__ Inspiração, Arte, Artista __

"Pelo fruto nós julgamos a árvore. Julguem, então, a árvore por seus frutos, e ignorem as raízes. A função justifica o órgão, por estranho que o órgão possa parecer aos olhos dos que não estão acostumados a vê-lo funcionar. Os círculos esnobes estão recheados de pessoas que, como um dos personagens de Montesquieu, se admiram de que alguém possa ser persa. Eles sempre me fazem pensar na história do camponês que, vendo um dromedário no zoológico pela primeira vez, examina-o cuidadosamente, balança a cabeça e, já a ponto de sair, diz, para grande diversão dos presentes: “Não é verdadeiro”.

É assim, através do pleno exercício de suas funções, que uma obra se revela e se justifica. Estamos livres para aceitar ou rejeitar esse exercício, mas ninguém tem o direito de questionar o fato de sua existência. Julgar, questionar e criticar o princípio da vontade especulativa que está na origem de toda criação é, assim, definitivamente inútil. Em seu estado puro, a música é especulação livre. Artistas de todas as épocas fornecem um testemunho incessante a esse respeito. De minha parte, não tenho por que não tentar o que eles fizeram. Eu próprio tendo sido criado, não posso deixar de ter o desejo de criar. O que põe esse desejo em movimento, e o que posso fazer para torná-lo fecundo?

O estudo do processo criativo é algo extremamente delicado. Na verdade, é impossível observar de fora os movimentos internos desse processo. É uma tentativa vã, assim como seguir suas sucessivas fases na obra de outra pessoa. É igualmente difícil observar o que você mesmo faz. E no entanto, só pedindo a ajuda da introspecção é que tenho alguma chance de guiá-los nessa matéria essencialmente flutuante.

A maioria dos amantes de música acredita que o que põe em movimento a imaginação criadora de um compositor é um certo distúrbio emotivo geralmente designado pelo nome de inspiração.

Não pretendo negar à inspiração o papel de destaque que lhe cabe no processo gerador que estamos estudando. Apenas, sustento que a inspiração não é de forma alguma condição prévia do ato criativo, e sim uma manifestação cronologicamente secundária.

Inspiração, arte, artista — tantas palavras, no mínimo nebulosas, que nos impedem de ver claramente num terreno onde tudo é equilíbrio e cálculo, através dos quais sopra o hálito do espírito especulativo. É posteriormente, e não anteriormente, que o distúrbio emotivo associado à inspiração pode se manifestar — um distúrbio emotivo a respeito do qual as pessoas falam indelicadamente, atribuindo-lhe um sentido que nos choca, e que compromete o próprio termo. Não estará claro que tal emoção é apenas uma reação da parte do criador às voltas com essa entidade desconhecida que ainda é apenas o objeto de sua função criativa, e que deverá tornar-se uma obra de arte?

Passo a passo, elo a elo, ele terá a oportunidade de descobrir a obra. É essa cadeia de descobertas, bem como cada descoberta individual, que provoca a emoção — quase um reflexo fisiológico, como o apetite que provoca um fluxo de saliva — essa emoção que invariavelmente segue de perto as fases do processo criativo.

Toda criação pressupões, em sua origem, uma espécie de apetite provocado pela antevisão da descoberta. Esse gosto antecipado do ato criativo acompanha a captação intuitiva de uma entidade desconhecida já possuída, mas ainda não inteligível, uma entidade que só tomará forma definitiva pela ação de uma técnica constantemente vigilante.

Quanto à cultura, é uma espécie de formação que, na esfera social, dá polimento à educação, sustenta e completa a instrução acadêmica. Essa formação é igualmente importante na esfera do gosto, e é essencial ao criador que deve, sem cessar, refinar seu gosto, ou correr o risco de perder a perspicácia. Nossa mente, assim como nosso corpo, pede exercício contínuo. Ela se atrofia caso não a cultivemos.

É a cultura que põe em evidência o pleno valor do gosto, dando-lhe chance de provar sua importância simplesmente exercendo-o. O artista impõe uma cultura a si mesmo e acaba impondo-a aos outros. É assim que a tradição se estabelece.

A tradição é inteiramente distinta do hábito, mesmo de um excelente hábito, já que o hábito é por definição uma aquisição inconsciente, e tende a tornar-se mecânico, ao passo que a tradição resulta de uma aceitação consciente e deliberada. A tradição autêntica não é a relíquia de um passado irremediavelmente transcorrido; é uma força viva que anima e condiciona o presente. Nesse sentido, o paradoxo segundo o qual tudo o que não é tradição é plágio tem sua razão de ser...

Longe de implicar a repetição do que já foi, a tradição pressupõe a realidade do que permanece. Ela aparece como uma herança, um patrimônio legado à condição de fazê-lo dar frutos antes de passá-lo a nossos descendentes.

Os pompiers de vanguarda ficam tagarelando sobre música, assim como o fazem a respeito do freudismo ou do marxismo. À menor provocação, recorrem aos complexos da psicanálise, e hoje em dia vão tão longe a ponto de familiarizar-se, ainda que relutantemente (mas snobisme oblige), com o grande São Tomás de Aquino... Tudo isso bem considerado, a essa espécie de pompier, prefiro o puro e simples pompier que fala sobre melodia e, mão ao coração, defende os incontestáveis direitos do sentimento, o primado da emoção, manifesta preocupação com o que é nobre. (...)

