10 DE JUNHO. DIA DE PORTUGAL, DE CAMÕES E DAS COMUNIDADES PORTUGUESAS. O TRANSLADO DA CORTE PORTUGUESA PARA O BRASIL
10 DE JUNHO. DIA DE PORTUGAL, DE CAMÕES E DAS COMUNIDADES PORTUGUESAS.
Camões poeta maior
da lusa língua escultor
no épico foi prior
da lírica grão-mentor.
SerPan
Portugal é um país de pequena extensão territorial e população igualmente diminuta. No entanto, ao longo de sua existência como nação, que já se vai aproximando do primeiro milênio, tem dado ao mundo exemplos extraordinários de qualidade e operosidade de sua gente.
Cinco séculos passados maravilhou o mundo de então com suas descobertas de além-mar que deram “novos mundos ao Mundo”. Também, há quase o mesmo tempo, vira nascer em seu seio esta que é hoje tida como uma das maiores cerebrações da humanidade, em todos os tempos, Luís Vaz de Camões. A data exata de seu nascimento segue sendo incógnita, conquanto Manuel Faria e Souza, num de seus mais fecundos e percucientes estudiosos precise o ano de 1524. O dia ninguém conhece.
Dono de uma cultura polimorfa incomensurável dominava todos os idiomas cultos de sua época e o conhecimento que detinha das ciências de então, que brota de sua obra, ainda hoje surpreende e mesmo espanta a quem a lê.
É fora de toda dúvida ter estudado em Coimbra (em sua afamada Universidade? Não há registros), questão que ele mesmo dirime nos versos de alguns sonetos, como o que inscreve no Cartão-Postal da Cidade: “Doces e claras águas do Mondego” e se confirma, depois, na letra da canção: ”Vão as serenas águas do Mondego descendo...”. O vate-mor viveu sempre “Em perigos e guerras esforçado”, por isso que em sua obra Rhythmas (Rimas), assenta: “Numa mão sempre a pena e noutra a espada”.
Foi ele o renovador, enriquecedor e cinzelador da lusa língua, que se pode bem dividir em antes e depois do genial poeta. Escreveu muito, acerca de tudo e sob todas as formas literárias existentes, conquanto tenha sido a poesia sua forma de expressão mais exuberante.
Do sábio alemão Wilhelm Storck merece a distinção de “filho legítimo do Renascimento e humanista dos mais doutos e distintos do seu tempo” pelos “múltiplos e variadíssimos conhecimentos em história universal, geografia, astronomia, mitologia clássica, literaturas antigas e modernas, poesia culta e popular, tanto da Itália como da Espanha”. Dele disse, também, Schlegel: “Camões vale toda uma literatura”.
Camões é um poeta essencialmente lírico. Canta o amor, a saudade, a despedida, a frustração amorosa, o desespero da distância, a natureza, a beleza feminina, a contemplação, o apelo às coisas simples da vida. Seus sonetos são primorosas obras de arte e de genialidade.
Sua obra lírica é densa, inconfundível, inovadora, só não sendo mais vultosa ainda por lhe terem furtado os manuscritos do Parnaso, coletânea lírica que ultimava para levar ao prelo. Mas é certamente seu opus magnum Os Lusíadas, poesia épica impactante, definitiva, inexcedível, na qual canta “o peito ilustre lusitano” e os percalços da viagem de Vasco da Gama às Índias, abordando todos os fatos e feitos da lusa gente, desde sua origem até o momento da edição do poema. Camões é, para nós, o Príncipe Perpétuo dos Poetas de expressão portuguesa.
Por isso que Portugal, uma vez mais em feitio singular e de extrema felicidade escolheu o dia de sua morte, 10 de junho, para marcar o Dia da Nacionalidade Portuguesa, o Dia da Raça, que as Comunidades (dir-se-ia melhor Camõesnidades) lusitanas anual e festivamente relembram e, se as ajudam “o engenho e arte”, “cantando espalharão por toda a parte” “deste rotundo Globo”, visto ter sido, ele próprio, um de “aqueles que por obras valerosas/ se vão da lei da Morte libertando”.
Temos certeza que, vivo estivesse à altura, o bardo iluminado não deixaria de também cantar e louvar esta outra epopéia da gente lusitana, que este ano está a completar o bicentenário: a da Transmigração da Corte Portuguesa para sua colônia maior e mais rica, “na quarta parte nova” situada, no outro lado do “mar-oceano”, a fim de “No Brasil, com vencer e castigar/ o pirata Francês, ao mar usado” (Os Lusíadas, X-63).
O TRANSLADO DA CORTE PORTUGUESA PARA O BRASIL. REFLEXOS LÁ E CÁ.
“O brasileiro é um Narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Nossa tragédia é que não temos o mínimo de auto-estima”.
Nelson Rodrigues, dramaturgo.
O translado da Corte Portuguesa para o Brasil foi um feito monumental e um episódio grandioso. A maior e mais arrojada navegação que o Atlântico já testemunhou. Sob o aspecto puramente náutico a portentosa empreitada só é equiparável àquela empreendida pela majestosa esquadra cabralina, três séculos antes, que descobriu o Brasil, foi à Índia e assentou feitoria em Calecute. Para muitos a teria mesmo suplantado.
A Guerra Peninsular, no contexto das invasões napoleônicas ensejou, uma vez mais, que o minúsculo Portugal que trezentos anos antes houvera dado “novos mundos ao Mundo”, viesse a ocasionar profunda transformação na face do mundo de então. Mudanças geográficas, geopolíticas e geopopulacionais.
A verdadeira história dessa fantástica epopéia vem sendo, entretanto empanada e deturpada por pseudo-historiadores em publicações de conteúdo duvidoso, ávidos de notoriedade e lucratividade, pelo recurso a meias-verdades (ou meias-mentiras?) e adjetivações malevolentes que descambam para o grotesco, levando nossa população menos bem informada a ter como caricatas, ridículas mesmo, as figuras que compunham a família real portuguesa ao tempo em que esteve no Brasil à frente do império luso-brasileiro.
