EU MÃE! (DEPOIMENTO)
Sempre fui uma pessoa dura, radical mesmo. Os fatos tinham que ser muito bem explicados, logicamente, para que eu os aceitasse. A genética era tudo! Tinha não só como um pré-conceito, e nem somente como preconceito a adoção. Na verdade tinha verdadeiro horror à idéia. Como educar uma genética desconhecida, já que era, na minha opinião, o que regia a vida!
Mas a escola da vida é dura. Quando temos uma lição a aprender, ela judia da gente... E malgrado meu, descobri que não poderia ser mãe, a não ser que abdicasse do meu grande amor. Educação é fogo...São raízes que nos ligam a conceitos, nos fazem sofrer, lembrando a todo o momento que o amor é o único sentimento a ser cultivado. Mas amo meu marido... Como escolher? Aprendi que a gente ama APESAR DE e não POR CAUSA DE... Como posso deixá-lo nesse momento?
Não é esse o caminho... Vou recorrer a ciência... Essa sim, a verdadeira resposta que busco. Azoospermia...Ausência de esperma... Década de 90. Os primeiros passos da medicina na fertilização artificial e na doação de esperma...Processo caríssimo... A AIDS ainda quase uma incógnita. Busco um especialista, preciso saber do processo. O banco de esperma é controlado geneticamente, porém não existe o controle da AIDS. Risco!
Colocando os fatos na mesa: teremos o dinheiro suficiente? Quantas aplicações teremos que fazer? Qual o custo de cada uma? E em cada tentativa, o risco de contaminação. Quer mesmo um filho a esse preço? A genética também será uma incógnita, já que não existem estudos que avaliam as informações dadas pelos doadores...
Avisamos a família... Não teremos filhos! Família reunida, pais chorando, marido desesperado, deixando nas minhas mãos nosso casamento, e eu impassível. Não adianta... A posição está tomada.
O meu irmão me fala:
-Você está perdendo a chance de ser feliz!
Eu dou risada...
Mas aquela frase não me saiu mais da cabeça. Você está perdendo a chance de ser feliz... Estou mesmo? Eu sou feliz... Sou mesmo? E o futuro...Como será?
Noites de sono perdido... Dias com o mesmo pensar... Minha mãe extremamente triste... E seu aniversário perto...
Seria mais uma reunião em família...Ah se eu pudesse dessa data escapar. Até hoje não sei explicar o que aconteceu...Foi tudo num relance. Ninguém sabia o que se passava na minha cabeça, da luta que eu estava travando. Mas, família toda reunida, vamos fazer um brinde a aniversariante. Me levanto e digo a todos: ESTOU GRÁVIDA... Tumulto geral... Dei um tempo e continuei a falar: grávida de uma idéia...Preciso da opinião de vocês. Quero adotar uma criança, mas não vou admitir rejeição. Alguém contra a idéia?
Choro geral...Todos me prometeram que seria a melhor solução, o melhor caminho a tomar...Que a criança seria recebida de braços abertos e tão amada como se sangue da família tivesse.
Mais uma vez, a minha personalidade atuando...Tinha que fazer TUDO dentro da lei... Nada de burlar o esquema. Procuraria as autoridades competentes e faria todo o processo necessário a adoção.
Eu e meu marido procuramos o Foro de SP, e muito insegura e com muita vergonha de ter que procurar uma criança para que eu me tornasse mãe, cheguei ao balcão, falando em voz bem baixa que queria entrar no processo de adoção. Como é difícil lidar com os órgãos públicos! Enquanto não repeti em alto e bom tom, a recepcionista não me atendeu! Naquele momento, quase desisti. Mais uma vez minha personalidade atuando... Quem ela pensa que é pra me fazer desistir?
Vou em frente no processo... Entrega de documentação. Ai sim me deparei com um homem gentil, que para nos ajudar, fez nossa ficha com data retroativa, como se estivéssemos na segunda fase e nos mandou para a entrevista com psicólogos da área. Quantos? Cinco... Um de cada vez...a fazer sempre e sempre as mesmas perguntas. Minha paciência no seu limite. Não comíamos ou bebíamos nada desde a manhã... Eram aproximadamente 17 h. O passo final, entrevista com o Sr.Dr.da Vara de Infância e Juventude do Estado de São Paulo (grande título... que homem lindíssimo). Ele só nos fez uma pergunta:
Querem mesmo um filho, ou querem salvar seu casamento?
Naquela altura do cansaço e irritação, falei pra ele:
-Casamento, que casamento? Esse rapaz aqui.
Eu nem conheço!
Ele achou a resposta encantadora (quem diria!). Nos aprovou com louvor e nos colocou no inicio de uma lista, que demoraria dois anos para que chegasse a nossa vez.
Isso tudo aconteceu no dia 19 de fevereiro de 1992, alguns dias após o aniversário da minha mãe. Mandaram que aguardasse a chamada em casa, mas que levasse uma vida normal, pois a média de chamada variava em 12 a 24 meses. Deixei em aberto o tipo de criança e o sexo. Só pedi que fosse de até um ano. Eles são bem impessoais!
Dia 11 de março, logo após o almoço recebo um telefonema: vocês podem estar aqui dia 13 pra buscar seu filho...Ele tem nove meses. Não esqueçam de providenciar o enxoval.
Pânico!!!!! Pânico geral... Saímos correndo...Comprando roupas, mamadeira, comida, leite, enfim tudo o que uma criança necessita. Mas tudo precisava ser lavado e passado...Minha sogra em casa ajudando, o marido indo buscar o berço... Uma loucura... Tínhamos dois dias pra providenciar uma vida a essa criança!