Os pompiers de vanguarda, além disso, cometem o erro de ser sarcásticos, além de toda medida, com seus colegas do ano anterior. Todos eles permanecerão pompiers por toda a vida, e os de molde revolucionário sairão de moda mais cedo que os outros: o tempo é uma ameaça maior para eles.

O verdadeiro amante de música, como o verdadeiro mecenas, não se enquadra nessas categorias; mas como tudo o que é autêntico e tem valor, ambos são raros. O falso mecenas emerge habitualmente das fileiras dos esnobes, assim como o pompier ao velho estilo costuma ser recrutado nas fileiras da burguesia. Por motivo que já mencionei, o burguês me irrita muito menos que o esnobe. E não estou defendendo o burguês quando digo que é realmente muito fácil atacá-lo.

Deixaremos esses ataques para os grandes especialistas na matéria — os comunistas. Do ponto de vista do humanismo e do desenvolvimento do espírito, não é preciso dizer que o burguês constitui um obstáculo e um perigo. Esse perigo, no entanto, é demasiado conhecido para inquietar-nos, na mesma medida que o perigo nunca denunciado como tal: o esnobismo.

A faculdade de observar e de fabricar algo a partir do que é observado, pertence apenas à pessoa que possui, nesse terreno peculiar de empreendimento, uma cultura adquirida e um gosto inato. Um marchand, um amante da arte que é o primeiro a comprar telas de um pintor desconhecido que se tornará famoso vinte e cinco anos depois com o nome de Cézanne — essa pessoa não nos dá um exemplo claro desse gosto inato? O que mais poderia guiá-lo em sua escolha? Um faro, um instinto de que seu gosto se origina, uma faculdade completamente espontânea que é anterior à reflexão.

A universalidade cujos benefícios vamos gradualmente perdendo é uma coisa inteiramente diferente do cosmo-politismo que vai se apossando de nós. A universalidade pressupõe a fecundidade de uma cultura que se espalha e se comunica por toda parte, enquanto o cosmopolitismo não oferece nem ação nem doutrina, e leva à passividade indiferente de um ecletismo estéril.

A universalidade necessariamente pressupõe a submissão a uma ordem estabelecida. E suas razões para esse pressuposto são convincentes. Aceitamos essa ordem por simpatia ou prudência. Em qualquer caso, os benefícios da submissão não tardam em aparecer.

Tenho plena consciência de que os termos (dogma e dogmático), por mais que evitemos empregá-los em assuntos estéticos ou mesmo espirituais, nunca deixam de ofender — ou mesmo chocar — certas mentalidades, mais ricas na sinceridade do que inabaláveis nas convicções. (...)

Se falo do sentido legítimo desses termos, é para enfatizar o uso natural e corrente do elemento dogmático em qualquer campo de atividade em que ele se torna categórico e verdadeiramente essencial. De fato, não podemos observar o fenômeno criativo independentemente da forma em que ele se manifesta. Todo processo formal deriva de um princípio, e o estudo desse princípio requer precisamente o que denominamos dogma. Em outras palavras, a necessidade que sentimos de trazer ordem ao caos, de encontrar o caminho certo de nossa operação a partir de um feixe de possibilidades ou da indecisão de pensamentos vagos, pressupõe a necessidade de alguma forma de dogmatismo. Portanto, uso as palavras dogma e dogmatismo apenas na medida em que designam um elemento essencial para salvaguardar a integridade da arte e do espírito, e sustento que, nesse contexto, elas não extrapolam suas funções.

Não se pode provocar o que é acidental: pode-se observar e daí extrair inspiração. O acidental é talvez a única coisa que nos inspira. Um compositor improvisa sem direção da mesma maneira como um animal escava o terreno. Ambos vão escavando porque cedem à compulsão de procurar coisas. Que necessidade do compositor é atendida por essa investigação? A das regras que ele carrega como um penitente? Não: ele está em busca de seu prazer. Ele procura uma satisfação sabendo perfeitamente que não a encontrará se não brigar por ela. Não se pode obrigar a própria personalidade ao amor; mas o amor pressupõe entendimento e, para entender, é preciso exercer a própria personalidade. É o mesmo problema colocado na Idade Média pelos teólogos do puro amor. Entender para poder amar; amar para poder entender.

A capacidade para a melodia é um dom. Isso significa que não está em nosso poder desenvolvê-lo através do estudo. O exemplo de Beethoven deveria bastar para nos convencer de que, de todos os elementos da música, a melodia é o mais acessível ao ouvido e o mais difícil de se adquirir. Temos aqui um dos grandes criadores de música que passou toda sua vida implorando a ajuda desse dom que lhe fazia falta. Beethoven acumulou para a música um patrimônio que parece apenas o resultado de um esforço laborioso. Bellini herdou a melodia sem se quer ter pedido por ela, como se os Céus lhe dissessem: “Darei a você o que falta a Beethoven.” Mas isso não é razão para ficarmos obcecados pela a melodia a ponto de perder o equilíbrio e esquecer que a arte da música nos fala em muitas vozes ao mesmo tempo.