Isso se fez mais intenso e evidente após uma série levada à TV por cadeia televisiva nacional que reduziu à expressão mais simples e risível os principais membros da realeza lusitana, atassalhando principalmente a figura de D. João VI e também, seguidamente, a de seu filho e sucessor, D. Pedro I. A rainha-mãe, D. Maria I, somente tratada como “A Louca”, como se houvesse nascido e vivido sempre assim, não importando, ou não sendo referido, a lúcida rainha que foi até ser acometida por grave moléstia depressiva, hoje conhecida como transtorno bipolar do humor, reversível com a terapêutica.
Folhetins televisivos desse jaez só fazem por reduzir a auto-estima de nosso crédulo povo, ao lhe ser transmitida, falsamente, a idéia de que seus líderes antepassados maiores, ao invés de valorosos e destemidos, eram medrosos, caricatos, ridículos.
Na verdade, o processo de linchamento do regime monárquico em geral e dos membros desse sistema que ocuparam o trono do Brasil se deflagrou após o golpe militar – melhor seria dizer quartelada – que derrubou o governo imperial brasileiro, à revelia da população (que adorava o imperador Pedro II) e a mal de seu grado, a fim de garantir e solidificar o novel regime republicano que, ao longo de todos esses 119 anos de imposição ainda não demonstrou a alegada e prometida superioridade apregoada ao povo manu militari. Impunha-se “apagar do mapa” a boa imagem que até então gozavam entes e gentes do deposto sistema administrativo, muito à semelhança do que segue sendo praticado ainda nos dias correntes.
Cumpre assim, nessa revisita à epopéia da translação da Corte portuguesa para sua colônia americana, máxime no que tangencia o processo de transição da autonomia, mantermo-nos em consonância com a verdade histórica.
Para início de argumentação, nada mais injusto e inverdadeiro o que se tenta fazer crer à opinião pública sobre a personalidade do príncipe regente lusitano, mostrado como glutão, pusilânime, inepto, poltrão mesmo, e de nosso primeiro imperador constitucional, afigurando-o como um libertino, estróina, desastrado e omisso.
Se há na nobreza portuguesa e brasileira nomes que mereciam ser respeitados, venerados mesmo, estes são os de D. João VI e de seu filho D. Pedro I, monarca inaugural da efêmera monarquia brasileira.
Em guerra com a Grã-Bretanha, Napoleão tentou impor o bloqueio continental europeu aos ingleses, visando a enfraquecê-los, ao qual foram forçados a aderir os países do eurocontinente ocidental, à exceção do pequenino, mas altivo Portugal, arquialiado da Inglaterra (desde 1372). Sob o falacioso argumento de implantar as idéias da Revolução Francesa o déspota nada esclarecido, tido por muitos como o verdadeiro Anticristo, Napoleão Bonaparte, derrubou reis e rainhas, apoderou-se de quase todo o continente europeu, mudando, para sempre, seus limites territoriais e estruturas, megalomania que culminou com a usurpação do trono francês e subseqüente autoproclamação como Imperador de França. Em seu desvario expansionista não respeitava acordos, tratados, regimes; não declarava guerra: invadia, subjugava, depunha, impunha.
O cataclismo devastador das invasões napoleônicas veio subitâneo, crescente e avassalador... como um tsunami! Turbilhão beligerante que aterrorizou e ensangüentou o Velho Continente. O mundo estava polarizado: de um lado os exércitos ditos invencíveis de Bonaparte - a Grande Armée; de outro, a esquadra naval todo-poderosa da Inglaterra; a separá-los o estreito Canal da Mancha. Que poderia fazer o fragilizado Portugal ante a iminência de um terremoto bélico entre os dois gigantes?
Às ameaças de invasão francesa o regente do trono português contrapôs todas as tergiversações e negaças que lhe foram possíveis dispor, fingindo mesmo com algumas ostensivas, mas tão-somente ilusórias atitudes aderir ao boicote – dir-se-ia “para francês ver” --, enquanto negociava secretamente com o trono inglês a transferência da sede do reino português para o Brasil e a subseqüente defesa de Portugal.
Esse estratégico "coup-de-theátre" permitiu-lhe preparar, condigna e adequadamente, a mudança para o Brasil da Corte de Lisboa, com toda a máquina administrativa do Estado, instalando aqui a sede, que ele sonhava definitiva, do império luso, como havia já anteriormente proposto (e detalhado) o marquês de Pombal a seu avô, D. José I, de quem fora ministro plenipotenciário.
Ao receber o ultimato de Napoleão para renunciar à neutralidade e aderir ao bloqueio continental contra a Inglaterra até 1º de outubro (de 1807), D. João tinha as tropas francesas na fronteira e belonaves inglesas no Tejo.
Ante a ameaça de ser aniquilado por Napoleão ou ver a Madeira, os Açores e as colônias de ultramar, incluindo o Brasil, tomados pela Inglaterra, o governo português escapou dos dois. Entre dois fogos D. João fez a opção certa. Entre a prudência útil e a bravura inútil, o regente deu a ordem de embarcar. "Uma jogada brilhante", aponta Kenneth Ligth.
Não se tratou, portanto, de fuga açodada da família real, como anedoticamente hoje se declina, mas sim de mudança radical e permanente da sede do trono lusitano. Vieram de lá os arquivos públicos, a prata e as relíquias das igrejas; o ouro, os diamantes e o dinheiro do Erário real; a magistratura, os ministros, clérigos, médicos, artistas, guardas, armamentos e serviçais; todas as coleções da Real Biblioteca portuguesa, uma das mais extraordinárias da Europa, instalada num pavilhão do Palácio da Ajuda, e as da Biblioteca particular do Regente; as jóias da coroa, carruagens, obras de arte e bens particulares de cerca de 15 mil transferidos, número que diz bem da grandeza e importância da decisão que tomara. O embarque de um contingente tão elevado de pessoas pressupõe ter sido, compreensivamente, muito tumultuado.
