"ESTA A GLÓRIA QUE FICA, ELEVA, HONRA E CONSOLA" _ Machado de Assis
José de Tal nasceu no povoado Carrapato, não se sabe ao certo quando, pois não há registro nos cartórios mais próximos da localidade.
Chegara aos sete anos de idade, sem estudar, entretanto gostava de papéis e aproveitava os jornais em que a avó embrulhava a carne seca.
O pai era um vaqueiro de fazendola de propriedade de um fracassado plantador de laranjas que não pagava aos funcionários a não ser com frutas cheias de pragas. A mãe era só dona de casa e seu único trabalho era o de parto.
Um dia, José fugiu num caminhão, pendurando-se na carroceria. Seguiu pela estrada no sacolejante veículo e comeu muito barro até chegar ao município vizinho, que de vizinho só tinha o nome, ficava a 300 km de distância de Carrapato.
José ficou nas ruas até que um dia descobriu a feira e passou a ajudar aos vendedores de farinha. Era tão útil o menino que logo Dona Francisca pediu a Seu Juvêncio para deixar aquela pobre criança morar com eles.
Juvêncio tinha um coração feito de farinha da grossa.
_Muié, tu num ta venu que nun vai dá certo levá esse muleque pra casa. Ele vai é me dar gasto na farinha de nóis trazê pra fêra.
_Mas deixe, Ju, faço um carin daqueles que tu gosta, ômi. Dêxa, vá.
O coração de farinha grosseira teve seu dia de tapioca e aceitou.
Levaram José pra casa.
O menino trabalhava por dois ou três adultos. Pegava os pesados sacos de farinha, colocava na carroça, ajudava na feira e na casa, quando voltava.
D. Francisca fez tanto dengo a Juvêncio e aquele tal carinho do qual ele gostava e temia que ela contasse aos compadres. E Juvêncio deixava tudo que ela pedia.
Assim, colocou o menino na escola. Ele tirou as primeiras letras misturadas com o pó da farinha.
Pois é meus confrades e confreiras, este que hoje é um intelectual, passou fome, frio e necessidade, vendeu farinha na feira, estudou pela noite. Não tinha cadernos e nem livros, não se sabe como aprendeu, mas aprendeu. Acontecem milagres.
José, este mesmo cuja posse vocês estão aqui prestigiando, namorou com uma menina que andava perambulando pelas ruas da feira e que seria totalmente analfabeta se não fosse a campanha de alfabetização popular promovida pelo auspicioso governo do Dr. Lácteo Pompeu, um eminente tribuno e político do maior quilate.
José casou-se com a menina Maria de Zeca do Bode, pedagoga e ex-diretora de um estabelecimento público criado pelo prefeito do município, o grande e renomado jurista, Dr. Giordano Pratas.
Maria formou-se em um desses aligeirados cursos a distância que, em detrimento da crítica feita pelos tradicionais estabelecimentos, têm dado alguns resultados.
Senhoras e senhores, José formou-se atravessando o rio infestado de piranhas em um velho barco mais feio que a carranca que o liderava.
O rapaz humilde caiu certa feita dentro do rio e por isto falta-lhe um dos membros inferiores. Não é tudo. Assim mesmo, passou noites e noites no sereno para conseguir marcar um ortopedista e pedir-lhe a concessão de moletas. Pensam que ele conseguiu? Não. O governo do Senhor Praxedes Torquato, do partido da oposição, gastou a verba pública destinada à saúde com atos de corrupção desenfreada.
(Naquele momento, José e Maria choravam revendo as cenas avivadas com aquelas palavras despeitadas. Ali, humilhados, sentiam-se exaltados por aquelas potestades do verbo).
Sim, senhores, senhoras, autoridades aqui presentes, observem este homem aleijado, negro, de origem humilde. Aliás, sem origem, pois faltara-lhe o berço de ouro, as amas-de-leite, os caros colégios suíços, as cambraias e tudo o mais.
Além do mais, uma abelha fugida da doce colmeia veio picar o olho direito de Zé, como era conhecido em seu círculo de amizades formado entre os vendedores da feira. E ele perdeu parcialmente a visão.
Cavalheiros, senhoras senhoritas, público aqui presente, este pobre coitado, afrodescendente, portador de necessidades as mais profundas, hoje é um vencedor, um herói, um Zeus.
Um dia voltou ao seu velho povoado Carrapato, a mãe havia morrido de parto, as irmãs eram desencaminhadas, tendo uma delas fugido no mesmo caminhão no qual viajara José naquele longínquo ano. Ana tinha se transformado aliciadora de menores.
Um dos irmãos vivia de encomendas de assassinatos por caciques políticos dos arredores, mas José, não!
José aqui está, com as marcas do seu destino, mas quando recebeu a pequena herança de Dona Francisca investiu-a integralmente em um curso de Direito que lhe custou a escuridão da vista esquerda. Não se deu por satisfeito e estudou o braille.
Vive lendo, José, e fundando bibliotecas com livros adquiridos em doações de pessoas magnânimas da alta sociedade da capital do estado aonde veio finalmente morar com Dona Maria de Zeca do Bode.
No ano de 1989, José teve uma ideia e começou a ditar para a esposa a sua história de vida e a publicou em um livro que hoje vende mais do que a farinha da feira do passado.
Movido pelos insistentes e interesseiros pedidos das editoras, José escrevia, escrevia. É romancista, cronista, poeta e também autor de diversos livros na área do Direito.
José dos Santos entra para o seleto grupo dos intelectuais mais representativos do estado e passa a ocupar uma cadeira que jamais ousaria sonhar o menino faminto, cheio de vermes e comido de perebas, com a cabeça piolhenta. Aquele menino criado por Dona Francisca e Seu Juvêncio, dois toscos vendedores de farinha em feira sertaneja, recebe a coroa de loiros.
Em sua homenagem, José, receba os versos românticos da Canção do Tamoio, de Gonçalves Dias:
Canção do Tamoio
I
Não chores, meu filho:
Não chores, que a vida
É luta renhida:
Viver é lutar.
A vida é combate,
Que os fracos abate,
Que os fortes, os bravos,
Só pode exaltar.
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IV
Domina, se vive;
Se morre, descansa
Dos seus na lembrança,
Na voz do porvir
Não cures da vida!
Sê bravo, sê forte!
Não fujas da morte,
Que a morte há de vir!
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IX
E cai como o tronco
Do raio tocado,
Partido, rojado
Por larga extensão;
Assim morre o forte!
No passo da morte
Triunfa, conquista
Mais alto brasão.
..........
X
As armas ensaia,
Penetra na vida:
Pesada ou querida,
Viver é lutar.
Se o duro combate,
Os fracos abate,
Aos fortes, aos bravos,
Só pode exaltar.
Foram muitos os aplausos para José que morreu ali mesmo, de emoção e humilhação.