O dia chegou. Uma sexta-feira 13. Fomos ao Fórum conhecer a criança... Eu disse conhecer! Eu, marido, irmã (que seria a madrinha), mãe e sogra! Chegando lá nos levaram a sala da Juíza, pediu que nos sentássemos. Nesse momento meu marido fala... Se prepara, você não irá encontrar nenhum bebe Johnson's. Uma porta de abre... Entra uma enfermeira com uma criança enrolada, como se fosse um recém nascido...
Quem é a mãe? Todos me olham. Eu me levanto. A enfermeira joga, literalmente, a criança no meu colo... Todos correm para olhar! Meu marido diz...Calma...É você quem tem que decidir. Suspense na sala...O nervoso toma conta de mim... Eu começo a rir..
Mas meu riso não era de aprovação. E sim imaginando onde eu estava me metendo! Todos viram minha reação como um sim e começaram a comemorar!
Eu pergunto...Qual a alimentação dele? Em que fase está? Usa chupeta normal ou ortodôntica? Riso geral na sala...É uma criança de FEBEM minha senhora...Dê tudo o que quiser dar.
Assinamos os papéis. Teria a guarda dele por um ano...Pra depois decidir o que faria com ele...As crianças são tratadas como simples mercadorias!
Saímos do Fórum por volta de 18:30 h, com o Eduardo conosco. Mas tudo o que tinha feito em termos de compras, não era possível utilizar. Comprei roupas para crianças de nove meses e ele tinha o tamanho de uma criança de no máximo três meses.
Lá fomos nós comprar roupas. As fraldas de recém nascido, pra ele eram grandes. Durante o trajeto pra casa, ele fez cocô três vezes... Quando chegamos em casa e fomos desenrolá-lo daqueles panos que estava, notamos o seu estado... Tinha as mãozinhas e os pezinhos machucados (depois ficamos sabendo que eram mordidas de formigas). Muitas marcas na cabeça...Com feridas (o cabelinho dele era claro... possivelmente água oxigenada.. Que feriu o couro cabeludo). Nu, ele era igual a uma criança da Etiópia...Só tinha barriga! Ele não fazia um só movimento... Nem sorrir sabia!
O menino não aceitava nada! Nem água ele bebia...Mais não parava de fazer cocô... As fraldas descartáveis eram grandes...E não tinha comprado fraldas normais...Ele estava todinho assado...Chorava que nem um condenado.
Uma vizinha nos aconselha a procurar um médico... Nenhum médico particular quis atendê-lo. Procurei a rede estadual...Queriam a mãe dele para o atender...Eu tinha a guarda. Cansada...Assustada...Só tive um jeito...Fazer escândalo, para ser atendida.
Foi quando descobri que ele estava com uma desnutrição de 3º grau...E correndo risco de vida. Desespero... Ele corria risco de vida! Sai de lá desesperada...Mas era madrugada de sábado... Somente teríamos contato com o Fórum, na segunda feira... O que fazer?
Lembramos de uma amiga, que estava formada em pediatria...E saímos pelo mundo a procurá-la...Foi a nossa salvação. Ela cuidou do Eduardo e me disse que eu teria poucas chances...Pois ele estava com 5.3 kg muito abaixo pra sua idade e o desenvolvimento psico-motor de uma criança de 2 a 3 meses... Que se não o recuperasse até ele estar com 12 meses, ele teria seqüelas pra vida toda.
Passou uma dieta de recém nascido...E controlava o peso quatro vezes ao dia...No consultório! Ele não poderia perder mais nenhum grama, pois seria necessário colocá-lo no soro e não resistiria! Quanto ao desenvolvimento psico-motor, deu a tabela para que fosse alcançada no menor espaço de tempo.
Ao mesmo tempo, o Fórum exigiu que para que ficássemos com ele, teríamos que nos mudar para uma casa, já que morávamos em apartamento, o que não era indicado para se criar uma criança... Estávamos preparando também a mudança, porque em 30 dias teríamos a visita de uma agente do bem estar do menor, que se não estivesse de acordo, nos tiraria o Eduardo.
Passei 15 dias sem dormir e sem tomar banho...Parava pro banho e cochilava...Quem me lavava mesmo era meu marido! Sentava embaixo do chuveiro...Encostava na parede a apagava! Por 15 minutos...
Nem lembrei que o Fórum existia...Só queria salvar a criança. Não conseguiria viver com a culpa dessa morte na cabeça! Quando o perigo passou, voltei ao fórum sozinha com ele...Ele já caminhando...Dois meses depois. Coloquei o dedo na cara do juiz e EXIGI a guarda total da criança, ou seja... Só sairia de lá, mãe. Eu venci!
Nesse momento, me deram a ficha médica dele, e o juiz falou...Nossa nem acredito, esse menino está vivo mesmo? Na curta vida dele, ele já tinha três pneumonias, sarampo e um mundo de doenças infantis!
Ao comemorar um ano...Em sua festa...ele era uma criança sadia...Normal! Só o seu peso ainda estava um pouco abaixo da tabela. E seu cabelo era castanho, como o meu. Aliás, quem nos conhece nem acredita que ele não é realmente filho de barriga!
Hoje ele tem quase 18 anos (fará agora em junho), é esperto, falante, comunicativo. Um QI acima da média, forte e extremamente carinhoso.
Tudo o que passei com ele foi realmente as dores do parto que não tive!