Nada de bravatas e heroísmo inúteis nem sacrifícios irreparáveis aos súditos indefesos. Com essa pensada decisão D. João e sua família puseram-se a salvo da humilhação e escárnio que o Corso já havia imposto a Fernando VII da Espanha (irmão de sua mulher Carlota Joaquina), seu pai, Carlos IV, e sua família, postos a ferros, nas lúgubres masmorras parisienses, passando o trono espanhol para as mãos de José Bonaparte, irmão do usurpador. Os críticos dos primeiros tempos “não enxergaram a grandeza e a coragem da decisão tomada por D. João”, pondera Kenneth Light.
Coisa que poucos sabem, porque escassamente divulgado, é que a corte espanhola também fez, à altura, uma tentativa frustrada de mudança para a América; não deu tempo, o embarque foi prontamente sustado com a prisão do rei Carlos IV e sua família pelo implacável tirano.
Para a transferência havia planos, havia estudos, havia decisão; faltava oportunidade, que então se configurou. Essa transmigração intercontinental possibilitaria a continuidade do trono de Portugal nas mãos da Casa de Bragança e a integridade de seus domínios.
Foi assim possível, não apenas à família real, mas ao conjunto do Estado português, deixar Lisboa a 29 de novembro, sob a proteção da esquadra britânica, reflexo da provecta aliança entre os dois reinos e da materialização de acordo estratégico adrede e minudentemente articulado. Apesar das agruras e perigos não há um só registro de morte ou acidente fatal durante a viagem.
Ao entrar em Lisboa, no dia seguinte, Junot, o jovem e aguerrido general das hostes napoleônicas teve a frustração de constatar que todo o efetivo do trono português havia escapado, com bens, valores e registros documentais, deixando apenas o supérfluo e renovável expostos aos saques e atos de vandalismos perpetrados pelo iracundo general na capital do País e na cidade do Porto. Ficou, literalmente, “a ver navios”.
Acabrunhado, não resistiu às coléricas admoestações do soberano francês: acometido de loucura, praticou suicídio. Desse funesto episódio sua viúva faz relato em pitoresco livro de memórias. Anos depois, o outrora potentado Bonaparte, posto em desgraça em seu exílio de Santa Helena, sobre o modorrento regente, redimindo-o, registrou: “Foi o único que me enganou!”. O aparente poltrão, ao inverso do valiente espanhol Fernando VII, escapou de virar joguete nas escuras e mal-freqüentadas enxovias francesas. Napoleão registraria ainda em suas memórias: “Foi (a Guerra Peninsular) o que me destruiu. Todos os meus desastres tiveram origem nesse nó fatal”.
Chegado ao Brasil, o príncipe pôde mostrar toda sua habilidade e visão administrativa e até exercitar propósitos expansionistas, como já se verá.
D. João aportou primeiramente na Bahia, onde, após ouvir minuciosa e convincente argumentação do futuro visconde de Cairu, decide emitir carta-régia “abrindo os portos brasileiros às nações amigas”.
A abertura dos portos e o fim da proibição de acesso ao Brasil representaram, para nós, um salto quântico. Ainda em sua curta estada em Salvador, criou a Escola de Cirurgia da Bahia, a instâncias do pernambucano José Correa Picanço, médico e cirurgião da Corte que acompanhou o Regente, e um curso de agricultura na capital baiana.
Pela primeira vez um soberano europeu pisava o solo americano. Foi também, mais tarde, o primeiro monarca europeu a ser aclamado na América (1818).
“Com a chegada da corte à Bahia de Todos os Santos começava o último ato do Brasil colônia e o 1º do Brasil Independente”, reconhece o escritor Laurentino Gomes, autor do campeão de vendagem sobre o assunto: "1800".
Ao mudar a capital do Império Português de Lisboa para o Rio de Janeiro o Príncipe Regente não chegou aqui como foragido ou exilado, mas como soberano em solo seu.
Tão logo instalada a corte e os ministérios D. João declarou guerra a Napoleão, o que lhe possibilitou, como atos de represália, a anexação da Banda Oriental (atual Uruguai), pertencente ao trono espanhol então feito coligado do terrible tirano corso, em 1816, com a conivência e até velado incentivo da aliada Inglaterra, estendendo os domínio brasileiros à bacia do Prata, situação que se prolongou até 1822, e a invasão e tomada de Cayenne, sede da Guyane, território francês dalém-mar, consumada pelas tropas luso-brasileiras sediadas no Grão-Pará. Em regozijo por esse feito militar foi encenado, em 1809, um espetáculo em Belém, na Casa da Ópera, obra do notável arquiteto-régio Antonio Landi.
Achamos, como muitos, que a mudança da sede do trono do Império português para o Brasil constituiu episódio igual ou equiparável ao advento da Independência, posto que esta foi, afinal, direta e natural conseqüência daquela.
No seu 1º manifesto na nova terra D. João proclamava, alto e bom som, que “... a corte de Portugal levantará sua voz do seio do novo Império que vai fundar”. Realmente, a independência formal não tardaria com a elevação do Brasil à dignidade de Reino Unido ao de Portugal e Algarves, em dezembro de 1815. Da noite para o dia, com a mudança da Corte para o Rio o Brasil tornara-se a mãe-pátria e Portugal a colônia, - a chamada inversão política brasileira - iniciando-se aí a contagem regressiva para a Independência que viria logo a seguir.
Criou a escola Anatômica, Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro e o Jardim Botânico; transferiu a Real Academia de Guardas-Marinha, a Real Academia Militar e a Casa de Suplicação (Superior Tribunal do Reino) de Lisboa para o Rio; logo seguiram-se: a Academia de Artilharia e Fortificações, a abertura da Real Biblioteca Pública, com as coleções trazidas de Lisboa, que incluíam exemplares raríssimos, depois encorpada com o precioso acervo particular do conde da Barca. Criou um laboratório químico e instalou o Erário Real, a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, depois Academia de Belas Artes, o Teatro São João, o Museu Real e uma Junta de Comércio na capital do País. Em Salvador, o Teatro São João e a Real Biblioteca e no Maranhão o Teatro União, em franco sinal de incentivo à cultura.
