela condição mental de todos aqueles seres vivos dotados de um cérebro mais ou menos complexo como o nosso, onde estão guardadas as pulsões que desencadeiam reações instintivas as suas sobrevivências e o aparecimento do infinito potencial de talentos adquiridos, desenvolvidos e distribuídos no longo processo da evolução.
Como impulsos intra-genéticos, são os arquétipos também responsáveis pela produção das visões oníricas que nossos ancestrais tiveram e que nós, simbolicamente, temos do mundo e de nós mesmos – já que, analisando as visões dos profetas, tanto quanto as dos artistas e seus símbolos, Jung concorda que "os sonhos são expressões essenciais da linguagem do Criador".
Assim, é de forma instintivo-natural que as pulsões arquetípicas dos povos os impulsionaram às expressões que, entre muitas coisas, apresentaram interpretações várias daquilo a que atribuímos status de “Sagrado”, aparecendo de aspecto semelhante, como os arquétipos formadores do círculo ou da cruz, mesmo entre povos de culturas que nunca tiveram nenhuma relação entre si!
Diante do que apreendi com as teorias de Jung, compreendi que até mesmo o mais simples pensamento é, na Verdade, produto de impulsos arquetípicos, uma vez que em seu livro Psicologia da religião oriental e ocidental ele observou que, “antes que os homens aprendessem a pensar, os pensamentos lhes vieram à mente”!
Jung nasceu na Suíça em 1875. Apesar da atual proliferação de templos das mais diversas crenças espiritualistas e, em conseqüência, de uma considerável elevação da quantidade de pseudocrentes "adoradores" daquilo que consideram “a divindade”, sinto que, das teorias deístas às Suas realizações práticas (ou, para usar termos bíblicos, nas instâncias da realização do Verbo tornado carne), vivemos ainda uma época de confusão e obscurantismo no que diz respeito à exata significação do que seja Aquilo a que chamamos “Deus” no surgimento de Suas genuínas representações – ou, como mais apropriadamente observou outro dia um amigo, das genuínas "apresentações de Deus” em nossos dias, já que as "representações" da divindade apenas histórica e culturalmente repetem, mesmo sob formas consideradas “novas”, e apesar da crítica à Idolatria, o mesmo conceito secularmente difundido pela tradição ocidental sobre as aparências reconhecíveis, aceitáveis e permissivamente cultuáveis do Divino.
Em relação a isso, é notório o fato de que, deste lado do planeta, estamos tão habituados às influências da cultura cristã que dificilmente aceitamos a figura de Krishna, por exemplo, milenar precursora apresentação avatar hindu do divino - com sua pele azul, seu aspecto andrógeno e suas roupas festivamente coloridas - como uma das primeiras autênticas manifestações do “Deus", então "Brahma”, na história das humanas expressões do Sagrado.
CONTINUA