Gostaria de dirigir novamente a atenção de vocês para Beethoven, cuja grandeza deriva de uma obstinada batalha com a melodia rebelde. Se a melodia fosse tudo na música, como justificar as várias forças que compõem a imensa obra de Beethoven, e em que a melodia certamente é a menos privilegiada?

Obviamente, a instrução e a educação do público, não acompanharam o ritmo de evolução da técnica. O uso da dissonância, em ouvidos mal preparados para aceitá-la, não deixou de perturbar essa reação, causando um estado de debilidade em que o dissonante já não se distingue do consonante."

O fenômeno da Música

Pretendo usar o exemplo mais banal: o do prazer que experimentamos ao ouvir o rumorejar da brisa nas árvores, o murmúrio de um riacho, a canção de um pássaro. Tudo isso nos agrada, nos diverte, nos delicia. Podemos até dizer: “Que música deliciosa!” Naturalmente, estou usando apenas uma comparação. E a comparação não é raciocínio. Esses sons da natureza nos sugerem uma música, mas ainda não são, em si mesmos, música. Se extraímos prazer desses sons e imaginamos que, ao nos expormos a eles, nos tornamos músicos e até, eventualmente, músicos criativos, é preciso admitir que estamos enganando a nós mesmos.

Esses sons são promessas de música, e é preciso um ser humano para registrá-los: um ser humano sensível às vozes da natureza, obviamente, mas que, além disso, sente a necessidade de organizá-las, e que é dotado, para tal, de uma aptidão especial. Em suas mãos, tudo o que estou considerando como não sendo música em música se transformará. Daí concluo que elementos sonoros só se tornam música quando começam a ser organizados, e que essa organização pressupõe um ato humano consciente.

Assim, tomo conhecimento da existência de sons naturais, elementares — a matéria-prima da música —, que, agradáveis em si mesmos, são capazes de acariciar o ouvido e nos proporcionar um prazer que pode ser bastante completo. Mas, acima e para além desse prazer passivo, vamos descobrir a música, música que nos fará participar ativamente do trabalho de um espírito que ordena, dá vida e cria. Pois na raiz de toda criação encontramos um apetite que não é um apetite pelos frutos da terra; de modo que, aos dons da natureza, acrescentam-se os benefícios da elaboração humana — esta é a significação geral da arte.

Não é exatamente arte o que chega a nós na canção de um pássaro; porém, a mais simples modulação, corretamente executada, já é arte, sem a menor possibilidade de dúvida.

A arte, no sentido verdadeiro, é o modo de trabalhar uma obra de acordo com alguns métodos adquiridos, seja pelo aprendizado, seja pela inventividade. E os métodos são canais eficazes e predeterminados que garantem a propriedade de nossa operação.

Há uma perspectiva histórica que, como toda visão das coisas subordinada às leis da perspectiva ótica, só torna distintos os objetos mais próximos. À medida que essas áreas de visão se afastam de nós, perdem a nitidez, e só podemos captar visões fugidias de objetos sem vida e sem utilidade. Milhares de obstáculos nos separam de riquezas ancestrais, que nos fornecem apenas aspectos de uma realidade morta. Mesmo assim, podemos captá-la por intuição, mais do que pelo conhecimento objetivo.

Nesse sentido, para captar o fenômeno da música em suas origens, não há necessidade alguma de se estudar rituais primitivos, modos de encantação, ou de penetrar os segredos da mágica antiga. Lançar mão da história, nesse caso, e mesmo da pré-história, não significa desperdiçar o nosso tiro tentando atingir o que não pode ser atingido? Como explicar razoavelmente o que ninguém jamais testemunhou? Se tomamos apenas a razão como guia nesse terreno, ela nos levará a conclusões falsas, já que não estará mais iluminada pelo instinto. O instinto é infalível. Se nos leva a falsos caminhos, já não se trata de instinto. De qualquer modo, uma ilusão viva é mais valiosa, nesse caso, do que uma realidade morta."

(Igor Stravinsky)

“É evidente” — escreve Baudelaire — “que a retórica e a prosódia não são tiranias inventadas arbitrariamente, mas uma coleção de regras exigidas pela própria organização da realidade do espírito, e jamais a prosódia e a retórica impediram a originalidade de manifestar-se plenamente. O contrário, isto é, que contribuíram para o florescimento da originalidade, seria infinitamente mais verdadeiro.”

“Para um artista, nenhum sentido tem lutar por algo que não seja o aperfeiçoamento de sua obra. Naturalmente, pode, por vezes, o artista ser também um apóstolo, um lutador, um pregador. Mas o resultado de seus esforços não dependerá do ardor do seu zelo nem do acerto de seu testemunho, e sim, sempre e exclusivamente da qualidade de suas criações artísticas.” (Hermann Hesse)

Pacco
Enviado por Pacco em 15/03/2009
Reeditado em 03/06/2012
Código do texto: T1487860
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