Ao abolir o alvará de sua mãe, D. Maria, de 1785, que declarava extintas e abolidas as fábricas no Brasil, abriu caminho para o surgimento de numerosos parques fabris e indústrias agropastoris, fortalecendo esses setores. Licenciou a instalação de uma fábrica de vidros, autorizou a funcionar uma outra de pólvora e uma fundição de artilharia, núcleo inicial da indústria bélica pátria. Introduziu a siderurgia no País, utilizando fornos suecos, instalados em Congonhas do Campo, Minas Gerais e incrementou a abertura de estradas, incluindo uma de cerca de 800 km entre Goiás e o Grão-Pará, seguindo percurso semelhante à atual Belém-Brasília, para facilitar a comunicação com a recém-ocupada Guiana Francesa e a aclimação de inúmeras variedades vegetais exóticas, de lá provindas, no Jardim Botânico de Belém.
Fundou o Banco do Brasil, nosso hoje maior e mais importante estabelecimento bancário, que iniciava suas ações de investimentos creditícios principalmente para os setores agrícola, comercial e industrial.
Na bagagem provinda de Portugal veio a primeira tipografia que cá se instalou a Imprensa Régia, que logo passou a estampar a Gazeta do Rio de Janeiro, quase em simultâneo com a ufanística folha baiana Idade d’Ouro do Brasil, ademais de muitos outros periódicos que chegavam quase a equiparar-se com o Correio Braziliense, de Hipólito José da Costa, que circulava regularmente em Londres.
“Em apenas 13 anos o Brasil ascendeu de colônia a nação independente, próspera e respeitada, efeito direto da vinda da Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro”, nos diz, em crônica da época, o Pe. Perereca.
Em 18 de junho de 1815 Bonaparte, o “devastador de impérios” é definitivamente derrotado em Waterloo e desterrado na ilha de Santa Helena, degredo que amargou até a morte, em 1821.
Em 06 de fevereiro de 1818, o Regente é coroado e aclamado rei, como D.João VI.
O atilado monarca tudo fez e resistiu no mais que pôde para manter no Brasil, que amava sinceramente, a sede do trono português, opondo-se habilmente por quase 14 anos a regressar a Lisboa, o que fez com água nos olhos e a alma despedaçada, aqui deixando seu rebento mais querido e seus netos. Foi ele o verdadeiro maestro, a concertar com seu filho Pedro, através de cartas de orientação e ajuizados conselhos, a independência brasileira, mantendo a casa de Bragança à frente do trono do Brasil com a ascensão de D. Pedro I.
Foi, também, o verdadeiro fundador da nacionalidade brasileira, eis que, em apenas uma década e meia transformou a colônia fechada e atrasada para se tornar um país independente, próspero e influente, com suas raízes profundamente fincadas em Portugal -- mas diferente.
A imagem que ficou foi a de um monarca manso, pacato, bonachão, que ocultava, a seu desfavor, o soberano atilado, liberal e meticuloso planejador que sempre foi; nada açorado, impetuoso, imponderado. Ouvia muito, ouvia a todos, ouvia os lados. Decisões somente depois de esgotadas as informações e conclusões. Pra seu amargor teve de conviver com o desprezo, ódio e a ambição desmedida da mulher, a traição e conspiração de seu filho D. Miguel, açulado pela mãe, e os carbonários membros da corte de Lisboa.
O monarca passou para a História como um soberano relativamente bem sucedido, especialmente quando comparado aos seus pares da época, todos destronados, exilados, presos e humilhados. D. João VI viveu e morreu como rei, enquanto a maioria das cabeças coroadas da Europa sucumbiu sob Napoleão.
D. Pedro I, todos o sabem, foi um jovem dado a aventuras e conquistas amorosas na juventude, ainda como príncipe herdeiro presuntivo da coroa portuguesa; ao assumir as funções monárquicas de regente brasileiro e, depois, de imperador do Brasil, assimilou galhardamente suas reais responsabilidades.
O somatório de obras que realizou, primeiro aqui, onde se salienta a própria independência da Nação, arquitetada, já o dissemos, em uníssono com seu pai, D. João, de modo a obtê-la sem mínimo derramamento de sangue, quer lusitano, quer brasileiro, e depois em Portugal, onde veio a sagrar-se rei sob o título de D. Pedro IV, após travar lutas terríveis com seu irmão D. Miguel, que intentou usurpar o cetro português, o fizeram passar à História como um soberano intrépido, decidido, realizador, de grande conceito e prestígio. Na capital portuguesa dá nome à mais conhecida e freqüentada praça lisboeta, no Rossio, e no Porto ganhou estátua eqüestre na Praça da Liberdade. Deste lado do Atlântico, no Rio, a cavalo na Praça Tiradentes.
Pedro adorava o pai, o que ficou bem claro na carta que lhe escreveu duas semanas somente após o grito do Ipiranga, que assim termina: “Deus guarde a preciosa vida e saúde de Vossa Majestade, como todos nós brasileiros desejamos. Sou de Vossa Majestade, com todo o respeito, filho que muito o ama e súdito que muito o venera”.
Oxalá pudessem nossos políticos maiores de hoje, em sua expressiva maioria, ostentar relação filial (ou paternal) tão respeitosa e enternecedora como nos deram exemplos D. João VI e seu primogênito, coroado no Brasil como D. Pedro I e aclamado Defensor Perpétuo do Brasil. Oxalá possa também restabelecer-se a verdade dos fatos e fazer emergir o primado da veracidade histórica.
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Médico e Escritor. ABRAMES/SOBRAMES
Conferência pronunciada em 10 de junho de 2008 no Conselho da Comunidade Luso-Brasileira do Pará (Belém). Proferida, igualmente, nos XXII Congresso Brasileiro de Médicos Escritores (Fortaleza, 7/6/2008) e XXIII Congresso Brasileiro de Neurologia/VIII Encontro Luso-Brasileiro de Neurologia (Belém, 21/08/2008).
serpan@amazon.com.br - www.sergiopandolfo.com
10 DE JUNHO. DIA DE PORTUGAL, DE CAMÕES E DAS COMUNIDADES PORTUGUESAS.
Camões poeta maior
da lusa língua escultor
no épico foi prior
da lírica grão-mentor.
