Crer, ou Razoar?

Um velho debate:

Nas origens do que hoje conhecemos por Cultura Ocidental, lá pelo século VII a.C., começava a história da nossa Razão contra a explicação alegórica baseada nos deuses, que pretendia dar conta de tudo o que há.

A explicação racional tentava substituir à mítica, mas poucos foram que não recorreram a seres celestiais para resolver problemas bem terrenais. Platão (V-IV a.C.), com o seu Demiurgo, Aristóteles (IV a.C.), com esse primeiro motor que chamou de Deus, são claros exemplos disto, mas há que ressaltar que houve outros que recolheram o autêntico desafio, logrando sair adiante sem o atraiçoar. Leucipo, Demócrito (V a.C.), sem usarem parábolas fantásticas, falando tão só de partículas indivisíveis, átomos, aproximar-se-iam à solução: matéria, e vazio, assim se faziam e desfaziam as cousas todas, mais nada. Seguiram Epicuro (IV-III a.C.), e seu discípulo avantajado Lucrécio (I a.C.), começando o que se conhece na filosofia como Materialismo, corrente condenada por ateia.

A Idade Média avivou o debate, como a dissensão as chamas. Tudo o que na Grécia clássica era uso da razão, lógico, passou a ser mitológico, para maior serviço de um suposto criador –autêntica aberração para os gregos que defendiam que do nada nada se podia gerar: tudo o que era, era desde sempre.

Razão ou Fé, Filosofia ou Teologia, essa era a questão. Agostinho de Hipona (IV-V a.C.) o resolveu a favor da Fé: o compreende para creres, crê para compreenderes, não servia mais que para salvaguardar a Verdade Única. Tomé de Aquino (XIII) pretendendo conciliá-las, dar-lhes autonomia, afinal resolvia que se a razão chegar a conclusões enfrentadas à Revelação, necessariamente equivocadas, teria que rectificar.

Era a via antiqua, a outra, a moderna, aberta pelo singular filósofo, Venerabilis Inceptor, Guilherme de Ockham (XIV) (que com sua célebre navalha, "Entia non sunt multiplicanda praeter necessitate", barbeara a Platão), rompeu com o pseudodilema: cada uma pelo seu lado: omnipotência de Deus -Papado de uma parte-, e conhecimento humano baseado na experiência, no singular e concreto -Império de outra-, acabaram-se as demonstrações do Indemonstrável, condenando-se por herege à excomunhão. Por essa fenda empírica, coava-se a nova ciência que traria a Renascença.

Umberto Eco refletira-o de maneira brilhante na novela O nome da rosa, onde se representava a polémica velha na discussão de Jorge de Burgos (via antiga) com Guilherme de Baskerville (moderna) justificando seus assassinatos após envenenar o suposto livro do Aristóteles:

"O riso é fraqueza, a corrupção, a insipidez da nossa carne. É a distração do campesinhado, a licença do bêbado... aqui inverte-se a função do riso, eleva-se a arte, abrem-se-lhe as portas do mundo dos doutos, converte-se em objeto de filosofia, e de pérfida teologia... O riso libera ao aldeão do medo ao demônio... Quando ri, enquanto o vinho goteja na sua garganta, o aldeão sente-se amo, porque inverteu as relações de dominação... O riso distrai, por alguns instantes, ao aldeão do medo. Mas a lei impõe-se através do medo, cujo verdadeiro nome é o temor de Deus. E deste livro poderia saltar a chispa luciferina que prenderia um novo incêndio em todo o mundo; e o riso seria a nova arte... capaz de aniquilar o medo. Ao aldeão que ri, enquanto ri, não lhe importa morrer... E deste livro poderia surgir a nova e destrutiva aspiração a destruir a morte através da emancipação do medo. E que seríamos nós, criaturas pecadoras, sem o medo, talvez o mais propício e afetuoso dos dons divinos?"

Um debate velho:

O velho Deus não é já o verdadeiro Deus. Há um novo ao que lhe corresponde melhor esse nome, o conceito construído ao longo dos tempos para vir dar no máximo Poder, o que está Acima, o que está em toda parte, que todo o pode, e a quem todo o mundo suplica ajoelhando-se diante d’ Ele abrigando toda a sua esperança nos Seus Altares de cada dia, não usando o seu nome em vão, amado sobre todas as cousas: Capital, esse Deus Único que é tão difícil negar. Mas, mas...

"não há Deus nem há Lei que a contradança

não se possa bailar. Tua morte é tua.

Teu não saber é toda tua esperança".