DOS ACHADOS E PERDIDOS

Chega pelo Orkut e, também, pelo site do Recanto das Letras, um texto instigante e de tema muito peculiar: a prestação de contas à hora da despedida. Vejamo-lo:

“INVENTÁRIO

Ligia Lacerda

Quando o caminho termina e não se avista horizontes, o olhar volta ao passado, como a cobrar da memória o que restou do tempo vivido. E o que se descobre é uma vida desperdiçada em sonhos. Afora as lembranças de alguns raros momentos felizes e o consolo do dever cumprido, resta uma eterna saudade do que não aconteceu, uma tristeza infinita por sonhos abandonados. Resta a alma arrependida daquilo que nunca fez, de dizer o que não devia e calar o que deveria ser dito. Resta um coração solitário, que se cansou de esperar. Resta a melancolia de uma vida que se acaba, toda perdida em renúncias, de um amor contido e resignado, de tantos sonhos inúteis em busca da felicidade. Resta o remorso do pouco que se fez em benefício do próximo. E resta, por fim, a dolorosa certeza do tempo perdido na longa e inútil caminhada.

Publicado no Recanto das Letras em 27/01/2011

Código do texto: T2755743.”

"INVENTÁRIO" é um texto muito bem intitulado e bem lavrado. A autora presta-se conta do havido e brinda aos seus leitores com a sua visão de mundo... Lembra, em muito, os jovens escritores clássicos que possuíam aquela nostalgia a que a história literária chamou de "mal du siècle", no início do século XIX, uma espécie de "cansaço do mundo" e "uma felicidade de estar triste", tão bem diagnosticado por Chateaubriand e popularizado por Alfred de Musset em sua obra "Confissão de um filho do século", em que o motivo inspirador é a perda de Napoleão, o pai da moderna nação francesa, enfim, a figura do "Pai". No texto em estudo, nos terreiros do universo poético, Ligia Lacerda, confreira e amiga, ajoelha-se no oratório atual e ora possível – que é a grande rede – e se depõe subjetivamente à conta de seu mundo, a confidenciar a sua visão de realidade, o duro plano do real em linguagem aberta, bem escrita, sem maiores derramamentos, se não o necessário para purgar juros e moras dos quintais da sensibilidade e dos afetos (não havidos) e da felicidade escorrida pelos dedos... Não parece discutir o caos universalizado dos tempos modernos e, sim, a sua "dolorosa certeza do tempo perdido na longa e inútil caminhada. Sim, inventaria-se de corpo presente, numa bula testamental, em testamento de próprio punho (ao teclado), e não o faz por "testamento cerrado", aquele que existe para ser aberto após a passagem para a outra margem. Tem muita coragem: dialoga com o seu alter ego, à ausência do objeto amoroso, declarando-se "de um amor contido e resignado, perdida em renúncias...". Como literatura tem muito de confissão autobiográfica, resta saber o que é de seu e qual o tanto de fantasia. A mais pura verdade é que está viva, bem viva, e capaz de nos emocionar... Não se apresenta como uma morta-viva nem chama fenecida! Hosanas pela criatividade... Bravos! Parabéns! O mais que pode acontecer é o receptor não gostar do conteúdo, por ter outra visão da condenação ao viver... Bem, porém isso faz parte do jogo, tanto quanto viverão – autora e leitor – à conta de seus preceitos...

– Do livro DICAS SOBRE POESIA, 2009/11.

http://www.recantodasletras.com.br/tutoriais/2756694