SerPan
Portugal é um país de pequena extensão territorial e população igualmente diminuta. No entanto, ao longo de sua existência como nação, que já se vai aproximando do primeiro milênio, tem dado ao mundo exemplos extraordinários de qualidade e operosidade de sua gente.
Cinco séculos passados maravilhou o mundo de então com suas descobertas de além-mar que deram “novos mundos ao Mundo”. Também, há quase o mesmo tempo, vira nascer em seu seio esta que é hoje tida como uma das maiores cerebrações da humanidade, em todos os tempos, Luís Vaz de Camões. A data exata de seu nascimento segue sendo incógnita, conquanto Manuel Faria e Souza, num de seus mais fecundos e percucientes estudiosos precise o ano de 1524. O dia ninguém conhece.
Dono de uma cultura polimorfa incomensurável dominava todos os idiomas cultos de sua época e o conhecimento que detinha das ciências de então, que brota de sua obra, ainda hoje surpreende e mesmo espanta a quem a lê.
É fora de toda dúvida ter estudado em Coimbra (em sua afamada Universidade? Não há registros), questão que ele mesmo dirime nos versos de alguns sonetos, como o que inscreve no Cartão-Postal da Cidade: “Doces e claras águas do Mondego” e se confirma, depois, na letra da canção: ”Vão as serenas águas do Mondego descendo...”. O vate-mor viveu sempre “Em perigos e guerras esforçado”, por isso que em sua obra Rhythmas (Rimas), assenta: “Numa mão sempre a pena e noutra a espada”.
Foi ele o renovador, enriquecedor e cinzelador da lusa língua, que se pode bem dividir em antes e depois do genial poeta. Escreveu muito, acerca de tudo e sob todas as formas literárias existentes, conquanto tenha sido a poesia sua forma de expressão mais exuberante.
Do sábio alemão Wilhelm Storck merece a distinção de “filho legítimo do Renascimento e humanista dos mais doutos e distintos do seu tempo” pelos “múltiplos e variadíssimos conhecimentos em história universal, geografia, astronomia, mitologia clássica, literaturas antigas e modernas, poesia culta e popular, tanto da Itália como da Espanha”. Dele disse, também, Schlegel: “Camões vale toda uma literatura”.
Camões é um poeta essencialmente lírico. Canta o amor, a saudade, a despedida, a frustração amorosa, o desespero da distância, a natureza, a beleza feminina, a contemplação, o apelo às coisas simples da vida. Seus sonetos são primorosas obras de arte e de genialidade.
Sua obra lírica é densa, inconfundível, inovadora, só não sendo mais vultosa ainda por lhe terem furtado os manuscritos do Parnaso, coletânea lírica que ultimava para levar ao prelo. Mas é certamente seu opus magnum Os Lusíadas, poesia épica impactante, definitiva, inexcedível, na qual canta “o peito ilustre lusitano” e os percalços da viagem de Vasco da Gama às Índias, abordando todos os fatos e feitos da lusa gente, desde sua origem até o momento da edição do poema. Camões é, para nós, o Príncipe Perpétuo dos Poetas de expressão portuguesa.
Por isso que Portugal, uma vez mais em feitio singular e de extrema felicidade escolheu o dia de sua morte, 10 de junho, para marcar o Dia da Nacionalidade Portuguesa, o Dia da Raça, que as Comunidades (dir-se-ia melhor Camõesnidades) lusitanas anual e festivamente relembram e, se as ajudam “o engenho e arte”, “cantando espalharão por toda a parte” “deste rotundo Globo”, visto ter sido, ele próprio, um de “aqueles que por obras valerosas/ se vão da lei da Morte libertando”.
Temos certeza que, vivo estivesse à altura, o bardo iluminado não deixaria de também cantar e louvar esta outra epopéia da gente lusitana, que este ano está a completar o bicentenário: a da Transmigração da Corte Portuguesa para sua colônia maior e mais rica, “na quarta parte nova” situada, no outro lado do “mar-oceano”, a fim de “No Brasil, com vencer e castigar/ o pirata Francês, ao mar usado” (Os Lusíadas, X-63).
O TRANSLADO DA CORTE PORTUGUESA PARA O BRASIL. REFLEXOS LÁ E CÁ.
“O brasileiro é um Narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Nossa tragédia é que não temos o mínimo de auto-estima”.
Nelson Rodrigues, dramaturgo.
O translado da Corte Portuguesa para o Brasil foi um feito monumental e um episódio grandioso. A maior e mais arrojada navegação que o Atlântico já testemunhou. Sob o aspecto puramente náutico a portentosa empreitada só é equiparável àquela empreendida pela majestosa esquadra cabralina, três séculos antes, que descobriu o Brasil, foi à Índia e assentou feitoria em Calecute. Para muitos a teria mesmo suplantado.
A Guerra Peninsular, no contexto das invasões napoleônicas ensejou, uma vez mais, que o minúsculo Portugal que trezentos anos antes houvera dado “novos mundos ao Mundo”, viesse a ocasionar profunda transformação na face do mundo de então. Mudanças geográficas, geopolíticas e geopopulacionais.
A verdadeira história dessa fantástica epopéia vem sendo, entretanto empanada e deturpada por pseudo-historiadores em publicações de conteúdo duvidoso, ávidos de notoriedade e lucratividade, pelo recurso a meias-verdades (ou meias-mentiras?) e adjetivações malevolentes que descambam para o grotesco, levando nossa população menos bem informada a ter como caricatas, ridículas mesmo, as figuras que compunham a família real portuguesa ao tempo em que esteve no Brasil à frente do império luso-brasileiro.
Isso se fez mais intenso e evidente após uma série levada à TV por cadeia televisiva nacional que reduziu à expressão mais simples e risível os principais membros da realeza lusitana, atassalhando principalmente a figura de D. João VI e também, seguidamente, a de seu filho e sucessor, D. Pedro I. A rainha-mãe, D. Maria I, somente tratada como “A Louca”, como se houvesse nascido e vivido sempre assim, não importando, ou não sendo referido, a lúcida rainha que foi até ser acometida por grave moléstia depressiva, hoje conhecida como transtorno bipolar do humor, reversível com a terapêutica.
Folhetins televisivos desse jaez só fazem por reduzir a auto-estima de nosso crédulo povo, ao lhe ser transmitida, falsamente, a idéia de que seus líderes antepassados maiores, ao invés de valorosos e destemidos, eram medrosos, caricatos, ridículos.
Na verdade, o processo de linchamento do regime monárquico em geral e dos membros desse sistema que ocuparam o trono do Brasil se deflagrou após o golpe militar – melhor seria dizer quartelada – que derrubou o governo imperial brasileiro, à revelia da população (que adorava o imperador Pedro II) e a mal de seu grado, a fim de garantir e solidificar o novel regime republicano que, ao longo de todos esses 119 anos de imposição ainda não demonstrou a alegada e prometida superioridade apregoada ao povo manu militari. Impunha-se “apagar do mapa” a boa imagem que até então gozavam entes e gentes do deposto sistema administrativo, muito à semelhança do que segue sendo praticado ainda nos dias correntes.
Cumpre assim, nessa revisita à epopéia da translação da Corte portuguesa para sua colônia americana, máxime no que tangencia o processo de transição da autonomia, mantermo-nos em consonância com a verdade histórica.
Para início de argumentação, nada mais injusto e inverdadeiro o que se tenta fazer crer à opinião pública sobre a personalidade do príncipe regente lusitano, mostrado como glutão, pusilânime, inepto, poltrão mesmo, e de nosso primeiro imperador constitucional, afigurando-o como um libertino, estróina, desastrado e omisso.
Se há na nobreza portuguesa e brasileira nomes que mereciam ser respeitados, venerados mesmo, estes são os de D. João VI e de seu filho D. Pedro I, monarca inaugural da efêmera monarquia brasileira.
Em guerra com a Grã-Bretanha, Napoleão tentou impor o bloqueio continental europeu aos ingleses, visando a enfraquecê-los, ao qual foram forçados a aderir os países do eurocontinente ocidental, à exceção do pequenino, mas altivo Portugal, arquialiado da Inglaterra (desde 1372). Sob o falacioso argumento de implantar as idéias da Revolução Francesa o déspota nada esclarecido, tido por muitos como o verdadeiro Anticristo, Napoleão Bonaparte, derrubou reis e rainhas, apoderou-se de quase todo o continente europeu, mudando, para sempre, seus limites territoriais e estruturas, megalomania que culminou com a usurpação do trono francês e subseqüente autoproclamação como Imperador de França. Em seu desvario expansionista não respeitava acordos, tratados, regimes; não declarava guerra: invadia, subjugava, depunha, impunha.
O cataclismo devastador das invasões napoleônicas veio subitâneo, crescente e avassalador... como um tsunami! Turbilhão beligerante que aterrorizou e ensangüentou o Velho Continente. O mundo estava polarizado: de um lado os exércitos ditos invencíveis de Bonaparte - a Grande Armée; de outro, a esquadra naval todo-poderosa da Inglaterra; a separá-los o estreito Canal da Mancha. Que poderia fazer o fragilizado Portugal ante a iminência de um terremoto bélico entre os dois gigantes?
Às ameaças de invasão francesa o regente do trono português contrapôs todas as tergiversações e negaças que lhe foram possíveis dispor, fingindo mesmo com algumas ostensivas, mas tão-somente ilusórias atitudes aderir ao boicote – dir-se-ia “para francês ver” --, enquanto negociava secretamente com o trono inglês a transferência da sede do reino português para o Brasil e a subseqüente defesa de Portugal.
Esse estratégico "coup-de-theátre" permitiu-lhe preparar, condigna e adequadamente, a mudança para o Brasil da Corte de Lisboa, com toda a máquina administrativa do Estado, instalando aqui a sede, que ele sonhava definitiva, do império luso, como havia já anteriormente proposto (e detalhado) o marquês de Pombal a seu avô, D. José I, de quem fora ministro plenipotenciário.
Ao receber o ultimato de Napoleão para renunciar à neutralidade e aderir ao bloqueio continental contra a Inglaterra até 1º de outubro (de 1807), D. João tinha as tropas francesas na fronteira e belonaves inglesas no Tejo.
Ante a ameaça de ser aniquilado por Napoleão ou ver a Madeira, os Açores e as colônias de ultramar, incluindo o Brasil, tomados pela Inglaterra, o governo português escapou dos dois. Entre dois fogos D. João fez a opção certa. Entre a prudência útil e a bravura inútil, o regente deu a ordem de embarcar. "Uma jogada brilhante", aponta Kenneth Ligth.
Não se tratou, portanto, de fuga açodada da família real, como anedoticamente hoje se declina, mas sim de mudança radical e permanente da sede do trono lusitano. Vieram de lá os arquivos públicos, a prata e as relíquias das igrejas; o ouro, os diamantes e o dinheiro do Erário real; a magistratura, os ministros, clérigos, médicos, artistas, guardas, armamentos e serviçais; todas as coleções da Real Biblioteca portuguesa, uma das mais extraordinárias da Europa, instalada num pavilhão do Palácio da Ajuda, e as da Biblioteca particular do Regente; as jóias da coroa, carruagens, obras de arte e bens particulares de cerca de 15 mil transferidos, número que diz bem da grandeza e importância da decisão que tomara. O embarque de um contingente tão elevado de pessoas pressupõe ter sido, compreensivamente, muito tumultuado.
Nada de bravatas e heroísmo inúteis nem sacrifícios irreparáveis aos súditos indefesos. Com essa pensada decisão D. João e sua família puseram-se a salvo da humilhação e escárnio que o Corso já havia imposto a Fernando VII da Espanha (irmão de sua mulher Carlota Joaquina), seu pai, Carlos IV, e sua família, postos a ferros, nas lúgubres masmorras parisienses, passando o trono espanhol para as mãos de José Bonaparte, irmão do usurpador. Os críticos dos primeiros tempos “não enxergaram a grandeza e a coragem da decisão tomada por D. João”, pondera Kenneth Light.
Coisa que poucos sabem, porque escassamente divulgado, é que a corte espanhola também fez, à altura, uma tentativa frustrada de mudança para a América; não deu tempo, o embarque foi prontamente sustado com a prisão do rei Carlos IV e sua família pelo implacável tirano.
Para a transferência havia planos, havia estudos, havia decisão; faltava oportunidade, que então se configurou. Essa transmigração intercontinental possibilitaria a continuidade do trono de Portugal nas mãos da Casa de Bragança e a integridade de seus domínios.
Foi assim possível, não apenas à família real, mas ao conjunto do Estado português, deixar Lisboa a 29 de novembro, sob a proteção da esquadra britânica, reflexo da provecta aliança entre os dois reinos e da materialização de acordo estratégico adrede e minudentemente articulado. Apesar das agruras e perigos não há um só registro de morte ou acidente fatal durante a viagem.
Ao entrar em Lisboa, no dia seguinte, Junot, o jovem e aguerrido general das hostes napoleônicas teve a frustração de constatar que todo o efetivo do trono português havia escapado, com bens, valores e registros documentais, deixando apenas o supérfluo e renovável expostos aos saques e atos de vandalismos perpetrados pelo iracundo general na capital do País e na cidade do Porto. Ficou, literalmente, “a ver navios”.
Acabrunhado, não resistiu às coléricas admoestações do soberano francês: acometido de loucura, praticou suicídio. Desse funesto episódio sua viúva faz relato em pitoresco livro de memórias. Anos depois, o outrora potentado Bonaparte, posto em desgraça em seu exílio de Santa Helena, sobre o modorrento regente, redimindo-o, registrou: “Foi o único que me enganou!”. O aparente poltrão, ao inverso do valiente espanhol Fernando VII, escapou de virar joguete nas escuras e mal-freqüentadas enxovias francesas. Napoleão registraria ainda em suas memórias: “Foi (a Guerra Peninsular) o que me destruiu. Todos os meus desastres tiveram origem nesse nó fatal”.
Chegado ao Brasil, o príncipe pôde mostrar toda sua habilidade e visão administrativa e até exercitar propósitos expansionistas, como já se verá.
D. João aportou primeiramente na Bahia, onde, após ouvir minuciosa e convincente argumentação do futuro visconde de Cairu, decide emitir carta-régia “abrindo os portos brasileiros às nações amigas”.
A abertura dos portos e o fim da proibição de acesso ao Brasil representaram, para nós, um salto quântico. Ainda em sua curta estada em Salvador, criou a Escola de Cirurgia da Bahia, a instâncias do pernambucano José Correa Picanço, médico e cirurgião da Corte que acompanhou o Regente, e um curso de agricultura na capital baiana.
Pela primeira vez um soberano europeu pisava o solo americano. Foi também, mais tarde, o primeiro monarca europeu a ser aclamado na América (1818).
“Com a chegada da corte à Bahia de Todos os Santos começava o último ato do Brasil colônia e o 1º do Brasil Independente”, reconhece o escritor Laurentino Gomes, autor do campeão de vendagem sobre o assunto: "1800".
Ao mudar a capital do Império Português de Lisboa para o Rio de Janeiro o Príncipe Regente não chegou aqui como foragido ou exilado, mas como soberano em solo seu.
Tão logo instalada a corte e os ministérios D. João declarou guerra a Napoleão, o que lhe possibilitou, como atos de represália, a anexação da Banda Oriental (atual Uruguai), pertencente ao trono espanhol então feito coligado do terrible tirano corso, em 1816, com a conivência e até velado incentivo da aliada Inglaterra, estendendo os domínio brasileiros à bacia do Prata, situação que se prolongou até 1822, e a invasão e tomada de Cayenne, sede da Guyane, território francês dalém-mar, consumada pelas tropas luso-brasileiras sediadas no Grão-Pará. Em regozijo por esse feito militar foi encenado, em 1809, um espetáculo em Belém, na Casa da Ópera, obra do notável arquiteto-régio Antonio Landi.
Achamos, como muitos, que a mudança da sede do trono do Império português para o Brasil constituiu episódio igual ou equiparável ao advento da Independência, posto que esta foi, afinal, direta e natural conseqüência daquela.
No seu 1º manifesto na nova terra D. João proclamava, alto e bom som, que “... a corte de Portugal levantará sua voz do seio do novo Império que vai fundar”. Realmente, a independência formal não tardaria com a elevação do Brasil à dignidade de Reino Unido ao de Portugal e Algarves, em dezembro de 1815. Da noite para o dia, com a mudança da Corte para o Rio o Brasil tornara-se a mãe-pátria e Portugal a colônia, - a chamada inversão política brasileira - iniciando-se aí a contagem regressiva para a Independência que viria logo a seguir.
Criou a escola Anatômica, Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro e o Jardim Botânico; transferiu a Real Academia de Guardas-Marinha, a Real Academia Militar e a Casa de Suplicação (Superior Tribunal do Reino) de Lisboa para o Rio; logo seguiram-se: a Academia de Artilharia e Fortificações, a abertura da Real Biblioteca Pública, com as coleções trazidas de Lisboa, que incluíam exemplares raríssimos, depois encorpada com o precioso acervo particular do conde da Barca. Criou um laboratório químico e instalou o Erário Real, a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, depois Academia de Belas Artes, o Teatro São João, o Museu Real e uma Junta de Comércio na capital do País. Em Salvador, o Teatro São João e a Real Biblioteca e no Maranhão o Teatro União, em franco sinal de incentivo à cultura.
Ao abolir o alvará de sua mãe, D. Maria, de 1785, que declarava extintas e abolidas as fábricas no Brasil, abriu caminho para o surgimento de numerosos parques fabris e indústrias agropastoris, fortalecendo esses setores. Licenciou a instalação de uma fábrica de vidros, autorizou a funcionar uma outra de pólvora e uma fundição de artilharia, núcleo inicial da indústria bélica pátria. Introduziu a siderurgia no País, utilizando fornos suecos, instalados em Congonhas do Campo, Minas Gerais e incrementou a abertura de estradas, incluindo uma de cerca de 800 km entre Goiás e o Grão-Pará, seguindo percurso semelhante à atual Belém-Brasília, para facilitar a comunicação com a recém-ocupada Guiana Francesa e a aclimação de inúmeras variedades vegetais exóticas, de lá provindas, no Jardim Botânico de Belém.
Fundou o Banco do Brasil, nosso hoje maior e mais importante estabelecimento bancário, que iniciava suas ações de investimentos creditícios principalmente para os setores agrícola, comercial e industrial.
Na bagagem provinda de Portugal veio a primeira tipografia que cá se instalou a Imprensa Régia, que logo passou a estampar a Gazeta do Rio de Janeiro, quase em simultâneo com a ufanística folha baiana Idade d’Ouro do Brasil, ademais de muitos outros periódicos que chegavam quase a equiparar-se com o Correio Braziliense, de Hipólito José da Costa, que circulava regularmente em Londres.
“Em apenas 13 anos o Brasil ascendeu de colônia a nação independente, próspera e respeitada, efeito direto da vinda da Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro”, nos diz, em crônica da época, o Pe. Perereca.
Em 18 de junho de 1815 Bonaparte, o “devastador de impérios” é definitivamente derrotado em Waterloo e desterrado na ilha de Santa Helena, degredo que amargou até a morte, em 1821.
Em 06 de fevereiro de 1818, o Regente é coroado e aclamado rei, como D.João VI.
O atilado monarca tudo fez e resistiu no mais que pôde para manter no Brasil, que amava sinceramente, a sede do trono português, opondo-se habilmente por quase 14 anos a regressar a Lisboa, o que fez com água nos olhos e a alma despedaçada, aqui deixando seu rebento mais querido e seus netos. Foi ele o verdadeiro maestro, a concertar com seu filho Pedro, através de cartas de orientação e ajuizados conselhos, a independência brasileira, mantendo a casa de Bragança à frente do trono do Brasil com a ascensão de D. Pedro I.
Foi, também, o verdadeiro fundador da nacionalidade brasileira, eis que, em apenas uma década e meia transformou a colônia fechada e atrasada para se tornar um país independente, próspero e influente, com suas raízes profundamente fincadas em Portugal -- mas diferente.
A imagem que ficou foi a de um monarca manso, pacato, bonachão, que ocultava, a seu desfavor, o soberano atilado, liberal e meticuloso planejador que sempre foi; nada açorado, impetuoso, imponderado. Ouvia muito, ouvia a todos, ouvia os lados. Decisões somente depois de esgotadas as informações e conclusões. Pra seu amargor teve de conviver com o desprezo, ódio e a ambição desmedida da mulher, a traição e conspiração de seu filho D. Miguel, açulado pela mãe, e os carbonários membros da corte de Lisboa.
O monarca passou para a História como um soberano relativamente bem sucedido, especialmente quando comparado aos seus pares da época, todos destronados, exilados, presos e humilhados. D. João VI viveu e morreu como rei, enquanto a maioria das cabeças coroadas da Europa sucumbiu sob Napoleão.
D. Pedro I, todos o sabem, foi um jovem dado a aventuras e conquistas amorosas na juventude, ainda como príncipe herdeiro presuntivo da coroa portuguesa; ao assumir as funções monárquicas de regente brasileiro e, depois, de imperador do Brasil, assimilou galhardamente suas reais responsabilidades.
O somatório de obras que realizou, primeiro aqui, onde se salienta a própria independência da Nação, arquitetada, já o dissemos, em uníssono com seu pai, D. João, de modo a obtê-la sem mínimo derramamento de sangue, quer lusitano, quer brasileiro, e depois em Portugal, onde veio a sagrar-se rei sob o título de D. Pedro IV, após travar lutas terríveis com seu irmão D. Miguel, que intentou usurpar o cetro português, o fizeram passar à História como um soberano intrépido, decidido, realizador, de grande conceito e prestígio. Na capital portuguesa dá nome à mais conhecida e freqüentada praça lisboeta, no Rossio, e no Porto ganhou estátua eqüestre na Praça da Liberdade. Deste lado do Atlântico, no Rio, a cavalo na Praça Tiradentes.
Pedro adorava o pai, o que ficou bem claro na carta que lhe escreveu duas semanas somente após o grito do Ipiranga, que assim termina: “Deus guarde a preciosa vida e saúde de Vossa Majestade, como todos nós brasileiros desejamos. Sou de Vossa Majestade, com todo o respeito, filho que muito o ama e súdito que muito o venera”.
Oxalá pudessem nossos políticos maiores de hoje, em sua expressiva maioria, ostentar relação filial (ou paternal) tão respeitosa e enternecedora como nos deram exemplos D. João VI e seu primogênito, coroado no Brasil como D. Pedro I e aclamado Defensor Perpétuo do Brasil. Oxalá possa também restabelecer-se a verdade dos fatos e fazer emergir o primado da veracidade histórica.
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Médico e Escritor. ABRAMES/SOBRAMES
Conferência pronunciada em 10 de junho de 2008 no Conselho da Comunidade Luso-Brasileira do Pará (Belém). Proferida, igualmente, nos XXII Congresso Brasileiro de Médicos Escritores (Fortaleza, 7/6/2008) e XXIII Congresso Brasileiro de Neurologia/VIII Encontro Luso-Brasileiro de Neurologia (Belém, 21/08/2008).
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